Incidente de insanidade mental: anotações aos arts. 149 a 154 do CPP com referências à jurisprudência

AutorGustavo Britta Scandelari
CargoProfessor de Direito Penal (UNICURITIBA)
Páginas123-142

Page 123

Ver nota 1

Introdução

Não há farta produção literária a respeito de como funciona (ou deve funcionar, com base no CPP) o incidente processual de insani-dade mental. No entanto, há uma série de questões relevantes, como a curatela especial, prazos, prescrição, recorribilidade, que têm recebido conflitantes interpretações na prática e que, por isso, demandam uma tentativa de sistematização - ainda que rápida.

Com o intuito de contribuir para a ampliação da discussão a esse respeito, apresentam-se as anotações abaixo, feitas de forma individualizada para cada dispositivo pertinente (CPP, arts. 149 a 154, incluindo-se os parágrafos), logo após a transcrição de cada qual. Inicia-se com o capítulo correspondente do CPP, logo abaixo:

I Inadequação da expressão "insanidade mental"

Capítulo VIII

Da insanidade mental do acusado

Destaca-se a inadequação da expressão "insanidade mental", que dá nome ao capítulo VIII ("Da insanidade mental do acusado") do título VI do CPP. A rigor, não é somente a eventual ausência de sanidade que será objeto de exame: qualquer forma conhecida de distúrbio mental

Page 124

poderá ser estudada e indicada pelo expert - desde que tenha potencial para interferir na capacidade do autor do fato de compreendê-lo e desejá-lo (dolo) ou, ainda, de prever a sua ocorrência e de poder tentar evitá-la (culpa). Mesmo que a possível doença não pareça afetar a capacidade de intelecção do sujeito (como é de se supor que ocorreria com a pessoa "insana"), o mais prudente é que o exame seja feito para que a dúvida seja resolvida por especialistas e qualquer traço de eventual nulidade seja afastado.

II Adequação da expressão "integridade mental"

O próprio art. 149 do CPP utiliza uma expressão mais fiel ao conteúdo da análise médica: "integridade mental". Por íntegro, nesse contexto, entende-se são, saudável, ou seja, absolutamente compatível com o que se espera de uma pessoa normal, que possa compreender exatamente o que fez, as razões pelas quais o fez e que tinha condições de não fazê-lo. Assim, qualquer dúvida a respeito dessa integridade deverá motivar a decisão que instaure o respectivo incidente processual.

III A dúvida e a presunção de inimputabilidade

Art. 149. Quando houver dúvida sobre a integridade mental do acusado, o juiz ordenará, de ofício ou a requerimento do Ministério Público, do defensor, do curador, do ascendente, descendente, irmão ou cônjuge do acusado, seja este submetido a exame médico-legal.

O exame apenas pode ser realizado por ordem do juiz, nunca de autoridade policial ou administrativa. A dúvida pode ser originada de qualquer circunstância relacionada à conduta supostamente praticada pelo acusado ou à sua própria personalidade - desde que esteja mini-mamente retratada nos autos e não tenha fonte exclusiva na sua palavra.

É inadmissível que haja somente a análise pessoal do magistrado. Geralmente, indícios de inimputabilidade são apresentados na forma de prova testemunhal ou documental. Parentes ou conhecidos do réu

Page 125

podem informar suspeita de que ele sofre de alguma doença mental ou relatar outros fatos que tenha praticado no passado que seriam, em tese, compatíveis com reduzida ou prejudicada capacidade de compreender o caráter ilícito do fato ou de se determinar conforme prescreve a lei.

Ainda, declarações médicas de que o acusado foi diagnosticado com doença mental, está sob tratamento clínico ou faz uso de medicação indicada para quem possui tal condição são aptos a gerar a dúvida (que a jurisprudência exige seja razoável ou fundada) citada no dispositivo em comento. Na análise da possibilidade de instauração do incidente, o magistrado deve considerar que a presunção pende a favor da inimputabilidade - especialmente porque, caso o réu efetivamente não seja plenamente imputável e venha a ser condenado como tal, o processo poderá ser anulado futuramente (economia processual).

JURISPRUDÊNCIA

Impossibilidade de determinação do exame em HC e considerações sobre a dúvida a respeito da integridade mental do acusado (em relação ao Código de Processo Penal Militar)

Penal e processo penal militar. Habeas corpus. Violência contra superior hierárquico. Art. 157 do Código Penal Militar. Requerimento de incidente de insanidade mental. Incidente suscitado somente em fase recursal e com base na notícia de internação. Indeferimento. Inocorrência de dúvida razoável. Não caracterizada a ofensa aos princípios do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa. Inadmissibilidade de reexame de prova na via estreita do habeas corpus. Arbitrariedade. Não configurada. Precedentes. Ordem denegada. 1. O Incidente de Insanidade Mental não pode ser objeto de determinação de instauração na via estreita do Habeas Corpus, salvo manifesta arbitrariedade na denegação da realização da perícia. (Precedente: RHC 80.546/DF. Rel. Ministro Sepúlveda Pertence, Primeira turma, julgado em 28/11/2000, DJE 16/02/2001). 2. A Insanidade Mental que legitima o deferimento da instauração do incidente reclama comprovação que induza à dúvida a respeito da imputabilidade pessoal do acusado, na forma do art. 156 do CPP, verbis: "Art. 156. Quando, em virtude de doença ou deficiência mental, houver dúvida a respeito da imputabilidade penal do acusa-

Page 126

do, será êle submetido a perícia médica." 3. A doutrina do tema assenta, verbis: "(...) o exame não deve ser deferido apenas porque foi requerido, se não há elemento algum que revele dúvida razoável quanto à sanidade mental do acusado, não constituindo motivo suficiente a aparente insuficiência de motivo, a forma brutal do crime, atestado médico genérico, simples alegações da família etc., quando despidas de qualquer comprovação (...)" (in Mirabete, Julio Fabbrini - Código de Processo Penal Interpretado, Atlas, 11ª Edição, p. 442). 4. A instância a quo com ampla cognição fática assentou que "(...) a defesa suscitou preliminar de incidência de insanidade mental com base tão-somente na notícia, em fase recursal, de que o apelante havia sido internado em uma clínica psiquiátrica por auto-agressão. A incapacidade do apelante não foi alegada em nenhuma fase do processo, não requerendo em tempo hábil o exame de sanidade mental. Portanto, não deve prosperar. (...) Ademais, apenas a informação de que o apelante se encontra em tratamento psicoterápico e o simples requerimento da Defesa não são suficientes para motivar a instauração do incidente de insanidade mental. É necessário comprovar a doença por meio de Laudo Pericial. (...) Vê-se, então, que os autos não apresentam dados substanciais que possam justificar razoável dúvida sobre a higidez do apelante no momento do crime. Ao contrário, constam do feito elementos contundentes demonstrando que o apelante tinha, à época dos fatos, potencial consciência do ilícito cometido (...)." 5. Deveras, é cediço na Corte: "Ementa: Habeas corpus: questão de fato: incidente de insanidade mental: salvo manifesta arbitrariedade, não é o habeas corpus a via adequada a aferir da existência de motivos para a dúvida do juízo da causa sobre a higidez mental do acusado e conseqüente instauração do incidente pericial para a sua apuração." (RHC 80546/DF. Rel. Ministro Sepúlveda Pertence, Primeira turma, julgado em 28/11/2000, DJE 16/02/2001); "Ementa: Ação penal. Incidente de insanidade mental aduzido em sede recursal. Indeferimento. Cerceamento de defesa. Inexistência. Inocorrência de dúvida razoável. Reexame de prova. Inadmissibilidade em habeas corpus. Precedentes. HC denegado. Não se caracteriza cerceamento de defesa no indeferimento de prova tida por desnecessária pelo juízo processante." (HC 88177/RJ. Rel. Ministro Cezar Peluso, Segunda turma, julgado em

Page 127

15/12/2009, DJE 11/02/2010). 6. Consectariamente, a instauração do incidente de insanidade mental exige: a) a presença de dúvida razoável a respeito da imputabilidade penal do acusado em virtude de doença ou deficiência mental; b) faz-se mister a comprovação da doença, não sendo suficiente a mera informação de que o paciente se encontra sujeito a tratamento; c) o mero requerimento do exame não é suficiente para seu deferimento. 7. In casu, o paciente, ex-soldado do Exército, foi denunciado por ter desrespeitado o superior hierárquico, desferindo-lhe um chute na região do abdômen, além de ter proferido palavras de baixo calão na frente de outros militares, fatos ocorridos em 14/03/2006 (fl. 10). 8. Parecer do parquet pela denegação da ordem. Ordem denegada. (STF, HC 102936/RS, 1ª turma, Rel. Min. Luiz Fux, Data de Julgamento: 05/04/2011, Data de Publicação DJE: 28/04/2011)

Dúvida sobre integridade mental deve ser razoável

Habeas corpus. Processo penal. Incidente de sanidade mental. Indeferimento pelo juízo de origem, fundamentadamente. Cerceamento de defesa não caracterizado. Ordem denegada. 1. A instauração do incidente de insanidade mental requer estado de dúvida sobre a própria imputabilidade criminal do acusado, por motivo de doença ou deficiência mental. Dúvida que há de ser razoável, não bastando a mera alegação da defesa. 2. A falta de realização da perícia médica...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT