Imunidade de jurisdição do estado estrangeiro e o problema da execução

AutorEneas Bazzo Torres
CargoProcurador Regional do Trabalho lotado na PRT da 10ª Região, Brasília. Mestre em Direito pela PUC-RJ
Páginas191-222

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Introdução

Estão desalentados os credores de organismos internacionais e de missões estrangeiras, em sua maioria ex-empregados que tiveram seus direitos judicialmente reconhecidos, porém, não logram alcançar sua efetiva realização, ante a impossibilidade da execução forçada. Esse mesmo desalento, por vezes, manifestam os próprios magistrados, quando admitem inexistir tutela efetiva diante do caso julgado.

Advirta-se, desde logo, que essas dificuldades decorrem de arcabouço jurídico válido e vigente, fruto de opção política do Estado brasileiro, que, pondere-se, propicia mais benefícios do que prejuízos. Por certo que o Brasil, como Estado soberano que é, poderia decidir por desvencilhar-se desse sistema, rompendo tratados e convênios internacionais, e abolir por inteiro a imunidade jurisdicional. Tal providência, que certamente seria festejada por alguns, teria como consequência a imediata retirada de várias cha-celarias estrangeiras sediadas no País, além dos percalços que as missões brasileiras no exterior passariam a enfrentar, porque, em direito internacional, a reciprocidade é princípio ou costume dos mais arraigados.

Considere-se que esse quadro já foi pior; até há pouco mais de vinte anos, vigorava o regime da absoluta imunidade de jurisdição do Estado estrangeiro. Elogiável, portanto, o alinhamento brasileiro a uma corrente progressista, a partir do célebre julgamento da Apelação Cível n. 9.696-3-SP, em que o STF, rompendo com longa tradição, mudou o seu entendimento para em certos casos estabelecer restrições à imunidade1. Esse aresto é tido como o leading case brasileiro no sentido de consagrar inaplicável a imunidade de jurisdição cognitiva para as lides originadas de atos negociais.

O que se propõe é que, enquanto o Estado brasileiro estiver afinado com a tradição da vida diplomática e seguindo os costumes democráticos da comunidade internacional, não haverá suporte legítimo para autorizar qualquer constrangimento a pessoas ou bens de missões estrangeiras. Mas, em contrapartida, sustenta-se também a possibilidade da responsabilização subsidiária da União pela reparação dos prejuízos que essas missões causam a particulares brasileiros, o que encontra indisputável fundamento da Constituição Federal.

Para justificar este entendimento, é necessária a abordagem teórica dos seguintes temas: evolução histórica do instituto da imunidade de jurisdição, pessoal e estatal, como garantia inerente às relações diplomáticas;

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exegese teleológica das normas da Convenção de Viena de 1961, cuja dimensão é muito mais ampla do que se tem afirmado, eis que contempla também garantias para os Estados signatários; compreensão do correto significado da imunidade jurisdicional na perspectiva de conceitos de direito processual universalmente consagrados; histórico da responsabilidade civil estatal e estudo comparativo de sistemas, com enfoque especial no caso brasileiro; dever da União de indenizar, em caráter subsidiário, seus nacionais prejudicados em decorrência de tratados ou acordos internacionais assumidos pelo Estado brasileiro. É o que se passa a expor.

1. Jurisdição e soberania

Como conceito básico, cabe referir que, no âmbito internacional, as relações entre os Estados estão invariavelmente regidas pela ideia de soberania. Seja nos primórdios, enquanto a atividade diplomática era identificada como personificação do monarca, seja a partir do século XIX, quando já firmado o entendimento de que os embaixadores representavam não o rei, mas o seu Estado, sempre essa ideia se fez presente.2

Assim, quaisquer que sejam as variantes do conceito tradicional, estará sempre em evidência a noção de jurisdição como seu elemento marcante, na medida em que consagra a ausência de subordinação, indicando que, na ordem internacional, os Estados não são jurisdicionáveis. Se no plano interno as pessoas, qualquer que seja a sua natureza, não escapam à autoridade do Estado, na dimensão interestatal vigora o princípio do par inparem non habet judicium, regra esclarecida por Bartolo de Saxoferrato e que deita raízes medievais.3 E os rigores desse conceito de imunidade avançam incólumes pelo menos até metade do século XX.4

Este final de século apontou, todavia, para uma nova diretriz que poderá alterar substancialmente as concepções sobre a imunidade de jurisdição. A esse respeito, há sinalizações importantes na Convenção Europeia de 1972, assinada em Basileia, no Foreign Sovereign ImmunitiesActnorte-americano, de 1976, e também, em solo britânico, no State Immunity Act, de 1978. O Brasil, de sua vez — que consagrara durante décadas o princípio da

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imunidade absoluta — a partir do já referido julgado do Supremo Tribunal Federal, de 1989, que afastou a imunidade de jurisdição em causa cujo objeto era ato negocial, parece sentir o impacto desses movimentos que vêm do Norte.

2. As Convenções de Viena

O Brasil é signatário das Convenções de Viena de 1961 e de 1963, a primeira sobre relações diplomáticas5 e a segunda sobre relações consu-lares6, que tornam expressas várias regras fundamentais sobre imunidades, a maioria delas consagrada pela prática internacional, embora algumas outras tenham tido o alcance de revogar parcialmente o costume anterior. É exatamente neste conteúdo de parcial revogação, porém, mediante a fixação de regras escritas, que se localiza a dimensão prospectiva daquele tratado, pois a restrição imposta para as imunidades pessoais ensejou o desenho de uma disciplina sobre inviolabilidades que beneficia os Estados.

A Convenção de 1961 estabelece que os agentes diplomáticos gozarão de imunidade de jurisdição nas ordens penal, civil e administrativa, salvo, quanto a estas últimas, se o interesse for privado (v. g., ações relativas a móveis ou imóveis privados, ações sucessórias, ações ligadas a relações negociais), ou seja, não relacionado com o serviço da missão (art. 31). Relativamente ao pessoal da missão, as imunidades têm o mesmo caráter, ampliando-se, porém, as hipóteses de restrição.

Quanto à Convenção de 1963, também em linhas breves, cabe referir que os representantes consulares não gozam de imunidade absoluta em matéria penal. No pertinente à jurisdição civil, as imunidades alcançam apenas os atos diretamente relacionados com os ofícios consulares, não se estendendo ao pessoal do serviço.

É de superior importância, inegavelmente, a Convenção de 1961, até porque nesta a Convenção de 1963 encontraria a fonte escrita que lhe serviu

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de base. Foi a primeira grande obra de codificação do direito diplomático mediante consolidação de regras consuetudinárias ou estabelecidas em convenções bilaterais. Viena haveria de ser o lugar apropriado para essa Conferência, como elo de ligação ao Congresso de 1815, onde se tinham produzido pioneiramente normas sobre relações diplomáticas, em especial quanto à classificação e precedência — e outro não foi o argumento do convite formalizado pelo governo austríaco. A base dos trabalhos, que se iniciaram em 2 de março de 1961, foi o projeto elaborado em 1958 pela Comissão de Direito Internacional, aprovado depois de receber várias emendas que, entretanto, não lhe alteraram substancialmente o conteúdo. São unânimes os estudiosos em afirmar que a Convenção de Viena,7 mercê da extraordinária adesão recebida, o que lhe empresta caráter universal, e pela sua virtude de positivar um costume muitas vezes controvertido, se coloca entre as grandes obras de codificação do direito internacional.

3. A Convenção de Viena de 1961 e sua projeção normativa

Observa-se não haver discrepância entre os doutrinadores no sentido de que as Convenções de Viena, não obstante a louvável dimensão em que se insere o seu escopo, limitaram-se a consolidar usos, costumes e práticas internacionais anteriores, nada ou muito pouco dispondo contrariamente a estes.8 Esta, aliás, teria sido a razão determinante da expressiva adesão aos seus textos, porque raramente haveria dificuldade de sua conciliação com o direito próprio dos membros da sociedade internacional.

É reconhecida a relevância do esforço de codificação, porque tem o mérito de pacificar o costume a ser aplicado e, a par disso, de reavaliar o significado da regra costumeira que haverá de ter vigência para o futuro. Sob um outro enfoque, é importante também porque, para os Estados que ratificam o texto codificado, as suas normas adquirem força obrigatória (pacta suntservanda). Todos esses elementos se fazem presentes nas Convenções vienenses.9

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O sentido mais eloquente de tais Convenções, porém, parece ser aquele que o professor Alfred Verdross manifestou na condição de Presidente da Convenção de Viena de 1961, e na oportunidade de sua abertura, como reportou Nascimento e Silva:10

"(...) e salientou entre outras coisas que, embora as regras sobre as relações diplomáticas constituam a mais estável e menos controvertida parte do Direito Internacional costumeiro, havia fortes argumentos no sentido de sua codificação numa convenção internacional. Lembrou que a codificação nunca é uma mera declaração do Direito costumeiro; seu objeto é ainda o de precisar as regras consuetudinárias — quase sempre vagas e incertas — e até de transformar práticas...

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