Imposto de transmissão causa mortis no arrolamento: Inaplicabilidade do art. 192 do CTN ? Erro material no texto do art. 664, § 4º, do CPC/15

AutorDenise Damo Comel
Páginas219-240

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Ver Nota1

Introdução

O Código de Processo Civil (CPC/15)2, ao disciplinar o procedimento especial do inventário e da partilha, trouxe significativa modificação no tratamento do imposto de transmissão causa mortis (ItCMD) no arrolamento, inclusive com reflexos na regra do art. 192 do CtN3. Por sua vez, um erro material havido no texto do art. 664, § 4º, do CPC/15 parece estar obstaculizando a devida compreensão da alteração legislativa no que tange ao arrolamento comum. É o que se pretende ponderar nas linhas que seguem.

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1. Procedimento especial do inventário e da partilha

O procedimento especial do inventário e da partilha, disciplinado nos arts. 610 a 673 do CPC/15, compõe-se de duas modalidades distintas: o inventário e o arrolamento.

O inventário é o procedimento mais completo e de maior complexidade, previsto para as hipóteses em que não há consenso entre os interessados e também para os casos em que há testamento ou incapaz. Está ordenado nos arts. 610 a 658 do CPC/15.

O arrolamento consiste numa forma simplificada, que se apresenta sob duas variantes: arrolamento sumário e arrolamento comum. O sumário é o procedimento para os casos em que há consenso entre os interessados, inexistência de testamento e de herdeiro incapaz. Pelo fato de ser consensual, segue um rito mínimo, estabelecido nos arts. 659 a 663 e art. 667, todos do CPC/15. Já o arrolamento comum não exige o consenso, apenas a inexistência de testamento, tendo, todavia, limite quanto ao valor dos bens, que deve ser igual ou inferior a 1.000 salários mínimos. A existência de herdeiro incapaz não obsta o opção pelo arrolamento comum, desde que a isso não se oponham os interessados e o Ministério Público. Segue um rito mais simples, regido pelos arts. 664 e 665, também pelo art. 667, todos do CPC/15.

2. Imposto de transmissão causa mortis no inventário

No inventário, cujo procedimento justamente é mais completo, o pagamento do imposto de transmissão deve ser feito no curso do processo judicial, tão logo concluída e lançada nos autos a partilha, mas sempre antes da sentença. É o que se extrai do art. 654 do CPC/15: “pago o imposto de transmissão a título de morte [...] o juiz julgará por sentença a partilha”.

Sendo referido imposto de competência da Fazenda Pública Estadual (CF, 155, I), deverá ela ser intimada previamente ao julgamento da partilha para que se manifeste sobre a regularidade do

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recolhimento, que já deve estar comprovado nos autos. E somente com a manifestação favorável da Fazenda é que a partilha será julgada, ressalvada a hipótese do parágrafo único do art. 654 do CPC/15. É indispensável, de qualquer forma, a intimação prévia da Fazenda Pública no inventário judicial, uma vez que há o condicionamento da prolação da sentença à prova da quitação do tributo conforme exigência do ente fazendário.

O momento da comprovação do pagamento do imposto é bem definido, em norma que não enseja dificuldade de compreensão, tampouco comporta maior questionamento. Com efeito, Marcus Vinícius Rios Gonçalves ensina que, no procedimento do inventário, “depois de prestadas as últimas declarações, será feito o cálculo dos impostos mortis causa e inter vivos”, sendo que, em seguida, “será ouvida a Fazenda Pública e o juiz decidirá sobre o montante, em decisão sujeita a agravo de instrumento”. Portanto, somente “depois de as partes manifestarem-se sobre o esboço de partilha, feito o pagamento de imposto mortis causa, o juiz julgará a partilha por sentença, contra a qual cabe apelação”4.

3. Imposto de transmissão causa mortis no arrolamento sumário

No arrolamento sumário, cujo rito, como vimos, é mínimo, o regramento é diverso: não há essa vinculação do julgamento da partilha ao pagamento do imposto de transmissão causa mortis, tampouco qualquer restrição à liberação dos expedientes subsequentes, necessários à transmissão/apropriação dos bens aos contemplados com a herança (formal de partilha, carta de adjudicação e alvarás), como havia no direito anterior (CPC/73, art. 1.031, § 2º)5.

É o que se extrai do art. 659 e seus parágrafos do CPC/15, que indica a sequência dos atos a ser observada no arrolamento sumário. Primeiro, a homologação (de plano) da partilha (caput), ao que se segue o trânsito em julgado; na sequência, a lavratura do formal

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ou da carta de adjudicação, a expedição de alvarás e, enfim, intimação do fisco para o lançamento administrativo do imposto de transmissão e de outros tributos porventura incidentes (§ 2º).

Disciplina, aliás, que se complementa com o § 2º do art. 662 do CPC/15, ao qual o próprio art. 659 faz remissão, onde se encontra a prescrição de que o “imposto de transmissão será objeto de lançamento administrativo, conforme dispuser a legislação tributária”.

Acrescente-se o caput do art. 662, que diz que no arrolamento “não serão conhecidas ou apreciadas questões relativas ao lançamento, ao pagamento ou à quitação de taxas judiciárias e de tributos incidentes sobre a transmissão da propriedade dos bens do espólio”.

No arrolamento sumário, portanto, tudo o que se refere ao imposto causa mortis passa a acontecer exclusivamente na esfera administrativa, quando já findo o processo judicial (diversamente do inventário, como vimos), liberada, ademais, a Fazenda Pública, do valor atribuído aos bens pelos herdeiros (CPC/15, art. 662, § 2º, parte final), de modo a que o cálculo do tributo seja feito segundo seus próprios critérios de avaliação dos bens do espólio – na hipótese de divergência com o valor estimado pelos herdeiros.

Dessa forma, tem-se que o lançamento e o pagamento do imposto causa mortis não vinculam a homologação judicial da partilha, que deve ser feita tão logo esteja formalizada nos autos, nem tampouco condicionam a liberação dos expedientes necessários à transmissão dos bens do acervo, resolvida, ainda, a questão das dívidas do espólio conforme previsão legal específica (CPC/15, art. 663).

Nesse sentido é o posicionamento de Humberto Theodoro Junior quando leciona, a respeito da homologação da partilha no arrolamento sumário, que será feita “independentemente de vista

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à Fazenda Pública e de recolhimento do imposto de transmissão”6.

Segue, ainda, o autor firmando entendimento de que a “sistemática do arrolamento sumário dos arts. 659 a 663 subtraiu do Judiciário o dever de controlar o recolhimento do imposto de transmissão causa mortis (art. 662, § 1º). Exige, apenas, a intimação do fisco para lançamento administrativo do imposto de transmissão e outros tributos porventura incidentes, conforme dispuser a legislação tributária (art. 662, § 2º), fato que ocorrerá depois de homologada a partilha ou deferida a adjudicação (art. 659, § 2º)”7.

Esse também parece ser o entendimento de José Miguel Garcia Medina quando, a respeito do arrolamento sumário, afirma que, no “regime do Código de Processo Civil de 2015, a prova de quitação dos tributos não é condição para a homologação da partilha. De acordo com o § 2º do art. 659 da nova lei processual, basta que se intime a Fazenda Pública para lançamento do tributo cabível”8.

Intimação essa, acrescenta-se, que será feita após a expedição de todos os atos subsequentes à partilha, já findo o arrolamento, como prescreve o art. 659, § 2º, parte final, do CPC/15.

3. 1 Direito anterior – art 1.031, § 2º, do CPC/73 e art. 192 do CTN

No direito anterior, embora também houvesse previsão idêntica à do atual art. 662 do CPC/15 no sentido de que no arrolamento “não serão conhecidas ou apreciadas questões relativas ao lançamento, ao pagamento ou à quitação de taxas judiciárias e de tributos incidentes sobre a transmissão da propriedade dos bens do espólio” (CPC/73, art. 1.034, caput), assim também de que “o imposto de transmissão será objeto de lançamento administrativo, conforme dispuser a legislação tributária” (CPC/73, art. 1.034, § 2º), havia um obstáculo a que desse modo se procedesse cabalmente. Era a regra contida no art. 1.031, § 2º, do CPC/73, que determinava que o formal de partilha e alvarás decorrentes da sentença de homologação da partilha somente seriam “expedidos e entregues

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às partes após a comprovação, verificada pela Fazenda Pública, do pagamento de todos os tributos”9.

Ocorre que referida norma não foi contemplada no CPC/15, que reproduziu tão somente aquelas que remetem o causa mortis à esfera administrativa (são elas, justamente, as do art. 659, § 2º, e art. 662). Assim, não há fundamento algum para trazer a Fazenda Pública aos atos judiciais do arrolamento sumário. Até porque, a não se adotar esse entendimento, inócua seria a modificação legislativa de não ter repetido a regra do art. 1.031, § 2º, do CPC/73. O atual contexto normativo do arrolamento sumário não deixa dúvida da intenção do legislador de retirar em definitivo da esfera judicial a questão tributária relativa ao imposto de transmissão, desvinculando a conclusão do arrolamento a pendências dessa natureza.

Não obstante, há quem vá buscar no art. 192 do CtN a exigência de condicionamento da sentença de partilha à comprovação do pagamento do imposto de transmissão. Luiz Guilherme Marinoni, por exemplo, assim se posiciona:

Apesar de o art. 659, § 2º, do CPC/15 prever que só depois de transitada em julgado a sentença de homologação de partilha ou adjudicação é que a Fazenda Pública procederá ao lançamento dos tributos...

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