O imposto sobre grandes fortunas à luz da justiça distributiva

AutorTathiane dos Santos Piscitelli
CargoMestre e Doutoranda em Direito na Faculdade de Direito da USP
Páginas127-139

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1. Introdução

De um ponto de vista geral, a tributação pode ser dividida em dois grandes blocos: tributação sobre o consumo e tributação sobre a riqueza. A formatação do sistema tributário com foco em um ou outro tipo depende, substancialmente, das finalidades que o Estado pretende atingir com o exercício da competência tributária. Defensores da tributação indireta, fundamentada no consumo, genericamente afirmam que tal técnica é preferível tendo em vista, basicamente, o estímulo à poupança que esse modo de tributação gera; trata-se de beneficiar aqueles que optam por poupar em detrimento do consumo e, de outro lado, fixar a distribuição dos ônus tributários de forma igualitária, já que o tributo seria diretamente proporcional ao consumo efetivo do cidadão. De outro lado, aqueles que dão preferência à tributação da riqueza (direta) postulam que a oneração do patrimônio é a melhor forma de realizar a justiça tributária, já que evita ou minimiza os efeitos da acumulação de riqueza e onera os cidadãos progressivamente, de acordo com a capacidade contributiva.1

O sistema tributário brasileiro, cujas origens remontam à reforma tributária de 1965, levada a cabo pela Emenda Constitucional 18, é um sistema híbrido, ou seja, distribui competências tanto para a tributação do consumo quanto para a tributação da riqueza. Uma simples passada de olhos pelos dispositivos constitucionais permite concluir que, em nível abstrato, essas duas modalidades de tributação estão distribuídas de forma equilibrada entre os membros da Federação: de forma não exaustiva e com foco apenas nos impostos, IPI, IOF, ICMS e ISS estariam para a tributação do

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consumo, assim como IR, ITCMD, ITBI e ITPU para a tributação da riqueza.

Contudo, concretamente, não há dúvidas de que a dinâmica do sistema tributário, por razões talvez históricas,2 primou pela maior concentração nos tributos incidentes sobre o consumo. Estudos técnicos mostram que, atualmente, a tributação in-direta prevalece no país - cenário não muito distinto daquele presente antes mesmo da promulgação da Constituição de 1988, conforme se nota pelas considerações abaixo, extraídas de um relatório do IPEA datado de 1987: "Os impostos sobre mercadorias e serviços são responsáveis por quase dois terços da receita tributária do país. O imposto sobre a circulação de mercadorias é, destacadamente, a mais importante fonte de receita própria dos Estados e os 20% de sua arrecadação destinados aos Municípios constituem, para um grande número destes, a principal origem dos recursos que financiam as suas atividades. Por outro lado, são de competência da União diversos impostos sobre mercadorias e serviços que correspondem a cerca de metade de sua receita tributária".3

O ambiente de reforma tributária em que se vive atualmente propicia a produção de debates relacionados seja à função da tributação, seja aos contornos que nosso sistema tributário deve adquirir ou valorizar. O projeto de emenda constitucional em andamento no Congresso Nacional tem por foco, especialmente, a melhoria do sistema de tributação do consumo; e, assim, não nega as tendências já consolidadas da concentração dos ônus tributários neste bloco - não se vêem disposições voltadas ao incremento da tributação sobre a riqueza ou patrimônio, corroborando uma ca-racterística que não é nova no nosso sistema.4 Em sentido contrário, entretanto, surge a questão relacionada com a criação do imposto sobre grandes fortunas/IGF ou, mesmo, de uma contribuição que teria a mesma finalidade: onerar aqueles que possuem grande quantidade de patrimônio acumulado.

A criação de um tributo sobre grandes fortunas suscita questões práticas e teóricas. A questão teórica diz respeito a saber se tal tributação é capaz de auxiliar na construção de uma sociedade mais justa, do ponto de vista da distribuição de riquezas. As questões práticas implicam aventar se as vicissitudes envolvidas na efetivação de um tal tributo anulariam os eventuais benefícios distributivos. Questões como essas últimas envolvem, por exemplo, o argumento de que o tributo reduziria os níveis de poupança interna, estimularia a sonegação ou teria níveis ínfimos de arrecadação, que, por essa razão, não causariam modificações substanciais nos serviços públicos prestados àqueles que, em tese, seriam beneficiados com a criação do tributo; para não falar nos perenes argumentos relacionados com a suficiência da atual carga tributária e com o fato de a riqueza já ser tributada por outros instrumentos.5

É fácil ver que tais questões não combatem o mérito do tributo em teoria. Ou seja, elas o combatem não porque o tributo seja ruim ou injusto em si mesmo, mas sim por conta de percalços práticos que ele implicaria. Contudo, ponderar sobre as difi-

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culdades que um tributo como esse geraria ou, mesmo, o não-cabimento de uma nova exação em nosso sistema tributário, já suficientemente complexo, a despeito de ser importante, não dá ao tema a dimensão devida, pois encobre o debate com questões de mera execução ou oportunidade de criação do tributo, sem que se dê a atenção merecida aos temas fundamentais que alicerçam as pretensões dessa exação.6 Em verdade, um dos pontos centrais quando se trata de defender ou rebater um tributo sobre grandes fortunas está relacionado com a função distributiva que tal exação adquiriria; trata-se, em poucas palavras, de promover a menor concentração de riqueza: tanto a viabilidade de tributar as grandes fortunas quanto as eventuais críticas à exação devem ser analisadas a partir dessa perspectiva. O que se quer dizer é que as considerações práticas são importantes e devem ser discutidas, mas só podem sê-lo tendo em vista o mérito do tributo, considerado em si mesmo.

O objetivo deste artigo, então, é o de situar a discussão relativa à criação de um tributo que onere a acumulação de riqueza em um debate diferente daquele em que essa questão vem sendo abordada. Para isso, buscará responder à seguinte pergunta: um tributo como esse cumpre com a função que se propõe? Ou, de outro modo, pode ele promover a distribuição de rendas de uma forma justa, em tese?

Tendo em vista limitações de espaço, não se tem pretensão de lidar com todas as questões que uma concepção distributiva de direito tributário implica. Pretende-se, ao invés, esboçar o pano de fundo a partir do qual se entende que os debates sobre a tributação das grandes fortunas devem ocorrer. De outro lado, mesmo sendo o ob-jeto primordial deste artigo apresentar a discussão teórica que diz respeito ao próprio mérito do tributo, considerações sobre as dificuldades práticas também serão feitas, não porque sejam questões importantes isoladamente, mas fundamentalmente porque o debate acerca dos obstáculos práticos do tributo somente pode ser desenvolvido a partir da consideração do contexto de justiça distributiva em que ele se insere, em uma perspectiva dialética para a qual Paulo de Barros Carvalho já chamou a atenção: "(...) é algo sem sentido cogitarmos do saber, em termos rigorosos, isolando a teoria da prática. A Epistemologia pressupõe a dialética e a interdependência entre as proposições teoréticas e os objetos do mundo, de tal sorte que aquelas, ordenadas racionalmente, possam descrever estes últimos de modo satisfatório".7

Com isso se quer afirmar que defender ou combater a criação do IGF com argumentos que passem ao largo da teoria equivale a mitigar o problema. Passemos, então, à análise da justiça distributiva.

2. O núcleo do problema: tributação e justiça distributiva

Para descrever o que é a justiça distributiva e como o debate sobre o IGF pode ser melhor elaborado a partir desse conceito, tomar-se-á a acepção de John Finnis8 de "justiça", já que não é o objetivo deste artigo elaborar postulações inéditas nesse sentido, mas, tão-somente, aplicar conceitos já existentes ao tema em discussão.

De acordo com Finnis, o conceito de "justiça" contempla três elementos e é aplicado nas situações em que eles aparecem em conjunto. Em primeiro lugar, a justiça é intersubjetiva ou interpessoal - o que delimita esse conceito do ponto de vista prático e não apenas ideal. Segundo o

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autor, "existe uma questão de justiça e injustiça apenas onde há uma pluralidade de indivíduos e alguma questão prática relativa à situação e/ou às interações vis-à-vis entre eles".9 Trata-se, então, de aplicar o conceito de "justiça" para a solução de problemas práticos e, assim, como um instrumento de racionalidade prática. A segunda característica desse conceito agrega um elemento à primeira: a justiça não se preocupa com todas as relações ou disputas existentes entre uma pessoa e outra, mas apenas com aquelas relações que são necessárias ou apropriadas para evitar uma injustiça, que equivale a uma forma indevida de arbitramento de conflito ou distribuição de ônus.10 O terceiro e último elemento relevante ao conceito de "justiça" é a igualdade, pensada como proporcionalidade, equilíbrio ou balanço.

A partir dessas considerações, Finnis relaciona o conceito de "justiça" com um de seus requerimentos básicos de razoabi-lidade prática: aquele que denota o dever de as pessoas perseguirem e favorecerem o bem comum em uma certa comunidade. "Bem comum", nesse aspecto, não deve ser entendido como uma dessas expressões vazias de conteúdo e aplicáveis em quase todas as situações, a depender do discurso que se use. Para Finnis o bem comum está bem delimitado: trata-se de uma série de condições que "possibilitam aos membros de uma comunidade obter para si mesmos objetivos razoáveis, ou realizar razoavelmente para si mesmos o valor (ou valores), para o bem daqueles eles têm razão para...

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