Independência como indiferença: a face jurídica da multiplicidade institucional em casos de corrupção

AutorMaira Rocha Machado
CargoFGV Direito SP - São Paulo, Brasil
Páginas257-295
Independência como indiferença: ne bis in
idem e múltipla incidência sancionatória em
casos de corrupção
Independence as indierence: ne bis in idem and multiple
incidence in corruption cases
Maíra Rocha Machado*
FGV Direito SP – São Paulo, Brasil.
1. Introdução
Na última década, diversas pesquisas no campo do direito e das ciências
sociais têm abordado a questão da multiplicidade institucional. De ma-
neira geral, pode-se dizer que essas pesquisas se dedicam a descrever e
extrair implicações jurídicas e políticas da atuação de diferentes áreas do
direito e, portanto, de diferentes instituições, sobre um mesmo fato. Essa
questão pode ser discutida a partir de várias perspectivas: a ef‌iciência da
multiplicação de recursos materiais e humanos para identif‌icar e impor
consequências jurídicas a um mesmo fato; a unidade ou integridade do
sistema jurídico estatal diante de decisões eventualmente conf‌litantes; e,
ainda, a violação de direitos individuais diante da multiplicidade de pro-
cessos e sanções sobre os mesmos fatos. A depender da perspectiva ado-
tada na pesquisa, a ênfase da argumentação estará nos prós e contras do
arranjo institucional da multiplicidade, nos limites impostos pelo quadro
* Doutora em Direito pela Universidade de São Paulo (USP). Professora do Programa de Mestrado e Doutorado
da FGV Direito SP. Rua Rocha, 233, sala 915, CEP. 01330-000, São Paulo, SP. E-mail: maira.machado@fgv.br.
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normativo para lidar com a questão ou, ainda, na elaboração de estratégias
de solução dogmática ou legislativa para as dif‌iculdades operacionais que
a multiplicidade pode gerar.
No campo jurídico, o conjunto de pesquisas que tem alimentado o
debate ao redor da questão da multiplicidade institucional pode ser orga-
nizado em dois grupos. No primeiro, estão as pesquisas dedicadas a pensar
sobre as interações entre as áreas jurídicas: entre o direito penal e o direito
civil, entre o direito penal e o direito administrativo, entre o direito civil
e o direito administrativo1. No segundo grupo, estão as pesquisas que se
debruçam sobre a regulação de um problema social específ‌ico e, a partir
dele, elaboram sobre as interações entre as áreas jurídicas propiciadas por
quadros normativos que estabelecem infrações, procedimentos e sanções
que mobilizam múltiplas vias institucionais para lidar com o mesmo fato:
meio ambiente, tributação, relações econômicas, além da corrupção, são os
mais frequentemente tematizados2.
Em ambos os grupos, a expressão “multiplicidade institucional” é ra-
ramente utilizada para nomear a questão de fundo à qual as pesquisas, de
diferentes formas, aportam. A opção, neste texto, por utilizá-la decorre de
seu potencial descritivo para abarcar diversas dimensões da questão que,
como se verá a seguir, são discutidas no campo do direito a partir de con-
ceitos jurídicos específ‌icos, como o ne bis in idem e a independência (ou
autonomia) das esferas.
Diante desse cenário, o objetivo deste texto é se engajar nesse segundo
grupo de pesquisas para observar, a partir do direito, a questão da multi-
plicidade institucional no campo específ‌ico do enfrentamento à corrupção
no Brasil. Diversos fatores contribuem a justif‌icar a adequação e relevância
deste campo para a ref‌lexão sobre a multiplicidade institucional. Nas úl-
timas décadas, o tema da corrupção assumiu novo status na agenda social
e política, tanto no Brasil como no exterior. Com ele, recursos massivos
foram depositados na criação e no fortalecimento de instituições no Judici-
ário, no Legislativo e no Executivo para lidar com esses temas. Ao mesmo
1 Ver, entre outros, PUSCHEL e MACHADO (2008), ASSIS (2000), COSTA (2009), COSTA (2013), SIL-
VEIRA (2008), MARQUES (2010).
2 Ver, especialmente, TANGERINO e GARCIA (2007), COSTA (2010) E SICA (2009). Para um balanço de
situações de múltipla incidência na legislação brasileira na área do meio-ambiente, tributária, econômica,
relações de consumo, e trânsito, ver SABOYA (2014, p. 261-270). Os trabalhos relacionados ao campo da
corrupção e improbidade serão citados no decorrer deste texto.
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tempo, fortes demandas da sociedade civil e da mídia ampliaram exponen-
cialmente os mecanismos de controle público sobre a atuação dos órgãos
estatais que, ademais, são instados também a prestar contas periódicas de
suas atuações para organismos internacionais dedicados ao tema. Os resul-
tados desse movimento, no plano normativo, podem ser observados pela
promulgação de uma série de leis habilitando dezenas de instituições, nas
esferas federal, estadual e municipal, a monitorar, investigar, responsabili-
zar e sancionar a prática de atos de corrupção3. Articulando-se com outros
pesquisadores que se dedicaram, de diferentes formas, ao mesmo proble-
ma de pesquisa, este texto busca também consolidar e ref‌letir de modo
mais detido sobre questões que surgiram no decorrer de outras pesquisas
desenvolvidas pela autora deste texto nos últimos anos4.
Para avançar sobre essa questão, este texto se propõe a realizar um
exercício de sistematização e categorização das normas que regulam a in-
teração entre diferentes áreas do direito. O objetivo é identif‌icar quais são
e como estão formuladas as normas que se referem a outras possibilidades
de responsabilizar e sancionar uma mesma conduta. Esse exercício será
realizado sobre um conjunto específ‌ico de leis, selecionado de acordo com
critérios apresentados a seguir. Para ampliar as possibilidades de interpre-
tação deste conjunto normativo, buscar-se-á observar também o modo
como a doutrina brasileira percebe a questão da múltipla incidência. Tendo
em vista que esse problema de pesquisa tem interessado também ao campo
da ciência política – ver, especialmente, Power e Taylor5 e Arantes6 – este
texto busca dirigir-se não apenas a quem se interesse sobre a construção
normativa e doutrinária da multiplicidade institucional, mas também a
quem se debruça sobre os arranjos políticos e institucionais do enfrenta-
mento à corrupção no Brasil.
Para tanto, o texto organiza-se em três partes, além desta introdução.
Na primeira, busca apresentar a questão da multiplicidade institucional a
partir do estudo de leis selecionadas que, analisadas conjuntamente, evi-
3 Para uma descrição desse movimento, a partir de análise documental e entrevistas com atores da esfera
federal, ver MACHADO e PASCHOAL (2016).
4 MACHADO, 2007 (sobre a relação civil-penal); 2009 (sobre a relação penal-administrativa); 2013 (sobre
a departamentalização do saber jurídico) e 2014 (estudo de caso de múltipla incidência de sanções penais,
civis e administrativas sobre os mesmos fatos, Caso TRT).
5 POWER; TAYLOR, 2011.
6 ARANTES, 2011.
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