Da inaplicabilidade do art. 254-a da Lei das Sociedades por Ações às reestruturações societárias

AutorLucas Braun
Páginas129-138

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1. Introdução

Recentemente, observaram-se no mercado de capitais brasileiro diversas associações envolvendo companhias abertas por meio de reestruturações societárias, resultando na unificação de bases acioná-rias diversas em uma entidade.1 Dado que, em decorrência de tais movimentos societários, ocorreu, em alguns casos, a modificação de controle das companhias envolvidas, suscitou-se debate acerca da aplicação do art. 254-A da Lei 6.404/1976 ("Lei das Sociedades por Ações") a tais operações.

A questão mobilizou a opinião especializada, diante da insatisfação de inves-tidores com a inexistência da oferta pública em razão da alienação de controle,2 reforçando-se, pois, a importância do debate acerca das consequências da mudança de controle de uma companhia aberta em função do redesenho de sua estrutura societária.

Diante desse cenário, algumas vozes vieram à tona para defender a obrigatorie-

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dade de realização de oferta pública prevista no art. 254-A em operações dessa espécie. Destaca-se o Projeto de Lei n. 5.623, apresentado em 14 de julho de 2009 pelo deputado federal Carlos Bezerra que propõe a modificação do § 1o do art. 254-A da Lei 6.404/1976, de modo a constar a seguinte redação:

"Entende-se como alienação de controle a transferência, inclusive aquela efe-tuada mediante incorporação por meio de troca de ações, seja de forma direta ou indi-reta, de ações integrantes do bloco de controle, de ações vinculadas a acordos de acionistas e de valores mobiliários conversíveis em ações com direito a voto, cessão de direitos de subscrição de ações e de outros títulos ou direitos relativos a valores mobiliários conversíveis em ações que venham a resultar na alienação de controle acionário da sociedade" (grifaram-se as modificações em relação ao texto atual-mente em vigor).

O autor do projeto, em sua justificativa para tal proposta de mudança, afirma que "no modo como está definido o dispositivo legal, tal mecanismo que foi instituído para proteger os acionistas minoritários vem sendo burlado pelas empresas, na medida em que estas se utilizam da modalidade de incorporação de uma empresa por meio de troca de ações do acionista controlador por ações de uma empresa do comprador, que se torna o novo controlador".3

Ademais, destaca-se também o artigo de autoria de Leslie Amendolara intitulado "O instituto do tag along e o espírito da lei" e publicado no jornal Valor Econômico em 2 de junho de 2009. Na opinião deste autor, ainda que a não aplicação da obrigação de realização de oferta pública a re-estruturações societárias tenha base normativa, trata-se de interpretação que "não é ética efere o espírito da lei”.4

No entanto, tal linha argumentativa não deve ser admitida, diante da sua patente inadequação ao regramento consagrado na lei do anonimato, em especial no que importa aos fundamentos econômicos e jurídicos que justificam a aplicação do art. 254-A da Lei das Sociedades por Ações. É o que se pretende demonstrar neste artigo.

2. A realização de oferta pública de aquisição de ações em razão da alienação de controle
2. 1 Breve histórico

Partindo-se da noção de que o controle de determinada companhia é um bem em si mesmo, com valor determinável -correspondente não só à simples soma da cotação das ações, mas a uma universalidade com precificação própria, obviamente superior5 - tem-se a conclusão lógica de que este é passível de alienação por aquele que o detém.

Tendo isso em vista, o art. 254-A da Lei das Sociedades por Ações estabelece uma condição (suspensiva ou resolutiva, conforme vontade das partes) de eficácia para referida alienação de controle de uma companhia aberta, a saber: a obrigatoriedade da realização de oferta pública de aquisição de ações. Trata-se de um dos temas mais debatidos do direito societário brasileiro, cuja principal dificuldade pode ser traduzida pela seguinte indagação: a quem cabe o prêmio oriundo da alienação do controle?

Note-se que o anteprojeto que deu origem à Lei das Sociedades por Ações, apresentado por Alfredo Lamy Filho e José

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Luiz Bulhões Pedreira, não contemplava referida obrigação, vez que, no entender de tais juristas, ao passo em que o anteprojeto reconhecia a realidade do poder de controle e atribuía responsabilidades próprias ao acionista controlador, seria incoerente negar-lhe o direito de apropriação integral da mais-valia resultante do controle.6

No entanto, prevaleceu o entendimento oposto, eis que a famosa Emenda Leh-mann incluiu o art. 254 ao texto que resultou na Lei das Sociedades por Ações e, portanto, os demais acionistas com direito de voto passaram a ter direito de receber, proporcionalmente, valor idêntico àquele pago ao acionista controlador quando da compra do controle por um terceiro.

A orientação, elogiada pela maior parte da doutrina,7 fundamenta-se na preposição de que o controle corresponde a um ativo social,8 pertencente, pois, a todos os acionistas da companhia com direito a voto,9 e não apenas ao acionista controla-dor - sem prejuízo do caráter pragmático de tal iniciativa.10

Na segunda metade da década de 1990, a Lei 9.457/1997 retirou o art. 254 da lei do anonimato, com a finalidade de favorecer a execução do plano nacional de de-sestatização.11 Tendo em vista que o estado era o acionista controlador de diversas companhias abertas, garantiu-se a apropriação por este do ágio do controle, bem como se eliminou a possibilidade da privatização ser frustrada pela regra de rateio inserida na norma revogada.

Em nova reforma legislativa ocorrida em 2001, a regra a respeito da obrigação de realização de oferta pública de aquisição de ações foi reintroduzida ao texto da Lei das Sociedades por Ações, com algumas modificações importantes, dentre as quais se destaca que o valor ofertado aos acionistas minoritários passou a corresponder a 80% daquele pago ao controlador. Adotou--se, pois, uma postura conciliatória entre as posições acima descritas,12 a qual permanece em vigor até o momento.

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2. 2 Finalidade do art 254-A da Lei das Sociedades por Ações

Contemplado o histórico envolvendo a obrigação de realização de oferta pública de aquisição de ações em razão da alienação de controle de uma companhia, há de se esclarecer qual a finalidade deste dispositivo legal, de modo a orientar sua melhor compreensão.

É importante afastar, desde logo, afirmações genéricas sobre o assunto, como a de que o art. 254-A é "uma forma de fazer justiça ao acionista minoritário".13 Ao que parece, tal obrigação baseia-se em um conceito claro e bem definido, a saber, a noção do controle como um ativo pertencente à companhia que foi pioneiramente desenvolvida por Adolph Berle,14 em oposição à ideia do controle como um bem de titulari-dade apenas do acionista que o exerce. O objetivo do instituto, pois, é permitir com que os acionistas não controladores participem da mais-valia que o controle possui, quando de sua alienação.15

Com base nessa assertiva tem-se um desdobramento largamente mencionado pela doutrina societária, no sentido de que o art. 254-A objetiva promover o tratamento igualitário entre acionistas detentores de ações ordinárias, ao passo que permite que estes participem da alienação do controle, recebendo o produto pela venda de um bem que, em última instância, também lhe pertence.16

É bem verdade que, a partir de 2001, a nova redação dada a tal dispositivo rela-tivizou seu caráter igualitário, ao passo que reconheceu ao acionista controlador o direito de receber um prêmio quando da venda do controle. No entanto, ainda que se critique a falta de sincretismo metodológico da iniciativa,17 esta não significa, por si só, que o art. 254-A deixou de ter a função disciplinadora acima detalhada, vez que, sua aplicação ainda importa na redistribui-ção - ainda que parcial - do produto da alienação do controle.

Note-se que parte da doutrina18 e a jurisprudência da Comissão de Valores Mo-

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biliários19 identificam no art. 254-A uma finalidade diversa: a obrigação constante de tal dispositivo serviria como uma espécie de compensação aos acionistas em razão da quebra da estabilidade societária motivada pela alienação de controle.20 Contudo, é importante desde logo afastar essa linha interpretativa, pois a lei societária, por meio do instituto do direito de recesso previsto no art. 137 da Lei das Sociedades por Ações, regulou exaustivamente o tema, que serve, pois, de suficiente pro-teção21 ao acionista minoritário das modificações orgânicas implementadas na estrutura da companhia.22

Conclui-se, portanto, que a finalidade do art. 254-A da Lei das Sociedades por Ações liga-se à repartição do valor pago em razão da venda controle de determinada companhia. Ora, diante disso tem-se que tal dispositivo de lei só deve incidir quando se está diante de verdadeira alienação de controle. Daí a importância de definir, com exatidão, o que se deve entender por alienação de controle, como se fará a seguir.

2. 3 A alienação do controle como um negócio jurídico típico

Guerreiro ensina que a alienação de controle a que faz referência o art. 254-A da Lei das Sociedades por Ações é um negócio típico, entendido como negócio que, para atingir sua finalidade e produzir seus efeitos, deve preencher os requisitos do tipo de que faz parte.23

Diante disso, impõe-se ao intérprete e ao aplicador da lei, a necessidade de verificar se estão presentes todos os elementos que caracterizam o negócio típico de alienação de controle, para fins de incidência do art....

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