Responsabilidade ética, tecnociência e direito no imperativo de Hans Jonas: uma reflexão multicultural necessária

AutorIsabel Cristina Brettas Duarte; Noli Bernardo Hahn
Páginas99-112

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“São os tempos de grande perigo em que aparecem os filósofos. Então, quando a roda rola com sempre mais rapidez, eles e a arte tomam o lugar dos mitos em extinção. Mas projetam-se muito à frente, pois só muito devagar a atenção dos contemporâneos para eles se volta”.

(F. Nietzsche, A vontade de poder).

1 Considerações iniciais

Para Hans Jonas12, deve-se avançar de uma ciência eticamente livre para uma ciência eticamente responsável. Neste apelo, encontra-se a crítica central a modelos de compreensão que necessariamente devem ser questionados em função do que se impõe como objetivo maior de cada indivíduo: viver de tal modo que permaneça a vida humana, de forma autêntica, sobre a Terra.

Para compreender este imperativo de Jonas, torna-se relevante, nestas considerações iniciais, lembrar que, na História da Filosofia, há, pelo menos, três grandes matrizes teóricas de reflexão ética, sendo que numa delas Hans Jonas pode ser referido como um dos inspiradores. Trata-se da moral essencialista, da moralPage 100 subjetivista ou individualista e da ética da responsabilidade.3 A ética da responsabilidade é a vertente que remete a Jonas.

A moral essencialista provém das tradições greco-latina e judaico-cristã. Esta vertente teórica é conhecida também como ética de princípios, pois entende a ética como um conjunto de normas/princípios que devem servir de base para o comportamento moral dos indivíduos em toda e qualquer situação. Neste entendimento, as regras de conduta moral - o que é bom e o que é mau para as pessoas e para a sociedade – já estão definidas desde sempre, em essência. Ao indivíduo cabe somente aceitar tais regras. Compreende-se que não aceitar tais regras pode acarretar sérias consequências ao indivíduo e a toda a comunidade. A coesão da sociedade pode comprometer-se se os indivíduos não seguirem as regras determinadas desde sempre. A moral essencialista, portanto, possui seu alicerce em princípios transcendentes. Isso significa que as regras de conduta moral são exteriores ao sujeito. No geral se acredita que elas foram ditadas por algum ser exterior à história humana, sem a participação do humano. Deus, por exemplo.

A moral subjetivista ou individualista constitui-se de uma reflexão da modernidade. Na era moderna, a subjetividade ocupa um lugar central na busca de uma maior autonomia e liberdade dos indivíduos frente às instituições. O princípio que norteia a modernidade é que o indivíduo não deve se guiar pela tradição e por um conjunto de verdades preestabelecidas, mas deve ele mesmo escolher o que é melhor para si e para a sociedade. O critério para esse discernimento não precisa ser procurado fora do indivíduo, ele se encontra em cada sujeito: a minha razão.

A ética da responsabilidade faz sérias críticas, tanto à vertente subjetivista, quanto à essencialista. A diferença básica entre a ética da responsabilidade e estas outras compreensões é que ela não se orienta somente por princípios, nem pela razão individual, mas principalmente pelo contexto e pelos efeitos que podem causar nossas ações. Por integrar os efeitos como orientadores de ações, o cuidado e o temor em relação à técnica, para a ética da responsabilidade, é central. Desde a ótica da ética da responsabilidade, as normas morais, assim como a sociedade, não são fruto de uma ordem transcendente. A sociedade é criação dos próprios seres humanos. O objetivo das normas numa sociedade é assegurar a sobrevivência do grupo social, de cada indivíduo e, na perspectiva de Hans Jonas, da humanidade, dos que ainda não existem, e só de acordo com este objetivo se justifica o seu cumprimento.

Com esta breve introdução, o Princípio Responsabilidade de Hans Jonas relacionado com Tecnociência e Direito é o tema que se aborda a seguir.

2 O Princípio Responsabilidade de Hans Jonas, Tecnociência e Direito

De origem judia, Hans Jonas nasceu na Alemanha, em 1903, e morreu em Nova York, em 1993.4 No momento em que percebeu que o novo agir humanoPage 101 possibilitado pela técnica não se enquadrava nos cânones da ética tradicional, também percebeu a vida como um experimento envolvendo apostas e riscos cada vez maiores. A obra Das Prinzip Verantwortung – Versuch einer Ethic für die Technologische Zivilización (O Princípio Responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica) foi publicada em 1979 na língua materna do autor – o alemão - e traduzida para o inglês somente em 1984. Sua proposta se contrapunha ao imperativo kantiano, proposto nos moldes do positivismo jurídico que vigorava no século XIX, sob a influência da Escola Positivista de Augusto Comte. Kant propunha a construção de uma teoria pura do Direito, garantindo a segurança da sociedade.5

O imperativo categórico kantiano – age de tal forma que a máxima e tua vontade possa sempre valer como princípio de legislação universal - implica em si mesmo uma obrigatoriedade absoluta relacionada ao dever. Já Hans Jonas, ao afirmar que nenhuma ética tradicional nos instrui sobre as normas do bem e do mal às quais se devem submeter as modalidades inteiramente novas do poder e de suas criações possíveis, alertou para a insuficiência desse modelo kantiano. Propôs, então, um novo imperativo: aja de modo a que os efeitos de tua ação sejam compatíveis com a permanência de uma vida humana autêntica sobre a Terra; ou, expresso negativamente: aja de modo que os efeitos da tua ação não sejam destrutivos para a possibilidade futura de uma tal vida; ou, simplesmente, não ponhas em perigo a continuidade indefinida da humanidade na Terra.6

No momento em que Hans Jonas percebeu que o novo agir humano possibilitado pela técnica não se enquadrava nos cânones da ética tradicional, também percebeu a vida como um experimento envolvendo apostas e riscos cada vez maiores, e que o destino do ser humano para a liberdade pode levar tanto à catástrofe quanto ao êxito. Assim, desejava que o ser humano pudesse chegar a uma nova compreensão de sua unicidade quando deixasse de considerar a si próprio um ser metafisicamente isolado, partindo da afirmação de que mesmo em suas estruturas mais primitivas, o orgânico já prefigura o espiritual, e que mesmo em suas dimensões mais elevadas, o espírito permanece parte do orgânico, buscando demonstrar a validade e a inseparabilidade uma da outra.

Hans Jonas promoveu um encontro entre a vida e o corpo no contexto da doutrina do ser. Aliás, muito do pensamento jonasiano é devido aos ensinamentos do filósofo alemão Martin Heidegger, de quem foi discípulo, o qual partiu da reflexão sobre a condição dada da existência humana, o Dasein. Por isso, sua obra cujo principal livro é “O ser e o tempo” (1927), costuma ser caracterizada como existencialista, pois Heidegger se ocupou com a questão do próprio ser, do modo de ser humano. Por isso, antes de prosseguir com a obra “O Princípio Vida”, num breve parêntesis, é interessante mencionar alguns tópicos principais do pensamentoPage 102 de Heidegger, na medida em que Jonas o retoma em vários momentos da sua obra ao tratar da questão do ser.

Embora entendesse que o ser é transcendente, pois está incluído em todas as coisas sem se definir em nenhuma, para Heidegger, a existência é, em primeiro lugar, um ser-aí e um ser-no-mundo, pois o ser humano é um problema para si e também uma possibilidade aberta, de ser ou não ser, de se alienar ou de se realizar, de criar ou de destruir – possibilidades estas que Jonas retomou para formular o Princípio Responsabilidade. Assim, Heidegger partiu de uma realidade irrefutável – a de que o ser humano existe, e não apenas existe como também existe no mundo: na realidade, na subsistência, na consciência; com suas possibilidades, escolhas, compreensões. Independentemente de sua vontade, está no mundo; precisa fazer e assumir suas escolhas.7

Ontologia é justamente essa busca do sentido do ser, essa busca do que caracteriza sua estrutura, sua constituição, sua existência. Nesse contexto de existência e de possibilidade, é possível assumir ou negar a existência. A ontologia fundamental de Heidegger consiste justamente em investigar as estruturas fundamentais do ser-aí humano, como por exemplo, nossa ligação prática com o mundo: estamos inseridos numa família, numa sociedade, numa economia, numa língua, e tudo isso precisa ser considerado quando se trata do ser.

Para Heidegger, por causa desse modo de ser, em razão de tantas possibilidades e preocupações - como por exemplo, a de ser e de não ser, de que já falava Shakespeare três séculos antes - é possível afirmar que o ser humano vive a experiência da angústia, mas precisamente em razão da sua condição de ser-no-mundo e de ser-para-a-morte, que veio do nada e para o nada voltará. Entre tantas possibilidades, uma certeza inexorável: a da morte como limite absoluto do ser humano, que nos conclama para a vida, para assumirmos a existência, bem como a liberdade e a responsabilidade que dela fazem parte. O ser pode, por exemplo, se revelar ou se encobrir, de revelar ou não seu próprio sentido, mas o ser nunca se deixa apreender e dizer conceitualmente. Se buscar o ser-si-mesmo, alcança a autenticidade e dá um sentido à existência do ser-aí.

Assim, entendeu Heidegger que a existência nunca é um objeto concluído, mas sim uma construção baseada em possibilidades (ser-em), as quais são dadas numa determinada historicidade e temporalidade. Num grande diálogo, o ser humano está ligado ao outro (ser-com) e ao mundo material (ser-no-mundo), de forma que essas relações são constitutivas das nossas vidas, pois o mundo e as pessoas têm uma existência concreta e contextualizada historicamente e temporalmente. Aliás, como já dito, o próprio Hans Jonas por diversas vezes retomou abertamente esses ensinamentos de seu mestre.8

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Dessa maneira, para Jonas, o novo imperativo diz que podemos arriscar a nossa...

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