Indexação e paridade cambial; 'leasing' contratado com cláusula de paridade cambial

AutorEros Roberto Grau
Páginas87-97

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Introdução
  1. A crise cambial que suportamos em janeiro de 1999 ensejou disputas judiciais em torno dos contratos de leasing avençados sob cláusula de paridade cambial, o que, por sua vez, tem dado lugar a algumas contribuições doutrinárias ao debate.

A leitura de algumas dessas "contribuições", contudo, não obstante bem intencionadas, conduz o iniciante nos estudos de direito - e mesmo o leitor já iniciado, mas não atento - a tropeços, equívocos e erros imperdoáveis.

Não desejo de nenhum modo menosprezar o esforço intelectual deste ou daquele estudioso que tenha se detido sobre a matéria, até porque conheço e admiro a inteligência de alguns. Mas é bem certo que, com relação ao tema da paridade cambial, aplica-se qual u'a luva a observação de Cesare Vivante à qual adiante farei alusão.

Nominalismo e indexação
  1. Não se confundem indexação e paridade cambial.

    As relações quantitativas que se expressam no mundo jurídico são traduzidas em montantes de moeda, em enunciados nominais da unidade monetária como tal definida pelo direito positivo. A moeda encerra a medida básica de valor aplicável às relações jurídicas.

    O direito positivo brasileiro - arts. 947, caput e 195, respectivamente do Código Civil e do Código Comercial - adota o nominalismo. A regra da prevalência do valor nominal dos créditos é reafirmada inicialmente na suspensão da vigência e, ao depois, na revogação, pelo art. 17 da Medida Provisória 1.053, de 30.6.1995 (reite-radamente reeditada, visto que até a presente data aquela não foi convertida em lei!!!), dos §§ 1° e 2° do art. 947 do Código Civil, que admitiam amplitude na estipulação da moeda de pagamento, bem como a option de change pelo devedor, possibilitando a existência, ou não, de ágio na liquidação de determinado débito.

  2. O nominalismo implica a prevalência do enunciado quantitativo na moeda que, em virtude de lei, é o padrão de valor, tendo, portanto, curso legal quando da constituição da obrigação.

    Daí se segue que, entre nós, prevalece o enunciado do valor monetário, salvo, excepcionalmente, no que tange a negócios jurídicos submetidos a regime específico ou em relação a situações jurídicas também es-

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    pecial e particularmente reguladas pelo direito positivo.

    A sistemática ampliação das hipóteses nas quais se admite a indexação tem, contudo, em épocas de inflação exacerbada, conduzido a afirmações, precipitadas, de que o nominalismo já não mais prevalece no ordenamento jurídico nacional.

    Ocorre, no entanto, exatamente o contrário disso. O acolhimento indiscriminado de mecanismos de reajuste monetário, tanto em negócios privados como em textos de direito positivo, apenas evidencia, face a instabilidade do poder de compra de moeda, que os operadores económicos temem o nominalismo. Mais ainda: a admissibilidade de soluções de reajuste sob critérios referidos a prazo, objeto, situação peculiar das partes, entre outros, em cada modalidade de negócio jurídico, antes confirma e reforça do que compromete o predomínio do nominalismo. O desacato a qualquer das normas permissivas dessas soluções acarreta a nulidade da cláusula, remanescendo o enunciado nominal do débito.

    Note-se bem: a admissibilidade do recurso à indexação resulta estritamente da lei, nos precisos e restritos termos contemplados pelo texto de direito positivo que expressamente a preveja.

    Diga-se pois bem alto, sonoramente, para que todos ouçam: as coisas assim se passam, em matéria de indexação, precisamente porque ela, a indexação, implica a derrogação do princípio geral do nominalismo expressamente acolhido, repita-se, pelo direito positivo brasileiro.

    Repito: a indexação implica a exclusão do nominalismo.

  3. É indispensável, para que possamos compreender o significado das cláusulas de indexação e de paridade cambial, no quanto importa à preservação do seu conteúdo de valor, a prévia compreensão do significado da função de poder de compra da moeda.

    Esta se manifesta quando do exercício de direitos subjetivos pelo titular das disponibilidades monetárias; esse exercício é quantificado pelo volume de bens e serviços que podem ser adquiridos pelo sujeito de direito.

    Denomina-se poder de compra à relação quantitativa que assim se instaura, entre uma unidade monetária e a possibilidade do exercício de direitos enquadrados, grosso modo, nas categorias de consumo e investimento.

  4. O poder exercido pelo titular de moeda corresponde a um desdobramento de parcela do poder do Estado, emissor da moeda.

    Esse poder estará sempre referido ao conjunto dos bens e serviços disponíveis na sociedade e, em seu sentido mais amplo, à totalidade de moeda emitida pelo Estado. Vale dizer: o conjunto de todos os pagamentos que se realizam tendo em vista a produção desses mesmos bens e serviços - que podemos denominar renda -expressa, em linguagem monetária (logo necessariamente uniforme), o multiforme conjunto dos bens produzidos e dos serviços prestados.

    Apura-se, por essa via, uma relação quantitativa que naturalmente não é uniforme - geográfica, social e economicamente - em relação às diferentes espécies de bens e serviços. Mas essa relação permite a identificação da existência, ou não existência, de oscilação no conteúdo de poder (isto é: do poder de compra) de cada unidade: incremento ou decréscimo.

    Verificado o decréscimo, diz-se estar a moeda a sofrer processo inflacionário. Vale dizer: para a manutenção de um mesmo nível de exercício ou de possibilidade de exercício de direitos subjetivos, com base em certa quantidade de unidades monetárias, apurado num momento anterior, maior será o número de unidades exigido no momento posterior.

    Daí terem, os mecanismos identificados como escala móvel e indexação, o propósito único de funcionar como corretores dos enunciados nominais das obrigações de pagamento em moeda, a partir de um determinado nível de possibilidade de exer-

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    cicio de direitos que deriva da titularidade de certa quantia de moeda.

    A indexação implica, pois, a reenun-ciação do valor do crédito; o valor nominal prevalecente no momento da constituição do vínculo jurídico cede lugar ao valor (re)enunciado no momento da incidência do índice, se e quando assim expressamente admitido por texto expresso de direito positivo.

  5. A consciência-antecipada na acurada percepção do inconsciente social, já ao tempo da moeda mercadoria - de que esta deveria conservar valor, ser reserva de valor, constitui descobrimento da ciência económica.

    Para afastar, no entanto, falaciosas exposições sobre o conteúdo de valor da moeda, cumpre-nos tomá-lo desde a perspectiva jurídica; aí o plano mais adequado - autêntico leito de Procusto - para o estudo da moeda.

    A singela exposição de Von Ihering1 a respeito das formas de troca, apresentadas como forma inferior e forma superior de troca, é preciosa. Os parceiros, na forma inferior de troca, se satisfazem, direta e simultaneamente, no ato de troca em si mesmo considerado, não havendo o diferimento da satisfação de um deles; já na forma superior, intermediada por moeda, à satisfação presente de um que se desapossa de moeda sucede, diferida, a satisfação do que prestou serviço ou entregou bens ao outro.

    A circunstância de a moeda consubstanciar reserva de valor interfere diretamen-te em sua função de padrão de valor, função que preenche o conteúdo das relações de crédito e débito que nela se expressam e só nela se podem expressar. É neste contexto que a disciplina da indexação é cultivada, direcionada à tutela do curso legal da moeda enquanto padrão de valor.

    Note-se bem: a oscilação do poder de compra afeta a moeda em sua função de instrumento de pagamento e a seguir alcança a função de padrão de valor, atingindo o conteúdo das obrigações. Este, por sua vez, será estável ou instável, estando ou não protegido por mecanismos juridicamente válidos e eficazes de escala móvel ou de indexação.

  6. Vê-se bem, assim, que a indexação decorre da relação jurídico-quantitativa entre unidade de moeda e possibilidade de exercício de direitos subjetivos, estes atinentes aos bens e serviços produzidos no contexto em que a moeda pode desempenhar suas funções.

    Em outras palavras: dada a instabilidade, normalmente caracterizada pela majoração dos preços de bens e serviços, do poder de compra da moeda, recorre-se ao índice admitido pela lei para refletir esses reajustes, de forma que o reenunciado da expressão monetária formalmente assegure a possibilidade de exercício da mesma quantidade de direitos ínsitos numa unidade monetária ao tempo da constituição da obrigação de pagamento.

Cláusula de paridade cambial
  1. Tudo se passa de modo diverso, todavia, com a cláusula de paridade cambial, que se deve analisar desde a perspectiva da moeda enquanto padrão de valor.

    Aqui a moeda (= padrão de valor) toma por referência do enunciado nominal através do qual se deva expressar determinado crédito uma soma de moeda de outro Estado; a apuração do montante a ser expresso derivará da paridade entre ambos os instrumentos monetários. Prevalece então a relação quantitativa entre duas moedas e não a possibilidade de exercício de direitos subjetivos relacionada a certo estoque de bens e serviços numa determinada sociedade - o que seria colhido mediante convenção de indexação ou escala móvel.

    Ora, essa relação quantitativa nada tem necessariamente a ver com a oscilação do

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    poder de compra da moeda em que se expresse determinada obrigação de pagamento.

    Isto porque a paridade cambial é informada por diferentes variáveis, atinentes:

    - à política económica do Estado (importação, exportação, atração de capitais estrangeiros, entre outros);

    - à política monetária do Estado (contenção ou não da liquidez na base de emissão primária de moeda, seja mediante prática de juros elevados, seja mediante a...

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