Da (im)possibilidade de incidência de imunidade tributária em face dos livros eletrônicos

AutorJuliano Del Antonio
CargoProcurador jurídico (Município de Santo Antônio da Platina/PR) Especialista em Direito do Estado (FIO/ PROJURIS Estudos Jurídicos) Bacharel em Direito (Faculdades Integradas de Ourinhos)
Páginas17-25

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1. Introdução

“Os homens fizeram os livros e os livros, por sua vez, formaram os homens. Essa célebre e oportuna frase, cunhada por Paul Chalus, no prefácio da versão francesa da obra “O aparecimento do livro”, da lavra de Lucien Febvre e Henri-Jean Martin, sem nenhum exagero, bem poderia ter servido de mote para o surgimento da imunidade tributária dos livros prevista no texto constitucional pátrio.

A Constituição Federal de 1988 conferiu, em seu artigo 150, inciso VI, alínea ‘d’, imunidade tributária a livros, jornais e periódicos, bem como ao papel utilizado para sua impressão.

Tal premissa se coaduna com o efetivo exercício de um direito fundamental, vale dizer, a liberdade de expressão dos indivíduos, o que seria mormente inviável, não houvesse um mínimo de difusão de cultura e conhecimento.

Não obstante essa necessidade de ampliar o espectro de cognição adquirido, latente à essência humana, tem-se assistindo um rápido e exponencial avanço tecnológico.

É cediço que tais tecnologias não faziam parte do arcabouço de conhecimento do constituinte originário. Em verdade, eram compreendidas tão somente como meras alegorias presentes em filmes de ficção científica.

Acessar uma enciclopédia completa, em busca de um verbete específico, com o simples toque de um dedo, era algo talvez inimaginável no final da década de 1980.

Justamente face esse crescente avanço tecnológico, é que se perquire acerca da possibilidade de se estender a norma imunizante constante do art. 150 da carta magna brasileira, não apenas aos chamados livros digitais – e-books –, mas também a todos os materiais imprescindíveis a sua utilização, mais precisamente, às plataformas de leitura digital – e-readers.

Mas qual interpretação deve prevalecer? Uma interpretação extensiva, a fim de abarcar todo e qualquer instrumento necessário para a confecção e disponibilização dos livros digitais, ou uma interpretação restritiva, isto é, adstrita tão somente ao conteúdo do texto frio da lei?

2. Do poder de tributar do estado e suas limitações

Assevera o art. 3º do Código Tributário Nacional ser tributo toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada.

De plano, faz-se imperioso esclarecer que a Constituição Federal não possui o condão de criar tributos. O que ela estabelece, em seu ínterim, nada mais é do que a

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atribuição delegada aos entes que compõem o Estado brasileiro – União, estados, Distrito Federal e municípios –, de criar tributos dentro da esfera de competência tributária atinente a cada um desses entes da federação.

Sob esse enfoque, aduzem Heleno Taveira Tôrres e Vanessa Nobell Garcia, in verbis:

“No cumprimento das suas funções constitucionais típicas, cada uma dessas pessoas políticas, mediante as atividades inerentes às competências atribuídas, obriga-se a criar seus tributos e efetivar funções de arrecadação e fiscalização dessas receitas, visando à formulação do patrimônio público nacional (2003, p. 80).”

Esse poder de tributar do Estado constitui, na acepção de Aires
F. Barreto
, verdadeiro atributo da soberania estatal, porquanto “o âmbito da competência tributária constitucionalmente outorgado é demarcado pelas balizas postas pela própria Constituição” (2003,
p. 7).

Por competência tributária entende-se, num breve resumo, o poder de instituir, cobrar e fiscalizar tributos. Mais precisamente, no entender de Roque Antonio Carraza, significa:

“(...) a aptidão jurídica para criar in abstracto, tributos. No Brasil, por injunção do princípio da legalidade, estes devem ser criados, in abstracto, por meio de lei (art. 150, I, da CF), que deve descrever todos os elementos essenciais da norma jurídica tributária. (...) Portanto, competência tributária é a possibilidade jurídica de criar, in abstracto, tributos, descrevendo, legislativamente, suas hipóteses de incidência, seus sujeitos passivos, suas bases de cálculo e suas alíquotas. Conseguintemente, exercitar a competência tributária é dar nascimento, no plano abstrato, a tributos (apud SILVA, 2012, p. 5537).”

A competência tributária surge com o desiderato de promover uma coexistência harmônica entre União, estados, Distrito Federal e municípios “enquanto pessoas políticas isonômicas e autônomas dotadas de competência legislativa plena sobre as matérias distribuídas a cada um pela Constituição da República” (Dani; Giacomini, 2012, p. 1).

Por conseguinte, a fim de frear a, nas palavras de Pinto Ferreira, “voracidade do fisco” (apud Moraes, 2004, p. 1734), é que a Constituição Federal enumerou um conjunto de regras tributárias1, visando proteger o contribuinte.

Por tais razões, é que se pode idealizar a competência tributária como uma pista de mão dupla, na medida em que, ao mesmo tempo estabelece o campo de incidência (espectro positivo), mas também serve de baliza delimitadora de não atuação (espectro negativo).

3. O que é imunidade?

Por imunidade entende-se a vedação absoluta, conferida pelo legislador constituinte, ao poder de tributar do Estado. Nas palavras de Ives Gandra da Silva Martins, das formas desonerativas de imposição tributária existentes, a imuni-dade “é a única que se coloca fora do alcance do poder tributante, não havendo nascimento nem da obrigação nem do crédito tributário, por determinação superior” (1998,
p. 31).

Anis Kfouri Jr., consigna no sentido de que a Constituição Federal:

“(...) concede imunidade para as três modalidades de tributos [impostos, taxas e contribuições sociais], mas em artigos esparsos e para pessoas e situações distintas. A imunidade aos impostos, mais discutida e analisada pela doutrina, reside primordialmente no art. 150, aplicando-se apenas aos impostos e para as pessoas e situações estabelecidas, tais como livros, jornais e periódicos e o papel destinado à sua impressão (2010, p. 103).”

Em breves palavras, a imuni-dade é preceito constitucional que mantém fora do alcance impositivo do legislador infraconstitucional determinados bens, fatos ou pessoas, conferindo verdadeira salvaguarda de caráter absoluto aos contribuintes.

Guilherme Augusto Pinto da Silva, preleciona no sentido de consistir a imunidade:

“(...) em estar dispensado, resguardado, incólume, liberado. Aplicandose a definição ao âmbito do direito tributário, a imunidade significa que bens, pessoas e fatos, deixam de ser alcançados pela tributação. Em outras palavras, na imunidade o tributo deixa de ser criado (2012, p. 5536).”

Na lição de Edgard Neves da Silva, a imunidade tem o escopo precípuo de preservar “determinados valores políticos, religiosos, educacionais, sociais, culturais e econômicos, todos eles fundamentais à sociedade brasileira” (apud Martins, 1998, p. 31).

Paulo de Barros Carvalho preceitua a imunidade tributária no sentido de constituir-se como uma:

“Classe finita e imediatamente determinável de normas jurídicas, contidas no texto da Constituição Federal, e que estabelecem, de modo expresso, a incompetência das pessoas de direito constitucional interno para expedir regras instituidoras de tributos que alcancem situações específicas e suficientemente caracterizadas” (Barreto, 2003, p. 8).

Assim, a imunidade decorre de um interesse nacional superior, afeito a retirar do campo de tributação as pessoas, situações e fatos relevantes, ao passo que nos demais institutos desoneradores, vislumbra-se a “veiculação de uma política transitória, de índole tributária definida pelo próprio Poder Público, em sua esfera de atuação” (Martins, 1998, p. 32).

Destarte, nos dizeres de Misabel Derzi, as imunidades são:

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1) (...) normas que somente atingem certos fatos e situações, amplamente determinadas (ou necessariamente determináveis) na Constituição; 2) reduzem, parcialmente, o âmbito de abrangência das normas atributivas de poder aos entes políticos da Federação delimitando-lhes negativamente a competência; 3) e, sendo proibições de tributar expressas (ou fortes), têm eficácia ampla e imediata; 4) criam direitos ou permissões em favor das pessoas imunes, de forma juridicamente qualificada” (apud Dani; Giacomini, 2012, p. 2).

Em resumo, a imunidade detém em seu âmago uma relação bilateral, na medida em que serve de amparo constitucional ao contribuinte, o qual fica imune do pagamento do tributo correspondente, bem como constitui verdadeira barreira ao Estado, coibindo que o mesmo venha a exigir o adimplemento de determinados tributos, face pessoas, bens ou situações2.

4. Da imunidade dos livros, jornais, periódicos e do papel destinado à sua impressão

Importa preliminarmente consignar que as imunidades podem ser classificadas em três espécies, a saber: a) imunidades subjetivas, as quais dizem respeito às pessoas em decorrência de sua natureza jurídica, isto é, que implicam ausência de capacidade contributiva; b) imunidades objetivas ou reais, que abarcam bens, fatos ou situações3;

e c) imunidades mistas, conferidas tanto em face de aspectos subjetivos como objetivos.

Para o fluir deste labor, é necessário entender que a imunidade tributária decorrente da alínea ‘d’, do inciso VI, do art. 150 da Constituição da República, incidente sobre os livros, jornais e periódicos, bem como face o papel destinado à sua impressão – também denominada imunidade tributária cultural (Alexandre, 2009, p. 178) –, tem caráter eminentemente objetivo4.

Desta forma, embora compreenda uma imunidade objetiva5, fazendo com que o conteúdo destes livros, jornais e periódicos possa ser o mais diverso, em nada afetando a efetivação da...

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