Imputabilidade Penal e suas Eximentes

AutorFernando de Almeida Pedroso
Ocupação do AutorMembro do Ministério Público do Estado de São Paulo. Professor de Direito Penal. Membro da Academia Taubateana de Letras
Páginas483-502

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19.1. Conceito e critério informativo

O homem é ser inteligente e sua capacidade de raciocínio e ponderação constitui o divisor de sua distinção dos animais irracionais. Pode o ser humano orientar-se no tempo e no espaço, dirigir o seu comportamento consoante as noções do certo e do errado, do bem e do mal. Por tal razão, a atitude que ele tomar, segundo seu arbítrio e tirocínio, será ou não censurável, conforme a tenha ou não adequado à conduta social-mente requestável.

O Direito Penal só permite a punição do agente se ele estiver dotado da capaci-dade de entender e determinar-se e se falhar, de modo censurável, na utilização dessa capacidade1102.

Imputar significa atribuir ou, como acentuou Carrara, levar alguma coisa à conta de alguém1103. Indica a aptidão do agente para ser culpável, o que vale dizer, penalmente responsável.

Da mesma forma que no direito privado se fala em capacidade e incapacidade para realizar negócios jurídicos, também se pode falar de capacidade ou incapacidade para responder penalmente a uma ação delitiva1104.

O Direito em geral e muito singularmente o Direito Penal operam sobre pressupostos humanos de normalidade1105.

Nestes termos é que se coloca a questão da imputabilidade.

Imputabilidade penal (Zurechnungfahigkeit), destarte, vem a ser o conjunto das condições pessoais que conferem ao sujeito ativo a capacidade de discernimento e

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compreensão, para entender seus atos e determinar-se conforme esse entendimento. A imputabilidade penal pressupõe, registra Asúa, que o psiquismo do autor disponha da riqueza necessária de representações para a completa valoração social1106.

Embora muitas vezes os termos imputabilidade e responsabilidade sejam empregados com sinonímia, assinalando Hungria que a distinção entre ambos é bizantina e inútil1107, é bem de ver que, não obstante sutil, há diferença. Da imputabilidade decorre a responsabilidade, sendo aquela o pressuposto desta, que é a sua consequência.

O conceito de imputabilidade só adquire precisão, como explica Carnelutti, com o conceito negativo de não-imputabilidade1108. Por esse motivo, o Código Penal não definiu de forma positiva a imputabilidade e preferiu determiná-la de modo negativo, posto tenha estabelecido as hipóteses de sua exclusão, id est, os casos de inimputabilidade.

Para tanto, o diploma penal louvou-se no critério biopsicológico.

Pelo critério puramente biológico a simples constatação de anomalia mental é suficiente para afastar a imputabilidade, pouco importando se a deficiência psíquica influiu na capacidade de entendimento e determinação do sujeito ativo. A mera enfermidade mental basta para anular a imputabilidade, dispensando-se a avaliação psicológica. Pelo critério aventado, acentua Damásio E. de Jesus, perquire-se a causa, e não o efeito1109.

Tal proposição tem o inconveniente, registra Magalhães Noronha, de admitir uma relação causal constante entre a enfermidade e o crime, quando isso não é exato, já que depende de outros fatores, como da etiologia do mal, sua intensidade, momento etc. Ademais, suprime o caráter ético da imputabilidade e coloca o juiz na absoluta dependência do perito1110.

Com fulcro no critério exclusivamente psicológico investiga-se o efeito e não a causa1111, de sorte que a singela verificação da incapacidade de entendimento desintegra a imputabilidade, não denotando relevo se proveio de anomalia psíquica. Esse critério, por sua vez, porque confere elastério exagerado à inimputabilidade, não é infenso a críticas, pois deixa a fórmula muito imprecisa e capaz de estender-se abusivamente a condições que o legislador entendeu não incluir na hipótese, como aconteceu no nosso Direito Penal anterior com a privação dos sentidos e da inteligência1112.

A lei pátria houve por bem reunir os dois critérios, pois proclamou a exclusão da imputabilidade penal pela existência de deficiência mental e pela incapacidade de entendimento ou determinação dela proveniente, de forma a conjugar a causa e o efeito.

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Com a associação do critério biológico ao psicológico, um completa o outro e se define o alcance de ambos. A presença dos estados de perturbação mental determina apenas uma presunção de inimputabilidade ou uma inimputabilidade condicionada, que será julgada efetiva quando verificada realmente a ausência daqueles atributos psíquicos que compõem a inimputabilidade1113.

A aferição da imputabilidade se alicerça, portanto, no critério biopsicológico, por exigir que o sujeito ativo apresente maturidade e sanidade mental.

Maturidade e sanidade mental formam o conjunto das condições pessoais necessárias à capacidade de discernimento e compreensão.

Se não existe a imputabilidade, o sujeito ativo é considerado inimputável e não comete crime por carência de culpabilidade, sem que isso impeça, em certas situações, a aplicação de medida de segurança (v. n. 25.9).

19.2. Maturidade penal

Paralelo ao desenvolvimento físico é que se processa o crescimento psíquico do homem, subindo da pura vida vegetativa do início à plenitude das funções mentais1114.

Para a determinação da maturidade, o Direito Penal pátrio lastreou-se em medida essencialmente biológica, vislumbrando-a em função somente da idade cronológica do sujeito ativo.

Sob esse prisma, o art. 27 do estatuto penal edita que "os menores de dezoito anos são penalmente inimputáveis, ficando sujeitos às normas estabelecidas na legislação especial". E isso tem a sua razão de ser, ressalta Francisco de Assis Toledo. Ninguém, ao nascer, traz insculpidas no espírito as regras precisas do comportamento lícito. É necessário aprendê-las. O preceito, segundo Nélson Hungria, resulta menos de postulados científicos do que de um critério de política criminal1115. Com efeito, continua Francisco de Assis Toledo, nada indica que a idade de 18 anos seja um marco preciso (e nos dias atuais não o é, urgindo seja reduzido o limite etário - acrescentamos) no advento da capacidade de compreensão do injusto e de autodeterminação. É, entretanto, um limite razoável de tolerância1116.

Como quer que seja, a lei presumiu, em razão da idade do agente, que, já atingidos os 18 anos, ele apresenta maturidade para a compreensão dos atos que pratica e para a determinação do seu comportamento.

Se o sujeito ativo ainda não completou 18 anos, a norma penal presumiu que é imaturo (por desenvolvimento mental incompleto) e que não possui capacidade de

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discernimento ou compreensão. Perante a lei, ele é penalmente inimputável, sobejando desprovida de culpabilidade a conduta típica e antijurídica que realizar.

A presunção é juris et de jure e prevalece mesmo contra prova adversa (v. n. 18.11). Assim, ainda que emancipado antes dos 18 anos ou mesmo que denote desenvolvimento mental precoce e acentuado, o menor de 18 anos, se perpetrar fato definido na lei penal como crime, continua inimputável, sujeito apenas à legislação especial relativa a menores (v. n. 18.11).

A inimputabilidade, pela menoridade, deve ser aquilatada no momento da ação típica, e não no da produção do resultado. De tal arte, se o agente, faltando alguns dias para completar 18 anos de idade, desfere golpes de faca na vítima, que vem a morrer depois do autor da conduta completar 18 anos, o sujeito ativo não responde por crime1117.

Nos crimes permanentes, porém, embora o agente tenha 17 anos no dia do início da conduta (como no sequestro, para exemplificar), torna-se penalmente imputável se completa 18 anos antes de cessar a permanência, ou seja, no período em que a consumação se prolonga no tempo em decorrência da ação do sujeito ativo1118.

Como professa a communis opinio doctorum, na contagem dos prazos, em matéria penal, levam-se em conta os dias, meses e anos, e não as horas. Assim, qualquer fração de dia vale pelo dia todo1119. Sob essa perspectiva, a inimputabilidade termina, para aquele que comete o delito, nos primeiros momentos do dia do aniversário em que completa 18 anos, não importando a hora exata do nascimento1120, ou seja, a responsabilidade penal surge à zero hora do dia correspondente ao 18º aniversário. Para este efeito, contudo, apontou com percuciência o Juiz Francisco Menin, do então TACrimSP, a cessação da inimputabilidade não deve ocorrer de forma artificial, com sua antecipação pelo adiantamento, em algumas regiões brasileiras, de 60 minutos à hora legal (de natureza permanente) em decorrência da adoção do chamado horário de verão, de

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vigência transitória e que representa um adiantamento ficcionista do tempo tão só para efeitos de economia de energia elétrica. Nesses casos, deve ser prevalecente a presunção absoluta de menoridade determinada pelo horário legal e normal1121.

A prova da menoridade, realça Mirabete, deve ser feita, em princípio, pela certidão do termo do registro civil, já que se impõe a restrição à prova estabelecida na lei civil quanto ao estado das pessoas1122. Tem-se admitido, entretanto, outra prova idônea, exigindo o STF documento (verbi gratia: cédula de identidade, título eleitoral ou qualquer documento público)1123. Não faz fé, como prova demonstrativa da inimputabilidade, o registro de nascimento do agente providenciado após a prática da infração penal1124. O estudo radiológico dos ossos, contudo, para a verificação da idade, constitui prova para a irresponsabilidade penal1125, já se tendo aceito para esta comprovação, igualmente, a certidão de batismo do acusado1126. É de ponderar-se, todavia, que, na dúvida insanável a respeito da idade do agente, vigora o princípio in dubio pro reo (v. n. 1.6.3), impondo-se a absolvição1127.

19.3. Sanidade mental

Presente a maturidade, presumida com natureza absoluta pela idade do sujeito ativo (v. n. 19.2), é ainda imperioso ele reunir condições...

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