Important, Unimportant: A critical anticipation of the assumptions of legal positivism in Alice in Wonderland/Importante, Desimportante: Alice no Pais das Maravilhas como antecipacao critica das premissas do positivismo de Kelsen.

AutorGhirardi, Jose Garcez
CargoTexto en portugu

Introducao

Quase um seculo separa Alice no Pais das Maravilhas (1865) da segunda edicao, mais robusta e elaborada de Teoria Pura do Direito (1960; a primeira edicao havia sido publicada em 1934). E, no entanto, e possivel sugerir que o romance de Carroll antecipa e enfrenta criticamente muitas das premissas que serao fundamentais para a construcao do classico de Kelsen. Os dois textos, com as diferencas reveladoras que emergem do fato de pertencerem a generos diversos, tem como um de seus elementos centrais as regras e seu funcionamento. O Pais das Maravilhas, como Alice logo se da conta, e um lugar infestado por regras de todos os tipos: elas estao presentes das rigidas demandas de etiqueta na hora do cha, no confuso jogo de croque com a rainha e na insanidade processual com que o romance se encerra. A Teoria Pura do Direito, por sua vez, tem na Grundnorm a base sobre a qual se assenta.

Este artigo discute alguma das premissas subjacentes ao argumento de Kelsen como um exemplo da visao de mundo Moderna que Lewis Carroll disseca com poderosa ironia. (1) A primeira seccao (Sonolenta e burra) discute a critica de Carroll a ideia de que, para se apreender corretamente um objeto (no caso de Kelsen, o Direito), e necessario defini-lo por meio de uma delimitacao que o separe cuidadosamente de outros objetos com carateristicas semelhantes (como, por exemplo, a moral e a politica, no argumento kelseniano). A segunda seccao (Morcegos comem gatos?) discute a nocao de coerencia sistemica e seu impacto na forma de a Modernidade pensar a verdade, o Direito e a sociedade. A terceira seccao (Cortem-lhes as cabecas) explora as relacoes entre o entendimento dos sistemas como entidades axiologicamente neutras e a perpetuacao do poder politico. A quarta e ultima seccao (Importante, Desimportante) explica o sentido em que uma "antecipacao critica" e tanto possivel quanto util para discutir algumas das premissas filosoficas Modernas que servem de base a argumentos centrais para o positivismo juridico. Ela tambem discute as razoes para esse artigo focar no trabalho de Kelsen e nao no contemporaneo de Carroll, John Austin, cujo classico A Provincia da Jurisprudencia Determinada (1832) ainda permanece relevante para o debate juridico contemporaneo. A perspectiva metodologica adotada e a proposta por Francois Ost (2005) em seu influente estudo sobre hermeneutica literaria e juridica.

  1. Sonolenta e burra: a ideia de objetos puros

    ALICE estava comecando a ficar muito cansada de estar sentada ao lado da irma na ribanceira, e de nao ter nada que fazer; espiara uma ou duas vezes o livro que estava lendo, mas nao tinha figuras nem dialogos, "e de que serve um livro", pensou Alice, "sem figuras nem dialogos?". Assim, refletia com seus botoes (tanto quanto podia, porque o calor a fazia se sentir sonolenta e burra) se o prazer de fazer uma guirlanda de margaridas valeria o esforco de se levantar e colher as flores, quando de repente um Coelho Branco de olhos cor-de-rosa passou correndo por ela. (CARROLL, 2009, p.13)

    Na abertura de sua obra-prima, Lewis Carroll nos apresenta a personagem principal como o perfeito antipoda da nocao vitoriana de ser humano racional. (2) Alice nos e descrita como alguem pateticamente despreparado para entender corretamente o mundo. Em primeiro lugar, ela e mulher, portanto (como comumente se acreditava) menos bem equipada para o pensamento abstrato do que os homens. (3) Os ciclos hormonais e a suposta instabilidade emocional que acarretam aconselhava que as mulheres se dedicassem antes a trivialidade das tarefas domesticas que as complexidades das especulacoes filosoficas. (4) Alem disso, Alice e uma crianca, vale dizer, ela carece da agudeza intelectual que caracteriza a vida adulta. Na sociedade vitoriana, as criancas aprendem a controlar seus impulsos: elas sao ensinadas a obedecer em silencio aqueles que sabem das coisas ate que possam estar maduras e educadas o suficiente para formular e expressar adequadamente suas proprias opinioes. (5) Para piorar as coisas, o mundo fisico, representado tanto pela Natureza (e um dia de muito calor) e pelas necessidades biologicas da menina (ela esta com sono e deseja dormir) torna ainda mais improvavel que seja bem-sucedido o esforco de Alice de raciocinar com alguma qualidade.

    E bastante compreensivel, assim, que ela nao consiga ver nenhuma utilidade em um livro sem ilustracoes nem dialogos, como e o caso do volume que sua irma tem em maos ("de que serve um livro", pensou Alice, "sem figuras nem dialogos?"). Ilustracoes e dialogos, afinal de contas, costumam aparecer, sobretudo, em obras de ficcao (por exemplo, romances para mulheres e livros para criancas) que rotineiramente mimetizam a vida quotidiana e seus pequenos dilemas. Ambos estao ausentes (exceto pelo eventual grafico ou tabela) de textos academicos, teoricos, voltados a discussao de ideias gerais e teses de longo alcance. Alice nao consegue dar valor a essas "obras serias" porque, sentindo-se sonolenta e burra, carece das habilidades mentais necessarias para entender e apreciar o tesouro conceitual que tais obras encerram.

    A menina parece assim pouco inclinada a seguir o exemplo da irma e dedicar-se a uma leitura seria. Sua indolencia preguicosa e o oposto exato do comando de Benjamin Franklin: "Nao percas tempo; emprega-o sempre em algo util; suprima todas as acoes desnecessarias" (FRANKLIN, 1963, p.78). Em um exercicio de deliberacao que lembra, humoristicamente, os debates do Utilitarismo vitoriano, (6) Alice tenta decidir o que fazer com base em uma ponderacao entre a quantidade de prazer e de dor que ira derivar de suas acoes (se o prazer de fazer uma guirlanda de margaridas valeria o esforco de se levantar e colher as flores). Ela esta, portanto, ociosa, sonolenta e burra quando, com a sem-cerimonia de sempre, o inesperado da vida concreta se manifesta--um coelho branco, trajando um colete, passa correndo a sua frente--e obriga a menina a responder instintivamente a perplexidade que lhe causa essa realidade nova.

    E significativo que, no romance de Carroll, Alice so seja capaz de observar as incongruencias da vida quotidiana porque, ao contrario de sua irma, ela esta olhando para o mundo que a rodeia e em que esta inserida, nao para os discursos sobre o mundo. Se ela estivesse absorta, como a irma, na leitura de um livro, o Coelho Branco teria passado sem perturbar-lhe as certezas e conviccoes. O fato de que ela nao esteja pensando direito, vale dizer, que seus poderes de raciocinio e de reflexao estejam prejudicados por seu torpor permite a ela "suspender a descrenca" e observar fenomenos que seus esquemas mentais tradicionais descartariam como impossiveis de ocorrer. Ao final do romance, Alice tera vivido uma riqueza de situacoes que lhe permitirao atingir um tipo de sabedoria pratica com que sua estudiosa irma nem mesmo sonha.

    O humor de Carroll sugere, assim, um ganho inesperado na indolencia de Alice. Ele observa que "quando pensou sobre isso mais tarde, ocorreu-lhe que deveria ter ficado espantada, mas na hora tudo pareceu muito natural" (CARROLL, 2009, p. 13). Alice deveria (ought to) ter ficado espantada, pois um Coelho com um bolso de colete e um relogio dentro dele nao e algo previsivel (nem mesmo possivel) dentro das representacoes de mundo em que foi criada. E apesar de tudo, um coelho branco de fato passou correndo, ela poderia dizer --nao obstante terem lhe dito que um evento como esse nao deveria ser possivel, ele esta, contudo, ocorrendo bem a sua frente. A distincao precisa entre dever ser (ought to) e ser (is), (7) central para a teoria de Kelsen, (8) nem mesmo cruza a mente de Alice quando a menina e confrontada com a intricada realidade dos fatos. As ponderacoes racionais, desde o inicio do romance, parecem secundarias para esta menina, cujas acoes derivam, prioritariamente, dos impulsos e da emocao.

    A intricada realidade dos fatos, entretanto, e exatamente o que a teoria kelseniana necessita controlar para que possa funcionar a contento. Diametralmente oposto a postura adotada por Alice (que nao se espanta quando deveria), Kelsen ira desenvolver sua obra tracando fronteiras claras e definidas para o objeto juridico, separando nitidamente ser de dever-ser ([p]rocura--a teoria--responder a esta questao: o que e e como e o Direito? Mas ja nao lhe importa a questao de saber como deve ser o Direito, ou como ele deve ser feito) (KELSEN, 2009, p.1). Ele adota o procedimento de um cientista natural examinando um especimen: um botanico estudando uma arvore ate entao desconhecida, um geologo analisando um novo tipo de rocha. O Direito e um objeto que deve ser compreendido pela Razao, sem paixoes nem interesses. Para isto, e importante depura-lo daqueles elementos axiologicos (crencas religiosas, principios morais, preferencias politicas) que poderiam impedir a postura de neutralidade e imparcialidade que caracteriza o verdadeiro academico.

    Os sistemas juridicos, entretanto, nao sao arvores, nem pedras. Eles nao ocorrem naturalmente no universo, mas sao produto da acao humana e, com enorme frequencia, resultam de intensas batalhas entre partidarios de crencas e interesses muito diversos. Ao aplicar a metodologia das Modernas ciencias duras ao Direito, Kelsen (consciente e programaticamente) exclui de suas consideracoes a dimensao politica e intencional que se encontra inscrita na logica mesma do sistema. Ele assassina para dissecar, para citar o famoso verso de Wordsworth em Virando as Mesas, vale dizer, ele decide estudar uma criacao humana eminentemente politica e intencional (que incorpora uma serie de decisoes sobre o que deve ser feito) deixando de lado, precisamente, essas dimensoes politicas e intencionais. (9)

    O novo objeto, formado por essa excisao, torna-se entao apto a ser tratado como um objeto puro--o Direito enquanto tal--e pode ser submetido, sem sobressaltos, a objetividade que caracteriza o escrutinio da ciencia Moderna. (Ela--a teoria--pretende libertar a...

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