In the crossroads: limits and possibilities of using strategic litigation for the advancement of human rights and for social transformation/Nas encruzilhadas: limites e possibilidades do uso do litigio estrategico para o avanco dos direitos humanos e para a transformacao social.

AutorGomes, Juliana Cesario Alvim

Introducao (1)

O litigio estrategico em direitos humanos opera nas encruzilhadas. Ao pretender promover mudancas sociais por meio da litigancia perante instituicoes estatais, regionais e supranacionais, busca trazer para o centro do direito aquilo que tradicionalmente ocupa suas margens. Visa, portanto, a modificar o direito por dentro, forcando-o, estressando-o, na direcao da mudanca social. Por suas caracteristicas, localiza-se nas esquinas em que se cruzam movimentos sociais e instituicoes, direito e politica, plano domestico e internacional, conservacao e transformacao.

Esses cruzamentos sao permeados de tensoes que atravessam tanto a sua reflexao teorica quanto a sua pratica: O emprego do saber, dos procedimentos e da linguagem juridica exclui e violenta aqueles cujos direitos supostamente busca promover? A mobilizacao do aparato judicial reforca um estado nacao cuja conformacao historicamente marginaliza e exclui? A abertura do direito e do sistema juridico para demandas com forte dimensao politica fragiliza sua integridade e, logo, sua legitimidade? A articulacao pela via juridica debilita a mobilizacao politica e promove a normalizacao de demandas marginais potencialmente transformadoras? Como pano de fundo para essas indagacoes esta uma pergunta que foi feita em inumeras oportunidades por litigantes e academicos do direito preocupados com a mudanca social: se pode o direito pode emancipatorio. Isto e, se teria o direito a capacidade de alterar as relacoes de poder, hierarquias e desigualdades sociais existentes (2).

Nesse artigo, parte-se do pressuposto de que o litigio estrategico em direitos humanos tem ao menos o potencial de contribuir com a mudanca social. Isso porque, de um lado, o litigio estrategico volta-se para o manejo do instrumental e das categorias juridicas e o direito nao e apenas um mero reflexo da realidade, mas tambem nela incide sendo apto a, em alguma medida, molda-la (3). De outro, como veremos, as consequencias do litigio estrategico podem extrapolar o sistema juridico (ou a mediacao que ele exerce) e gerar reflexos diretamente na realidade. Finalmente, as proprias tensoes que atravessam o litigio estrategico em direitos humanos podem permitir a maximizacao de seu impacto na medida em que possibilitam e inspiram a adaptacao e a inovacao.

Isso nao significa, contudo, que o litigio estrategico em direitos humanos tera sempre um vies progressista ou emancipador. Com efeito, tanto o instrumento do litigio estrategico pode ser (como vem sendo) usado para fins conservadores (4), como a propria nocao de direitos humanos "pode liberar ou limitar a imaginacao do possivel; pode revolucionar ou conservar". (5) Por isso, pretende-se defender que o potencial emancipador do litigio estrategico em direitos humanos deve ser observado em contexto, tanto na sua dimensao pratica (para que seja efetivado) quanto na sua dimensao teorica (para que seja analisado de maneira critica). Em ambos os casos, deve-se levar em conta as encruzilhadas que o trespassam e a realidade concreta em que se opera. Nesse sentido, a capacidade do litigio estrategico em direitos humanos de provocar mudancas sociais deve ser analisada a luz das condicoes existentes, dos dilemas que se impoem em um determinado contexto e dos paradoxos que permeiam essa pratica em razao de suas caracteristicas especificas.

Assim, o presente artigo possui dois objetivos. Primeiro, busca, por meio de um panorama critico, sistematizar elementos que caracterizam o litigio estrategico em direitos humanos, evidenciando as especificidades dessa pratica e as tensoes, encruzilhadas e contradicoes que revelam seus limites e potencialidades. Segundo, visa a chamar atencao para o fato de que a medida da capacidade do direito e do aparato juridico para a adjudicacao de direitos e promocao da mudanca social dependera de uma articulacao critica entre esses limites e potencialidades e o contexto em que se inserem. Ao contrario, um uso superficial e simplista de uma pratica atravessada por dilemas e contradicoes como o litigio estrategico em direitos humanos pode levar a consequencias indesejadas (muitas vezes nao antecipadas) que vao na contramao do que se pretende. Finalmente, defende que a concretizacao do potencial emancipatorio do litigio estrategico em prol dos direitos humanos dependera de reflexoes teoricas e abordagens praticas complexas, contextualizadas e criticas, para as quais esse artigo pretende ser uma contribuicao.

  1. Nomenclatura, forma e conteudo

    Litigio estrategico em direitos humanos consiste na utilizacao de arenas de litigancia de forma estrategica buscando um impacto que transcenda as partes do caso e contribua para os direitos humanos e a justica social. Na literatura, sobretudo, norte-americana, essa pratica recebe diversas denominacoes cada qual enfatizando uma ou outra caracteristica desse tipo de litigio (6). Litigio de interesse publico (public interest litigation) e litigio de acao social (social action litigation), por exemplo, ressaltam os valores que a movem e para os quais se volta a sua utilizacao (interesse publico, acao social). A dimensao de suas consequencias e enfocada por denominacoes como litigio de impacto (impact litigation) e litigio estrutural (structural litigation). O termo advocacia com causa (cause lawyering), por sua vez, confere destaque para a forma de atuacao dos profissionais do direito que a realizam (7).

    Essas caracteristicas contem elementos de forma e conteudo que constituem traco distintivo do litigio estrategico em direitos humanos em relacao a outras praticas e, em especial, a advocacia como tradicionalmente entendida, que tem como principal objetivo a resolucao de uma disputa. Isso nao significa que quando individualmente consideradas sejam exclusivas desse tipo de litigio, mas sim que, quando identificadas em conjunto, servem para distinguir e descrever esse tipo especifico de pratica.

    1.1: Longos, amplos, complexos e gratuitos

    Com relacao ao formato, os casos de litigio estrategico em direitos humanos destacam-se por sua temporalidade e abrangencia. No que tange ao elemento temporal, tendem a ser mais longos. Em geral, comecam a ser pensados bem antes do ajuizamento da acao e, em alguns contextos, ate mesmo antes do contato com o que, na advocacia tradicional, seria o ou a "cliente". Isso porque a escolha do cliente em si pode ser um elemento crucial para a estrategia empregada no caso. Nesse sentido, a escolha do caso ou dos casos e, ela mesma, estrategica e realizada em razao do maior potencial de atingir objetivos gerais e especificos almejados e dos recursos disponiveis para leva-lo(s) adiante. Alem de comecarem antes, sao casos que terminam depois: nao se encerram com a sentenca favoravel--o chamado "momento da champagne" em que se celebra o sucesso imediatamente apos o fim de um julgamento--, mas envolvem um longo processo posterior de implementacao e negociacao (8). Como afirma Owen Fiss em seu classico artigo sobre o tema dos litigios estruturais no contexto norte-americano, "A parte remedial no litigio estrutural e longe de ser episodica [como no modelo tradicional de disputa-resolucao]. Tem um comeco, talvez um meio, mas nenhum fim--bem, quase nenhum fim" (9).

    A esse respeito, autores chamam atencao para o fato de que casos celebrados por suas sentencas fortes em garantias de direitos e voltadas para mudancas estruturais, na realidade, tiveram pouco efeito pratico e nao se concretizaram por falta de remedios adequados e/ou de mecanismos de monitoramento efetivos (10). Um deles e o celebrado caso Grootboom em que a Suprema Corte da Africa do Sul reconheceu com base na Constituicao daquele pais a sindicabilidade de direitos sociais e, especificamente, o direito ao acesso a moradia adequada. Segundo estabeleceu a Corte, a politica publica de moradia existente deveria assegurar "alivio para pessoas que nao tem acesso a terra, a teto sobre suas cabecas e vivendo em situacoes intoleraveis ou de crise" (11). Apesar da importancia do caso, seu impacto tanto no dia-a-dia dos respectivos autores da acao quanto em outras comunidades vivendo em situacao semelhante segue sendo questionado. Razoes apontadas para sua insuficiencia envolveriam tanto a falta de alocacao clara de responsabilidade entre as diferentes esferas de governo e quanto a falta de mecanismos de monitoramento, alem do fato de a propria corte (e, a certa altura, a Comissao Sul-Africana de Direitos Humanos) ter se desincumbido de realiza-lo (12).

    Assim como no ambito domestico, problemas com a efetivacao de sentencas de direitos humanos tambem sao identificados em casos decididos no plano internacional (13). Embora alguns paises contem com instancias internas especificas para implementacao de decisoes internacionais (como comites interministeriais de alto nivel, comites parlamentares ou sistemas de implementacao direta via cortes nacionais), na maior parte dos casos esse processo e realizado "de maneira ad hoc por funcionarios estatais sem autonomia politica suficiente para fazerem da implementacao uma prioridade"14. Alem disso, problemas de comunicacao e cooperacao entre diferentes poderes e orgaos com "diferentes arranjos institucionais e muitas vezes interesses politicos diferentes ou concorrentes", e, principalmente, a falta de vontade politica sao empecilhos para que uma sentenca favoravel em um caso de litigio estrategico em direitos humanos produza resultados (15).

    Solucoes dialogicas sao apontadas como uma resposta a falta de efeitos concretos provenientes de sentencas em litigios desse tipo. Isso porque, ao estabelecerem exigencias relativas a metas, prazos e relatorios de progresso, deixariam as decisoes substantivas e resultados detalhados para orgaos competentes fora do Judiciario (16). Alem disso, "encoraja[riam] mecanismos de participacao e follow up" como audiencia publicas, comissoes de monitoramento e convites para a submissao de informacoes pela sociedade e o governo, conduzindo a maiores...

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