A arguição de inconstitucionalidade e a súmula vinculante nº 10 como instrumentos da hermenêutica constitucional

AutorNagib Slaibi Filho
CargoMagistrado - RJ Professor da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro - EMERJ /UNIVERSO
Páginas5-15

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1. Súmula Vinculante nº 10

Profundas alterações no sistema de controle de constitucionalidade são trazidas pela edição, em junho de 2008, da Súmula Vinculante nº 10 pelo Supremo Tribunal Federal, com força obrigatória para todos os órgãos do Poder Judiciário e da Administração Pública de todos os níveis federativos e esferas governamentais, como decorre do disposto no artigo 103-A da Constituição de 1988, com a redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, de 8 de dezembro de 2004.

O enunciado sumular tem a seguinte redação:

"Viola a cláusula de reserva de plenário (CF, artigo 97) a decisão de órgão fracionário de Tribunal que, embora não declare expressamente a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público, afasta sua incidência, no todo ou em parte."

Este trabalho1 aprecia alguns dos efeitos que decorrem de tão importante provimento, notadamente em prol da validade e da eficácia da arguição de inconstitucionalidade como poderoso instrumento hermenêutico da Constituição, em país que adotou, até com surpreendente sucesso e árdua evolução, a síntese do melhor que apresentam os controles concentrado, de origem europeia, e incidental, de origem estadunidense.

Pode-se dizer, até mesmo, que a Súmula Vinculante nº 10 vem reforçar normativamente o procedimento de incidente de inconstitucionalidade dos tribunais, de forma a conduzir tal procedimento à função de verdadeira ponte de ouro2 entre os controles concentrado e incidental de constitucionalidade e, assim, instrumento hermenêutico de superlativa importância neste início do século XXI.

2. Caráter hermenêutico da arguição de inconstitucionalidade

O incidente processual da arguição de inconstitucionalidade, sob o fundamento de assegurar a uniformização dos entendimentos dos diversos órgãos e juízes de tribunal sobre a constitucionalidade dos atos normativos do Poder Público, constitui poderoso e até mesmo correntio instrumento da Hermenêutica na prática forense, garantindo a aplicabilidade das normas que gozam de supremacia sobre as demais normas do sistema jurídico.

A Hermenêutica assim pode ser considerada, na expressão sempre atual que nos legou Carlos Maximiliano em seu clássico Hermenêutica e aplicação do direito:

"A Hermenêutica Jurídica tem por objeto o estudo e a sistematização dos processos aplicáveis para determinar o sentido e o alcance das expressões de Direito... Para [aplicar o Direito] se faz mister um trabalho preliminar: descobrir e fixar o sentido verdadeiro da regra positiva; e, logo depois, o respectivo alcance, a sua extensão. Em resumo, o executor extrai da norma tudo o que da mesma se contém: é o que se chama interpretar [...]."3

São indissociáveis as ideias de direito, hermenêutica e interpretação, como ensina Margarida Maria Lacombe Camargo:

"O tema da hermenêutica e da interpretação jurídicas remetem-nos ao processo de aplicação da lei realizado pelo Poder Judiciário. Sob essa ótica, só faz sentido interpretarmos a lei tendo em vista um problema que requeira solução legal. Mas a aplicação da lei deverá atender, antes de tudo, ao indivíduo e à sociedade a quem ela serve. Por isso, pensamos a lei em função de situações específicas, ou de casos concretos que envolvam pessoas. A norma jurídica encontra-se sempre referenciada a valores na medida em que defende comportamentos ou serve de meio para atingirmos fins mais elevados. Assim, o problema jurídico, que envolve situação de natureza valorativa, deve ser compreendido. Compreender é buscar o significado de alguma coisa em função das razões que a orientam. Buscar os valores subjacentes à Lei, e que fogem da mera relação causaefeito. Para aplicá-los, não basta detectarmos o fato e encaixá-lo a uma lei geral e abstrata dando-lhe concretude, como se a subsunção da premissa menor à premissa maior conferisse uma solução necessária, mediante operação puramente formal. Não. O direito é comprometido com valores, e a norma que buscamos no texto através da interpretação encontra-se relacionada a uma situação histórica, da qual fazem parte o sujeito (intérprete) e o objeto a ser interpretado (fato e norma). Assim, podemos afirmar que o processo de interpretação e de aplicação das leis corresponde a uma situação hermenêutica, da qual nos fala Gadamer4 .

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[...]

A partir deste estudo, concluímos, então, que o direito, apesar de toda sua carga dogmática, faz parte de uma tradição filosófica cuja base reside na tópica e na retórica; o que nos leva a acreditar que o seu conhecimento, como criação humana, histórica e social, comporta uma dimensão hermenêutica. Voltamos, assim, à nossa posição inicial, afirmando que o direito consiste na realização de uma prática que envolve o método hermenêutico e a técnica argumentativa."5

Como concreção da ideia prática do Direito, a interpretação das normas está muito além do mero trabalho técnico do jurista, pois é um processo de inegável conteúdo histórico, axiológico e político, deferido aos juízes ordinariamente na interpretação e aplicação das leis infraconstitucionais aos casos que lhes são submetidos, como, em superlativa dimensão do conteúdo político, na Hermenêutica Constitucional, cujo objeto são as normas dotadas de supremacia perante as demais.

Os processos de Hermenêutica Constitucional são exercidos pelos juízes brasileiros no controle incidental, que herdamos da prática estadunidense, e no controle concentrado, que nos foi legado pela Europa continental desde o embrião que colhemos com a Constituição de 1934, de forte inspiração nas Constituições alemã de 1919 e austríaca de 1922.

Destaque-se, na História do controle de constitucionalidade no Brasil, a contribuição de duas grandes correntes hermenêuticas, correspondendo justamente às influências preponderantes nos conteúdos ideológicos de nossas Cartas Magnas: o empirismo6 e o racionalismo7.

O empirismo, fundado na experiência de vida, é expressamente invocado no Código de Processo Civil, art. 335, em matéria de prova do fato, recomendando ao juiz recorrer às máximas da experiência comum e do que de ordinário acontece. O mesmo Código, no art. 131, traz norma que a doutrina considera como a aplicação do princípio da persuasão racional: "O juiz apreciará livremente a prova, atendendo aos fatos e circunstâncias constantes dos autos, ainda que não alegados pelas partes; mas deverá indicar, na sentença, os motivos que Ihe formaram o convencimento."

O empirismo influenciou o controle da constitucionalidade em nosso país, quanto ao sistema difuso ou incidental, em que todo e qualquer juiz, nos casos que lhe são submetidos, pode deixar de aplicar a norma que considerar incompatível com a Constituição, desde que o faça fundamentadamente. Tais normas decorrem não de expressa determinação das Constituições americana de 1787 e brasileira, mas do famoso precedente, julgado em 1803 pela U. S. Supreme Court, caso Marbury v. Madison, através da genial construção feita pelo Chief Justice John Marshall8.

A corrente racionalista, de matriz continental- européia - que nós recebemos através do paradigma da Constituição de 1934 - se inspirou na Constituição austríaca de 1922 com suas alterações, que nos deu o controle concentrado9.

Até a redação que lhe emprestou a Lei nº 9.756/98, a arguição de inconstitucionalidade foi considerada como simples procedimento do controle incidental, com efeitos declaratórios de invalidade ou validade do ato normativo do Poder Público e que somente alcançavam as partes. Eventuais efeitos externos, que não se restringissem aos limites subjetivos da lide, somente chegavam a alcançar outros membros da comunidade se e quando o Poder Legislativo, através da resolução hoje prevista no art. 52, X, da Constituição, e reproduzida nas Constituições estaduais, lhe concedesse efeitos normativos.

Antes, a arguição de inconstitucionalidade constituía simples procedimento processual para levar o tema da constitucionalidade do órgão fracionário para o Pleno do Tribunal, de forma a garantir a presunção de que somente se pode declarar a inconstitucionalidade acima de qualquer dúvida razoável.

A percepção atual do fenômeno jurídico é bem diversa, felizmente, muito mais pela consciência progressiva dos membros da comunidade sobre os amplos horizontes que se descortinam para o debate das questões públicas no denominado Estado Democrático de Direito, com a judicialização das questões políticas10, nos termos constantes dos arts. 480 a 482 do Código de Processo Civil, e pelo reforço normativo da mencionada Súmula Vinculante nº 10.

A arguição de inconstitucionalidade viceja hoje como uma das mais belas flores do controle concentrado de constitucionalidade, pois finalmente se libertou restrita dimensão de eficácia dentro dos limites subjetivos da lide para alcançar os efeitos normativos próprios de ato de conteúdo legislativo, genérico e abstrato, típicos do Poder Legislativo e daqueles órgãos aos quais a Constituição e a ordem jurídica deferiram efeitos normativos, como as resoluções das agências reguladoras e tantos outros entes.

3. Cláusula de reserva de plenário

A Súmula nº 10 reforça a normatividade do art. 97 da Carta da República, e...

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