A Inexistência de Improbidade Administrativa na Modalidade Culposa

AutorMarcelo Harger
CargoAdvogado/SC. Doutor em Direito do Estado e mestre em Direito Administrativo (PUC/SP). Professor de Direito Administrativo
Páginas5-11

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1. Introdução

Pode-se dizer que desde que o homem passou a organizar-se em sociedade houve uma preocupação com a moral de seus governantes. Sólon já afirmava que o homem sem moral não pode governar. A busca pela moralidade no exercício das funções públicas, portanto, não é nova. Tampouco são novos os problemas criados pela corrupção em um país como o Brasil, onde durante muitos anos a res publica foi tratada como uma verdadeira cosa nostra. Após a Constituição de 1988, no entanto, surgiram os pressupostos para que essa situação se alterasse. Um dos pressupostos foi a maior autonomia que os agentes do Ministério Público passaram a ter na defesa dos interesses da coletividade.

Outro foi a edição da Lei nº 8.429/92. Paradoxalmente, apesar de ter sido sancionada por Fernando Collor de Mello, a lei “pegou” e se tornou uma ferramenta poderosa no combate à corrupção.

O novo panorama, no entanto, trouxe consigo um novo problema. É que atualmente pode-se identificar uma crença velada, porém bastante forte, de que todos os funcionários públicos são corruptos ou ladrões. Subsiste no imaginário de alguns operadores do direito a ideia de que não haveria servidores públicos interessados no atendimento das necessidades da coletividade, mas sim uma verdadeira quadrilha.

Partindo desse pressuposto, muitas obras têm sido escritas concedendo ao Ministério Público poderes praticamente incomensuráveis. Não há limites à atuação ministerial. O agente do Ministério Público tudo pode e sua atuação não encontra limites.

A lei de improbidade administrativa, por sua vez, que já possui uma redação bastante genérica, tem sido interpretada de uma forma ampliativa. Atualmente quaisquer equívocos ou ilegalidades praticados por um servidor público podem ser enquadrados na lei de improbidade. Não há praticamente nenhum servidor público do primeiro escalão que não esteja sendo processado por improbidade administrativa. Muitas dessas ações, no entanto, são injustificadas e geram danos irreparáveis aos acusados, pois a propositura da ação normalmente é acompanhada de matérias jornalísticas fomentadas pelo próprio Ministério Público. A eventual absolvição, que somente irá ocorrer tempos depois, jamais servirá para reparar o dano causado a essas pessoas que foram marcadas com a pecha de desonestas antes mesmo de terem sido julgadas. A exemplo do que acontecia em tempos idos, dá-se aos acusados uma “pena infamante”, que é mais grave do que aquelas praticadas séculos atrás. É mais séria porque no mundo atual a vergonha não se resume aos membros da coletividade, mas se espalha por toda a nação e quiçá pelo mundo. É mais séria porque implica um retrocesso inadmissível em um Estado de Direito, pois se condena primeiro para julgar depois. É mais séria porque o autor de tais afrontas é aquele que recebeu pela Constituição Federal o dever de ser o curador da legalidade em nosso país.

Para demonstrar a seriedade do problema basta analisar algumas situações corriqueiras na administração pública:

  1. um servidor público que dirigindo um automóvel oficial desrespeita a sinalização de trânsito e em virtude disso colide com o veículo;

  2. um servidor público que recebe um presente de um amigo;

  3. um servidor público que recebe uma cesta de natal;

  4. um servidor público que utiliza folhas de papel da repartição para imprimir um trabalho escolar;

  5. um servidor público que leva para a sua residência uma caneta da repartição pública onde trabalha;

  6. um agente público que julgando atender o interesse público edita um ato administrativo normativo (portaria, instrução, resolução) sem base legal para editá-lo;

  7. um agente público que esquece de publicar na imprensa oficial a notícia de celebração de um contrato com a administração pública;

  8. um agente público que na condição de autoridade coatora venha a ser vencido em um mandado de segurança;

  9. um servidor público que utilize o telefone da repartição para realizar um telefonema pessoal.

Todas as situações apontadas são corriqueiras na Administração Pública e no entendimento do autor do presente trabalho não são causa para a condenação por improbidade de um servidor público. Algumas delas podem dar causa a outro tipo de penalidade, mas jamais improbidade.

Em que pese esse fato, caso a lei não seja interpretada de acordo com a finalidade para a qual se destina, todas essas condutas poderãoPage 6 ser enquadradas na lei de improbidade e há diversas pessoas sendo processadas pela prática de atos iguais ou similares aos descritos. Essas situações desvirtuam o espírito da lei.

É com esse espírito que o presente trabalho é escrito. Não se pretende amenizar as consequências para os responsáveis por atos de corrupção. Apenas se considera que a tentativa de evitar práticas ilícitas tem gerado a paralisação do estado brasileiro. Houve uma verdadeira inversão de valores. O cerceamento de comportamentos que possam propiciar a corrupção tornou-se um fim. A realização de qualquer outra atividade pública vem se tornando secundária em relação à prevenção da corrupção. Instaurou-se um verdadeiro clima de caça às bruxas, que faz com que dificilmente haja um agente público do primeiro escalão que não esteja sendo processado por improbidade administrativa. Esse clima é muito bem retratado por Cármen Lúcia Antunes Rocha:

“A ‘corruptocracia’, vale dizer, governo ambientado na corrupção e que atua acolhendo a sua prática, não pode ser aceita. Nem a ‘corruptofobia’, quer-se dizer, governo e Administração que não atuam segundo as necessidades públicas e o interesse coletivo, mas com medo permanente da desonestidade de todos, também não pode ser acolhida. Este medo ilimitado pode conduzir à produção de normas que paralisem a Administração Pública e comprometam a dinâmica administrativa necessária. Em geral, a ‘corruptofobia’ leva à presunção de que todas as pessoas e, em especial, todos os agentes públicos são não apenas desonestos, mas culpados; não haveria colegas de atividade, mas cúmplices de desonestidade na Administração Pública. O Direito Positivo deve retratar a realidade. Sendo esta freqüente na demonstração da presença de práticas corruptas e corruptoras, deve-se criar, no sistema jurídico, instrumentos para sanear a experiência. Entretanto, a ‘corruptofobia’ faz com que a lei seja produzida não se voltando à obtenção de um fim público, mas apenas ao cerceamento de determinados comportamentos que possam permitir a corrupção. O sistema de Direito deve, isto sim, valer-se de instrumentos asseguradores da prevenção de práticas corruptas e da repressão a estas, quando ocorram. O que ele não pode é fazer secundária qualquer conduta administrativa que não o próprio combate à corrupção. A inércia administrativa, a paralisação ou a extinção de atos e processos, em cujo desempenho poderia haver imoralidade, não atende ao interesse público. Este exige o movimento, a dinâmica administrativa. A atividade administrativa é, em sua essência, o Direito animado pela ação do Estado. Aliás, não há qualquer segurança de que a inércia administrativa também não provoca ou não é conseqüência de atos de corrupção.”1

O raciocínio exposto demonstra a necessidade de uma adequação dos contornos da improbidade administrativa. Isso pode ser feito por intermédio de uma interpretação da Lei nº 8.429/92 mais consentânea com o direito constitucional. A incorreta interpretação da lei de improbidade faz com que diversas pessoas estejam sendo indevidamente processadas por improbidade administrativa, quando na realidade cometeram meras irregularidades. A linha seguida no presente trabalho visa contribuir para a correção dessa situação.

2. O direito e a linguagem

Sabe-se que o direito se expressa por intermédio da linguagem e que a inexatidão da linguagem gera problemas bastante graves2. É necessário, contudo, esclarecer que qualquer palavra, por mais imprecisa que seja, possui um núcleo significativo mínimo3. Não fosse assim, a própria comunicação tornar-se-ia impossível.

Algumas vezes o direito dá a um vocábulo uma significação diferenciada daquela que a ele é corriqueiramente atribuída. Quando não o faz, contudo, o direito alberga a palavra com o sentido corriqueiro que possui de acordo com o vernáculo4.

Essas constatações são importantes porque as conclusões interpretativas jamais podem ser feitas de modo arbitrário. As estipulações decorrentes do sistema ou do sentido vernacular de certo termo vinculam o intérprete e trazem consequências jurídicas. Isso não significa retirar liberdade ao intérprete, pois a interpretação é sempre condicionada pela visão que este tem do mundo. A aplicação dessa visão ao se estipular conteúdos para a norma jurídica, no entanto, sofre limitações. A principal delas é o núcleo semântico do termo interpretado.

Há conceitos que são inequívocos e outros cuja equivocidade dificilmente pode ser sanada5.

É assim que se pode contrapor os conceitos jurídicos determinados aos conceitos jurídicos indeterminados6. Os primeiros são aqueles que delimitam a realidade à qual se referem de maneira precisa e inequívoca ou ao menos possibilitam que possa ser precisada diante do contexto em que se encontram.

Já os segundos, são dotados de um grau de indeterminação bastante elevado, o que dificulta a apreensão de seu conteúdo. Apesar de procurarem delimitar a realidade, eles não o conseguem, a não ser dentro de limites bastante amplos, pois não podem ser quantificados ou determinados rigorosamente. Isso, todavia, não significa que não haja limites para o seu campo significativo. A esse respeito, deve-se ter em mente que todo conceito indeterminado é finito, uma vez que as palavras têm um conteúdo mínimo, sem o qual a comunicação seria impossível.

Verifica-se, assim, que os conceitos jurídicos indeterminados apresentam um núcleo e um halo...

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