Da impenhorabilidade da pequena propriedade rural e da sua irrenunciabilidade

AutorWylton Carlos Gaion
CargoAdvogado Especialista em Processo Civil pelo Instituto de Direito Constitucional e Cidadania (IDCC) Pós-graduando em Direito Aplicado na Escola da Magistratura do Paraná
Páginas35-40

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1. Introdução

O presente artigo tem por escopo tratar sobre a impenhorabilidade da pequena propriedade rural, pre-vista no art. 5º, inciso XXVI, da Constituição Federal, e no art. 649, inciso VIII, do CPC, expondo os requisitos e características de referido instituto.

Assim, inicialmente será trazida a conceituação de pequena propriedade rural, seus requisitos, para depois demonstrar sua impenhorabilidade.

Por fim, será tratada a questão de sua irrenunciabilidade, mesmo que dada em garantia em mútuos, posto que referida garantia é indisponível e irrenunciável, considerando o bem jurídico tutelado, que é a digni-dade da pessoa humana e a proteção da família, posto que referida irrenunciabilidade permite a efetivação da proteção constitucional.

2. Da pequena propriedade rural

Antes de trazer uma breve conceituação sobre a propriedade de-ve-se ter em mente que o contexto histórico do país das décadas de 60 e 80 era de grande êxodo rural, com inchaço dos grandes centros urbanos, aumento de desemprego, bem como diversos conflitos envolvendo a disputa pela terra.

Referido contexto influenciou sobremaneira a legislação brasileira, e posteriormente a Constituição Federal de 1988, a tutelar a pequena propriedade rural, trazendo ao ordenamento jurídico a concepção da impenhorabilidade da proprie-dade rural.

Assim, no ano de 1964 foi criada a Lei 4.504, conhecida como Estatuto da Terra, que tinha, entre outros, o intuito de regular o uso da terra para fins de uso, ocupação e fundiários, e reforma agrária.

O art. 649, inciso X, do Código de Processo Civil (CPC), incluso pela Lei 7.513/86 estabeleceu a impenhorabilidade de “o imóvel rural, até um modulo, desde que este seja o único de que disponha o devedor, ressalvada a hipoteca para fins de financiamento agropecuário”.

Já em 1988, a Constituição Federal, visando dar uma maior proteção à pequena propriedade rural, erigiu-a ao patamar de direito e garantia individual, dando-lhe a proteção de impenhorabilidade absoluta, retirando a ressalva da hipoteca para fins de financiamento agropecuário, conforme estabelecido no seu art. 5º, inciso XXXVI.

Com efeito, Paulo Bonavides ao comentar referido artigo ensina que se trata de:

“norma que visa a proteger famílias menos favorecidas que vivem do que produzem em suas pequenas propriedades rurais. É uma espécie de bem de família agrário. Porém, essa norma só será eficaz se os débitos forem provenientes de atividade agrícola. Quis o legislador constituinte prestigiar a função social da propriedade tanto que fez com a usucapião pro labore

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do artigo 191 do texto constitucional. Há interesse social em manter a família presa à propriedade rural. Quanto mais famílias, maior o desenvolvimento agropecuário do país. Note-se que somente serão impenhoráveis as pequenas propriedades rurais que sejam produtivas graças ao trabalho de uma família aí assentada. Ou seja, não está protegida a propriedade rural, mesmo que pequena, se pertencer a uma só pessoa. Finalmente, a vantagem da impenhorabilidade somente se aplicará se o débito foi feito tendo em vista a atividade produtiva agrícola e para a qual a lei disporá sobre os meios de financiar o desenvolvimento. Para outros tipos de débito, a proprie-dade estará livre para ser executada” (Bonavides, 2009, p. 151).

Deve-se, esclarecer que a norma foi inserida no rol dos direitos e garantias fundamentais do art. 5º – um dos mais importantes artigos de nossa carta maior –, e foi colocada poucos incisos além daqueles que garantem o direito de proprie-dade e comandam que ela deve desempenhar uma função social.

A colocação topográfica da norma está a sugerir, portanto, a sua vinculação com a garantia de intangibilidade um certo tipo de propriedade rural – aquela vinculada à ideia de propriedade familiar – como forma de garantir a dignidade da pessoa, propiciandolhe local onde ela e sua família pudessem continuar a trabalhar e a residir.

Desta maneira, mister esclarecer que, uma vez configurado que o bem imóvel se trata de pequena propriedade rural, corolário lógico é sua impenhorabilidade absoluta e irrestrita.

Em se tratando de direito e garantia individual, a impenhorabilidade da pequena propriedade rural é intangível, fazendo parte do núcleo imutável da Constituição Federal, conhecido como “cláusulas pétreas”, nos termos do art. 60, § 4º.

2.1. Do conceito de propriedade

Para se saber o que é pequena propriedade rural, mister rever, ainda que de maneira sucinta, o conceito de propriedade.

A Constituição Federal contempla o direito à propriedade no artigo 5º, inciso XXII, segundo o qual “é garantido o direito de propriedade”.

O conceito de propriedade é amplo, relacionado ao caráter patrimonial, ou seja, aos direitos reais, conceituação atribuída pelos doutrinadores civilistas, no entanto, com a Constituição de 1988 vieram as definições originadas de interpretações do próprio texto constitucional.

Discorrendo sobre a relação homem e coisa, Celso Bastos explica que o conceito de propriedade previsto na constituição cidadã é mais ampla do que o previsto no direito civil, que define referido instituto de maneira mais incisiva e estrita. Neste sentido:

“O conceito constitucional de propriedade é mais lato do que aquele de que se serve o direito privado. É que do ponto de vista da Lei Maior tornou-se necessário estender a mesma proteção, que, no início, só se conferia à relação do homem com as coisas, à titularidade da exploração, de inventos e criações artísticas de obras literárias e até mesmo a direitos em geral que hoje não o são à medida que haja uma devida indenização de sua expressão econômica” (Bastos, 2004, p. 128).

Segundo o doutrinador Gilmar Mendes, a conceituação de propriedade “para a definição passa ser a ‘utilidade privada’ (Privatnutzigkeit) do direito patrimonial para o individuo, isto é, a relação desse direito patrimonial com o titular” (Mendes, 2010, p.519).

Já para o doutrinador Ylves de José de Guimarães a ideia de propriedade está vinculada à concepção de patrimônio:

“O direito de propriedade é ‘abrangente de todo patrimônio, isto é, os direitos reais, pessoais e a propriedade literária, artística, a de invenções e descoberta. A conceituação de patrimônio inclui o conjunto de direitos e obrigações economicamente apreciáveis, atingindo, consequentemente, as coisas, créditos e os débitos, todas as relações jurídicas de conteúdo econômico das quais participe a pessoa ativa ou passivamente’” (apud Carvalho, 2006, p. 533).

Assim, demonstrado o conceito de propriedade, passa-se a demonstrar os requisitos constitucionais da pequena propriedade rural.

2.2. Dos requisitos da pequena propriedade rural

Ao fazer a leitura do dispositivo constitucional previsto no art. 5º, inciso XXVI, da Constituição Federal, é possível perceber que os requisitos para a configuração da pequena propriedade rural são: a) ser pequena propriedade, nos termos da lei; b) ser trabalhada pela família; c) a dívida ser decorrente de sua atividade produtiva.

Até o momento inexiste lei específica que regulamente o supracitado dispositivo constitucional. Em outras palavras, não há, ainda, no ordenamento jurídico nacional, lei que defina, para efeitos de impenhorabilidade o que seja “pequena propriedade rural”.

Porém, em que pese referida lacuna legislativa, é certo que referido...

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