A inconstitucionalidade da liberação generalizada da terceirização

AutorRicardo José Macedo de Britto Pereira
Páginas121-141

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1. Considerações iniciais

Diversas iniciativas encontram-se em curso visando a uma profunda alteração estrutural do Direito do Trabalho. Uma das mais graves refere-se à liberação da terceirização, transferindo para os empresários a decisão de utilizarem intermediários para a prestação das atividades que digam respeito a parte ou a todo o seu negócio.

Tanto o Projeto de Lei da Câmara dos Deputados n. 30/2015, que tramita no Senado e dá continuidade à deliberação da Câmara no Projeto de origem n. 4.330/200446, quanto à Repercussão Geral reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal (ARE 713211 — Tema 72547) constituem instrumentos para a abertura de vias à intermediação de mão de obra em quaisquer ou em todos os setores das empresas.

Essa investida na liberalização da terceirização possui o objetivo de ampliar o âmbito do mercado, mediante o desmonte dos pilares de sustentação do Direito do Trabalho. A terceirização não afasta o Direito do Trabalho, mas o fragiliza. O seu caráter altamente ideologizado encobre as

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suas reais intenções e os meios para alcançá-las, ao tempo em que forja um ideal de progresso e de desenvolvimento econômicos, como símbolos da modernidade, em que o modelo regulatório trabalhista tradicional seria a barreira arcaica que inviabiliza a prosperidade da nação.

O Supremo Tribunal Federal aceitou conhecer da matéria sobre os limites jurisprudenciais estabelecidos pelo Tribunal Superior do Trabalho, consagrados na Súmula n. 33148, ao argumento de que eles não se encontram na Constituição e somente o Legislador poderia prevê-los. A repercussão geral reconhecida cogita da violação à liberdade de contratar inserida no princípio constitucional da legalidade (art. 5º, II, CF), de modo que limitação imposta pelo Judiciário, sem o respaldo do Legislativo, afronta o texto constitucional.

Observa-se que a tese provisoriamente anunciada se apoia numa suposta primazia da liberdade contratual em detrimento da proteção ao trabalho. Dos diversos dispositivos constitucionais que consagram essa proteção não desencadearia qualquer restrição à prática da terceirização. Segundo esse raciocínio, eventuais limitações à livre iniciativa estariam a critério exclusivo do Legislador.

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Trata-se de interpretação que, na história constitucional de nosso país, jamais logrou semelhante prestígio. Sua conirmação pode gerar um incalculável passivo trabalhista e social.

O julgamento a curto prazo, como parte da estratégia empresarial, não ocorreu, em razão de mobilizações em apoio ao Direito do Trabalho. No entanto, a pressão para liberar a terceirização se intensificou. Os seus de-fensores encontram na atual composição do Congresso Nacional ambiente propício para eliminar os limites atualmente aplicados.

Havia sinais de resistência por parte do Poder Executivo em relação ao projeto liberalizante. Ocorre que o Executivo perdeu o controle de sua agenda, com a crise política e econômica. O Senado Federal chegou a esboçar alguma contrariedade à forma açodada de como o projeto foi aprovado na Câmara. Porém, tratava-se de manobra no jogo da disputa pelo poder que, no momento, já não é mais decisiva para o seu resultado.

Ou seja, a proposta que libera a terceirização vai ocupando espaços e se consolidando cada vez mais no meio político.

A reação de parcela do movimento sindical, do meio acadêmico e de entidades públicas voltadas à defesa do trabalho e dos direitos dos trabalhadores tem sido fundamental para ganhar tempo, o que propicia o aprofundamento do estudo visando identificar os limites constitucionais ao projeto que persegue a terceirização ampla (DELGADO; AMORIM, 2014,
p. 67).

A abordagem constitucional do tema é inevitável. Ainda que a apro-vação da liberação da terceirização não se verifique como esperada pelos autores das propostas, as mencionadas investidas empresariais não serão as únicas. É importante que o Supremo Tribunal Federal se posicione neste tema, mas não sem antes conhecer a realidade do mundo do trabalho, por meio de representantes dos trabalhadores e das instituições públicas e privadas encarregadas de defender o trabalho e o Direito do Trabalho. Matéria trabalhista de tamanha relevância não pode ser decidida à revelia do diálogo social, como preconizado pela Organização Internacional do Trabalho na Declaração sobre a Justiça Social para uma Globalização Justa, de 2008.

É da análise constitucional da terceirização que o presente texto se ocupa. A hipótese de trabalho é que as disposições normativas constitucionais não autorizam a terceirização de toda e qualquer atividade do processo de produção de bens e serviços e que eventual possibilidade jurídica de utilização da terceirização em algumas atividades atrai a observância de limites constitucionais no tocante às condições de trabalho.

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O texto será dividido em quatro partes: os direitos sociais dos trabalhadores como imposição constitucional e a superação da interpretação conservadora; a consagração constitucional de um modelo especíico de emprego; a desconstitucionalização do Direito do Trabalho como estratégia para a exploração dos trabalhadores e a lexibilização dos direitos trabalhis-tas; e, por último, a dignidade humana como referência aos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa.

2. Os direitos sociais dos trabalhadores como imposição constitucional e a superação da interpretação conservadora

A Constituição de Weimar de 1919 reveste-se de grande simbolismo para o constitucionalismo social, pois marca a era da inserção dos direitos sociais nos textos constitucionais.

Apesar dessa relevância, os opositores a seu texto tiveram grande inluência a ponto de eliminar a força normativa do conteúdo social da cons-tituição. Um jurista que teve grande peso nesse sentido foi Carl Schmitt, defensor de um decisionismo político conservador.

A primeira parte da Constituição de Weimar tratava da organização do Estado. A segunda parte, dos direitos fundamentais. Carl Schmitt (1982,
p. 52) considerava que a segunda parte da Constituição de Weimar não passava de uma ordem obscura, em razão da incorporação de declarações correspondentes a compromissos desprovidos de decisão. Na parte dos direitos e deveres fundamentais dos alemães, foram reunidos programas e prescrições baseados em distintos conteúdos e convicções políticas, sociais e religiosas.

Para Schmit (1982, p. 53), a Constituição de Weimar contém decisões políticas fundamentais sobre a forma de existência política concreta do povo alemão, mas não todas em razão do caráter misto dos direitos fundamentais enumerados em sua segunda parte. Isso porque foram mescladas concep-ções burguesas e sociais, o que gera confusão para se identificar o conteúdo das decisões que conferem a forma e a unidade ao Estado.

Segundo Schmitt (1982, p. 54), apesar da enumeração dos direitos sociais, a decisão fundamental foi a de airmar o Estado burguês de Direito e a democracia constitucional, opção extraída do preâmbulo e dos primeiros artigos da Constituição de Weimar. Vários dispositivos da segunda parte da Constituição são por ele denominados de compromissos não autênticos,

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apócrifos ou dilatórios. Na ausência de decisão, não deveria haver dúvida de que prevalece o status quo social, ou seja, da manutenção da ordem burguesa, uma vez que a decisão pela revolução socialista foi expressamente rechaçada.

Apesar do prestígio dessa concepção decisionista na primeira metade do século XX, alcançando inclusive a segunda metade, ela é totalmente inadequada no atual estágio do constitucionalismo. Além disso, seu caráter autoritário a torna incompatível com o Estado Democrático de Direito.

É importante comparar a Constituição de Weimar com a Lei Fundamental de Bonn de 1949. Esta última, diferentemente da primeira, não contém direitos sociais, mas logrou avanços significativos a partir da interpretação de cláusulas abertas. Isso marca a diferença entre o constitucionalismo da primeira metade e o da segunda metade do século XX.

Ao contrário da doutrina de Schmitt, as disputas político-ideológicas não passam ao largo da Constituição, mas para ela convergem, lá encontrando limites rigorosos, que não consubstanciam meros programas ou compromissos dilatórios. Deparam com genuínas decisões que representam as opções fundamentais para o Estado e a sociedade como um todo e condicionam o exercício de poderes tanto no âmbito público quanto no privado. A rigor, a Constituição, ao invés de adotar compromissos que dilatam essas disputas, impõe a elas severas condicionantes e restrições.

A consagração do pluralismo, pela qual, tendências diversas e até contraditórias encontram o seu lugar no texto constitucional, não autoriza uma opção pela livre iniciativa em detrimento do valor social do trabalho. O modelo de Estado e sociedade previsto na Constituição de 1988 baseia-se na centralidade do trabalho socialmente protegido.

A democracia permeia todo o texto constitucional e ela só se realiza mediante a participação efetiva nas deliberações relevantes e o exercício dos direitos fundamentais. No nosso modelo constitucional, a cidadania é a essência de todas as relações envolvendo o Estado e a sociedade.

A cidadania no trabalho e a democratização nas relações de trabalho são de fundamental importância para a democratização da sociedade como um todo. Não há democracia na sociedade, se no ambiente de trabalho prevalece a lógica autoritária e da exploração.

Nesse...

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