"Inclusao com merito" e as facetas do racismo institucional nas universidades estaduais de Sao Paulo/"Merit-based inclusion" and the facets of institutional racism at public universities in the state of Sao Paulo.

Autorde Araujo, Danielle Pereira

Introducao (1)

[...] A alteracao [a abolicao da escravatura] nao diferenciou o preto. Ele passou de um modo de vida a outro, mas nao de uma vida a outra. [...] O Branco enquanto senhor disse ao preto: "de agora em diante es livre". Mas o preto ignora o preco da liberdade porque nao se bateu por ela. Uma vez por outra bate-se pela Liberdade e pela Justica, mas trata-se sempre de liberdade branca e de justica branca, isto e, de valores segregados pelos senhores. [...] Quando acontece ao preto olhar o Branco selvaticamente, o Branco diz-lhe: "Meu irmao, nao ha diferencas entre nos". No entanto o preto sabe que ha uma diferenca. Ele deseja-a. Gostaria que o Branco lhe dissesse de repente: "Estupido preto". Entao teria essa unica oportunidade--de "lhes mostrar"... Mas nas mais das vezes nao ha nada, nada alem da indiferenca, ou da curiosidade paternalista. O antigo escravo exige que lhe contestem a sua humanidade, deseja uma luta, uma briga. Mas e demasiado tarde [...]. (FANON, 1975, p. 229-230) O estabelecimento de politicas afirmativas no ensino superior publico brasileiro nos anos 2000, por meio da Lei Federal no 12.711/2012 (ou Lei de Cotas como popularizouse) foi um importante marco politico para a historia da ampliacao do acesso ao ensino superior por negros (2) e indigenas no Brasil. No entanto, os debates realizados, por mais de uma decada, quanto a possibilidade de adocao dessa politica pelas universidades publicas do estado de Sao Paulo--Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho (UNESP), Universidade de Sao Paulo (USP) e Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)--foram pautados por um posicionamento fortemente contrario a adocao da reserva de vagas etnico-raciais.

As universidades estaduais de Sao Paulo mantiveram-se por mais de uma decada na contramao da tendencia nacional: as universidades estaduais (Rio de Janeiro, Bahia, Rio Grande do Norte e Rio Grande do Sul) foram as primeiras universidades no Brasil a adotarem as cotas etnico-raciais (entre os anos de 2002 e 2003). Foi tambem nas universidades estaduais onde mais rapidamente esse tipo de politica afirmativa teve expressiva adesao antes mesmo da criacao da Lei federal em 2012 (Cf. FERES JUNIOR, DAFLON, CAMPOS, 2011; FERES JUNIOR, DAFLON, CAMPOS, BARBABELA, RAMOS, 2013).

No ano de 2012, frente a pressao dos movimentos sociais e da ampla adocao por parte das universidades brasileiras do sistema de reserva de vagas, o governador de Sao Paulo--a epoca comandado por Geraldo Alckmin (Partido da Social Democracia Brasileira - PSDB) em articulacao com os reitores da tres universidades publicas estaduais, os representantes da Universidade Virtual do Estado de Sao Paulo (3) (UNIVESP) e Centro Paula Souza (4) finalizaram a proposta do Programa de Inclusao com Merito no Ensino Superior Publico Paulista (PIMESP), e colocaram para aprovacao do corpo docente das tres universidades. Constitui nosso corpus de analise os debates (5) realizados nos departamentos, unidades de ensino assim como as noticias, artigos de opiniao, entrevistas divulgadas nos periodicos de circulacao nacional entre os anos 2004 e 2018.

Em sintese, o PIMESP propunha atingir o percentual de 50% de alunos oriundos de escolas publicas e, desse total, seriam reservadas 35% das vagas para o grupo de Pretos, Pardos e Indigenas (PPIs). No entanto, ao passar no exame de selecao (6), a proposta sugere que os "cotistas" teriam que fazer um curso semipresencial a ser realizado no Instituto Comunitario de Ensino Superior (ICES) com duracao de dois anos e com grade curricular que incluiria disciplinas como servicos e administracao do tempo, gerenciamento de projetos, profissionalizacao, inovacao e empreendedorismo. Alem do curso semipresencial, os cotistas apenas poderiam comecar um curso no ensino superior se tivessem tido bons rendimentos ao longo dos dois anos.

A proposta do PIMESP contrariava os preceitos legais que legitimavam as politicas afirmativas, pois nao fazia uso da discriminacao positiva, mas sim negativa ao criar espacos apartados para os cotistas. Entretanto, as manifestacoes dos docentes contrarias ao PIMESP nao foram exatamente pautadas no carater racista da Proposta.

O debate realizado pelo corpo docente das tres universidades publicas paulistas esteve marcado pelo questionamento da viabilidade e/ou da necessidade do sistema de reserva de vagas motivado por receio de que: 1) o referido sistema causasse ranhuras ao sistema meritocratico, que supostamente se faz presente nos processos seletivos das referidas instituicoes e, 2) que a presenca dos cotistas pusesse em causa a qualidade das universidades publicas de Sao Paulo, internacionalmente conhecidas pela excelencia na producao de conhecimento.

Com excecao da Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho (UNESP), que aprovou o PIMESP parcialmente, UNICAMP e USP rechacaram o Programa, realizando apenas modificacoes nas politicas ja existentes (7) com foco na bonificacao (8). Apenas em 2017, a partir da forte pressao dos movimentos sociais (coletivos negros e entidades estudantis), os conselhos universitarios da UNICAMP e da USP aderiram ao sistema de reserva de vagas para negros e indigenas.

O cenario de conflitos e tensoes que acompanharam os debates em relacao a adocao de reserva de vagas nas tres universidades paulistas nos ultimos anos parece ainda carecer de estudos que busquem conhecer mais profundamente os motivos da resistencia a adocao das cotas. O presente texto buscara visibilizar de que forma os mecanismos pelos quais as categorias politicas de raca e racismo estiveram ocultadas ou minimizadas nos discursos e praticas politicas das universidades paulistas, revelando por um lado como a atualizacao dos pressupostos do paradigma da integracao na formulacao das solucoes para "o problema do negro" se constituem nos novos contornos do racismo institucional e por outro lado como os elementos centrais dos discursos dos docentes permite que entendamos como classe e raca acomodam-se na configuracao dos espacos de privilegio.

O presente artigo esta dividido em tres seccoes. Na primeira seccao buscaremos historicizar a institucionalizacao da politica da integracao no Brasil enquanto projeto politico forjado na e pela academia brasileira em estreito dialogo com a Organizacao das Nacoes Unidas para a Educacao, a Ciencia e a Cultura (UNESCO) e a producao das ciencias sociais no entre guerras. Essa historicizacao nos permitira perceber como os resultados do Projeto UNESCO reafirmam a narrativa do negro enquanto minoria e como um problema que precisa da autorizacao/gestao do grupo "majoritario" para ser incluido em determinados espacos (Cf. GOLDBERG 1993; HESSE, 2004; ARAUJO; MAESO, 2013).

A segunda seccao examinara como o conceito eurocentrico de raca e racismo embasa o posicionamento politico dos docentes das universidades estaduais paulistas frente a politica de cotas. Buscaremos explorar como a defesa em torno da inclusao com merito e a defesa da prioridade do perfil economico em detrimento do racial para o estabelecimento das politicas inclusivas consiste na atualizacao do projeto politico de integracao que visam dissimular o racismo institucional, domesticando a luta pelo acesso de negros e indigenas aos espacos de poder.

Por fim, na terceira seccao, buscaremos apresentar algumas reflexoes em torno das implicacoes politicas da institucionalizacao da agenda da integracao para a luta antirracista e das possibilidades da construcao (ou consolidacao) de contra narrativas que, para alem de denunciar a existencia do racismo institucional, possam refletir e problematizar as implicacoes do saber-fazer antirracista frente as armadilhas do paradigma da integracao.

  1. O projeto UNESCO e a consolidacao das ciencias sociais no Brasil: a (re)producao da narrativa da integracao no contexto das universidades

[Jornal Folha de Sao Paulo: A universidade tem algum tipo de preocupacao com a permanencia dessas pessoas que entram por cotas?] [alunos cotistas] eles tem algumas deficiencias basicas [...] Outro problema importante e que certamente vai aumentar o numero de alunos que necessitam de apoio para continuar estudando. E uma coisa que me preocupa porque a universidade esta saindo da sua funcao de ensino e pesquisa e se tornando um orgao assistencialista. (...) precisamos discutir com os poderes publicos que nao e a tarefa da universidade ser a entidade assistencialista [...]" (Vahan Agopyan, reitor da USP em entrevista ao Jornal Folha de Sao Paulo em fevereiro de 2018. Cf. BERMUDEZ, 2018) "[...] O que a Universidade precisa, seja no quadro atual, seja no quadro com a introducao do sistema de cotas etnico-raciais, e de um modelo que estabeleca um limite minimo de qualificacao para que o candidato seja admitido. Ou, entao, de um programa de complementacao educacional [...] para atender aqueles que apresentem dificuldades de adaptacao [...]" (Renato Pedrosa, docente do Instituto de Geociencias e ex-coordenador da Comissao Permanente para os Vestibulares da UNICAMP em entrevista para o portal do Jornal da UNICAMP, maio de 2017. Cf. ALVES FILHO, 2017) "[...] Nao adianta incluir sem criar a cultura de emancipacao [...]. Precisamos ate tracar politicas de acompanhamento pedagogico para esses alunos, que muitas vezes chegam a universidade com muito despreparo [...]" (Roberto Valentini, reitor da UNESP em entrevista ao Jornal Estadao, 30 de novembro de 2016. Cf. PALHARES, 2016) Salta aos olhos nos trechos acima a inversao da resposta ao problema do carater racista e classista das universidades publicas: as vitimas do carater estruturalmente excludente das universidades sao narradas nesses trechos como as verdadeiras causas do problema. Os destinatarios das politicas de cotas sao concebidos pelos docentes como deficientes, despreparados e, portanto, com dificuldades de adaptacao ao ensino superior publico- sendo esse o verdadeiro motivo da ausencia desse grupo nos espacos da universidade. Portanto, a presenca deles e...

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