A teoria do inadimplemento eficiente (efficient breach theory) e os custos de transação

AutorJosé Inacio Ferraz De Almeida Prado Filho
Páginas240-255

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I - Introdução

A primeira vez que a teoria econômica sugeriu a existência de uma quebra eficiente de contrato foi em 1970, em um artigo de RobertBirminghan;1 sete anos mais tarde, o termo theory ofefficient breach foi introduzido por Charles Goetz e Robert Scot2 para batizar o novo campo. Em linhas gerais, essa teoria afirma que o inadimplemento de um contrato aumenta o bem-estar social se os benefícios que a quebra contratual garante ao devedor são maiores do que as perdas geradas para o credor.3 Em outras palavras, se o custo para o devedor cumprir o contrato for maior do que o lucro a ser auferido pelo credor, então o cumprimento do contrato não será socialmente desejável.

Peter Linzer4 ilustra o caso com o seguinte exemplo: Athos é dono de uma marcenaria capaz de assumir apenas um grande projeto por vez. Ele é contratado por Porthos para fabricar 100.000 cadeiras, a um preço unitário de $ 10; cumprir o contrato celebrado renderá a Athos um lucro de $ 2 por cadeira (ou um lucro total de $ 200.000). Antes de qualquer trabalho ser iniciado, Aramis demanda de Athos 50.000 mesas, aceitando pagar $ 40 por cada uma. Assumindo que o custo de produção da mesa é $ 25, a nova proposta renderá a Athos um lucro total de $ 750.000, mas para auferi-lo, ele deverá romper o contrato celebrado com Porthos. No local, há outras marcenarias capazes de produzir cadeiras (como a de D'Artagnan), mas a quebra contratual imporá a Porthos danos de $ 300.000 (por exemplo, atrasos nos prazos, preços mais altos cobrados porD'Artagnan

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em face da urgência, danos morais etc...). Apesar de tais prejuízos, o inadimplemen-to é socialmente desejável porque Athos poderá indenizar todos os danos e ainda reter um lucro de $ 450.000.

Afirmar que a eficiência será privilegiada com a quebra de um contrato pode parecer uma proposição conflitante com teoria econômica, em especial, oposta à noção de que a garantia de um resultado eficiente passa pelo respeito aos contratos e aos direitos de propriedade. Entretanto, o conflito é apenas aparente: uma vez admitido que a racionalidade humana não é plena e ilimitada, fica claro que o processo de obtenção de informações para celebração de um contrato não consegue antecipar todas as contingências que as partes irão encontrar pela frente. Contratos são, assim, intrinsecamente incompletos, e eventos futuros podem transformar alguns deles em avenças ineficientes, cujo cumprimento acarretará destruição de recursos.

Essa necessidade de acomodar eventos futuros e incertos já fora percebida pelo Direito, que respondeu por meio da relati-vização da noção de pacta sunt servanda. É dessa forma que se admite, desde há muito tempo, a resolução dos contratos cujo cumprimento se tornou impossível por motivos de caso fortuito ou de força maior, sem que o devedor responda pelos prejuízos (art. 393, Código Civil). É também assim que surge a possibilidade de resolver contratos de execução continuada ou diferida quando acontecimentos imprevisíveis o tornarem excessivamente oneroso para uma das partes (arts. 478-480, Código Civil); ou então, a possibilidade de reajuste das prestações para manter o seu valor real, quando houver grande desproporção causada por motivos imprevisíveis (art. 317, Código Civil).

De outro lado, colocar a eficiência como objetivo do ordenamento jurídico pode levantar as suspeitas de alguns juristas. A leitura não deve ser apressada. A função do Direito é sempre o bem-estar da sociedade, que pode ser aferido, em linhas gerais, por dois vetores normativos: a eficiência e a eqüidade.5 Esses dois vetores estarão presentes em todo o ordenamento jurídico, mas cada ramo do Direito terá um deles em posição preponderante. Assim é que questões de eficiência podem ter um papel normativo secundário na regulação do direito de família, ou dos sistemas de assistência social; de outro lado, seu papel será central no direito antitruste ou na regulação dos títulos de crédito.

No que respeita ao direito contratual, a eficiência deve ter um papel normativo central. Isso porque ninguém contrata pelo simples prazer de trocar declarações de vontade; todo contrato é celebrado tendo em vista a realização de uma função econômica.6 A importância dessa função econômica para o estudo dos contratos foi defendida por diversos juristas e acabou tão bem aceita a ponto de alguns autores assimilarem a noção de causa no direito privado à função econômica típica do contrato em questão.7 Tomar a causa como a função econômica permite-nos identificar o contrato e definir sua disciplina jurídica, funcionando como elemento de união entre os aspectos econômico e jurídico.8 A partir dessa inter-relação entre Direito e Economia, parece bastante razoável analisar o fenômeno contratual tendo em vista o critério de eficiência como um vetor normativo preponderante.

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A conseqüência disso é que se deve buscar um direito contratual tão eficiente quanto possível, o que só ocorre quando as regras jurídicas criam incentivos que favoreçam tanto cumprimentos, quanto inadim-plementos eficientes. Assim é que as discussões teóricas focaram os remédios disponíveis em caso de inadimplemento (em especial, indenização e performance específica), buscando identificar aquele capaz de levar a uma situação mais eficiente.

Argumentou-se que o remédio eficiente para quebras contratuais deve impor ao devedor uma indenização igual ao benefício que seria auferido pelo credor. Isso internalizaria na conduta do devedor os custos que a quebra contratual imporá ao credor, criando incentivos para inadimplir apenas os contratos ineficientes.9 Com base nessas idéias, alguns autores defendem que a regra mais eficiente para regular inadimplementos contratuais é aquela que prescreve indenização pelos lucros esperados, garantindo ao devedor os incentivos para cumprir apenas os contratos eficientes.10 Entretanto, esse raciocínio deixa de lado alguns elementos fundamentais, em especial, os custos de transação dos diversos remédios e o problema de como mensurar os lucros esperados para fixar a indenização devida.

II - Custos de transação, um modelo canônico de distrato e o Teorema de "Coase"

A formulação da teoria do inadimplemento eficiente apresentada na introdução deste artigo tem mais o intuito de apresen-tar o problema do que de delimitar uma moldura analítica adequada para tratá-lo. Isso porque ela apresenta a questão em um mundo livre de custos de transação.

Uma tal abordagem, batizada por Ian MacNeil11 de simple-efficient breach ana-lisys, desconsidera um ponto central: na ausência de custos de transação, as partes de um contrato ineficiente irão negociar até distratar voluntariamente o acordo, partilhando entre si o excedente. Em um mundo com custos de transação nulos, o problema simplesmente não existirá: os contratos eficientes serão cumpridos, ao mesmo tempo em que os pactos ineficientes serão distratados voluntariamente pelas próprias partes. Esse resultado se verificará independente da regra legal em vigor sobre o descumprimento dos contratos.

Em sua forma mais canônica, o distrato das avenças ineficientes seria ultimado por meio do pagamento, pelo devedor ao credor, de um valor ligeiramente superior aos lucros que este último auferiria com o contrato. Como tal lucro é menor do que o custo de cumprir o contrato, o devedor economizaria a diferença, de forma que ambas as partes estão melhores do que na situação anterior.12

A conclusão de que, em um mundo sem custos de transação, contratos ineficientes serão sempre distratados, não passa de uma aplicação do Teorema de "Coase". As aspas se devem ao fato de esta formulação do teorema (i.e., na ausência de custos de transação, a alocação inicial dos direitos

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de propriedade é irrelevante), de resto a mais conhecida, foi na verdade vocalizada por George Stigler,13 e infelizmente, coloca em evidência o ponto errado.

Como Deidre McCloskey14 ressaltou, os economistas compreenderam errado o Teorema de Coase (agora sem aspas, para denotar que se trata da posição do próprio Coase); mais precisamente, entenderam-no exatamente ao contrário. Ao escrever o trabalho que deu origem ao teorema, Ro-nald Coase procurou chamar atenção justamente para o fato de que os custos de transação não são nulos, e que a alocação original dos direitos de propriedade não é irrelevante.15 Uma prova mais eloqüente da genialidade de Coase pode ser vista na análise da teoria da efficient breach.

Assumir um mundo sem custos de transação implica que o problema não existirá, de maneira que a única abordagem teórica restante é identificar como será distribuído o excedente gerado pelo distrato do contrato ineficiente. Trata-se, evidentemente, de uma abordagem válida, mas que serve para responder a uma outra pergunta, qual seja, de como duas pessoas distribuirão entre si um bem divisível.16 Se o problema a ser tratado é a análise de relações contratuais ineficientes e de como o Direito deve tratá-las, deveremos necessariamente trabalhar com a hipótese de custos de transação positivos. E são justamente os custos de transação que guardam a solução do problema.

III - Teoria do inadimplemento eficiente: a mesma visão, uma outra catedral

A importância dos custos de transação para o direito contratual não foi negligenciada por todos; é dentro do contexto de custos de transação positivos que Ian MacNeil acusa a simple-efficient breach analisys de falaciosa. Por trás dela, afirma, há a pressuposição de que atribuir ao devedor um direito à indenização pelo contrato descumprido seria uma regra mais apta para impedir a execução de contratos ineficientes do que uma outra regra, que atribua ao devedor...

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