Imagens de uma Outra Modernidade: Gilberto Freyre e o espaço-tempo latino-americano

AutorSérgio B. F. Tavolaro
CargoProfessor Adjunto do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade de Brasília
Páginas196-231
DOI: http://dx.doi.org/10.5007/2175-7984.2016v15n34p196
196 196 – 231
Imagens de uma Outra Modernidade:
Gilberto Freyre e o espaço-tempo
latino-americano1
Sergio B. F. Tavolaro2
Resumo
Tempo e espaço são duas categorias fundamentais no programa intelectual de Gilberto Freyre.
Sem perder de vista sua produção mais conhecida e celebrada voltada à compreensão da forma-
ção brasileira, o presente artigo almeja identif‌icar os sentidos e conotações que o autor confere a
ambas as noções em suas ref‌lexões a respeito do lugar e importância da América Latina no con-
certo da modernidade. Conforme pretendo mostrar, a seu ver, o tempo-espaço latino-americano
não poderia de modo algum ser reduzido ao das chamadas sociedades modernas centrais, seja
no plano conceitual, seja em sua dimensão de experiência prática, o que em boa medida ajudaria
a explicar formas de sociabilidade marcadamente distintas num e noutro contextos. Por f‌im,
pretendo investigar a existência de eventuais convergências entre essas preocupações de Freyre e
algumas abordagens contemporâneas no seio da teoria sociológica.
Palavras-chave: Modernidade. Gilberto Freyre. Teoria sociológica. Pensamento social brasileiro.
I
Do encontro, interpenetração e simbiose envolvendo culturas tão diver-
sas e variadas quanto a ameríndia, a dos negros da África e a dos latinos da
Europa, asseverou Gilberto Freyre em certa ocasião, teriam resultado “novos
tipos de relações entre grupos humanos e em atitudes do Homem para com a
Natureza, para com o Espaço e para o Tempo que já podem ser consideradas
atitudes especicamente latino-americanas.” (FREYRE, 2003, p. 33) A bem
1 Este artigo resulta de uma pesquisa que se benef‌icia de apoio do CNPq (Bolsa Produtividade). Os argumentos
aqui desenvolvidos foram apresentados em uma primeira versão no XVII Congresso Brasileiro de Sociologia
(2015), no GT 34 Teoria Sociológica. Agradeço pelos comentários e sugestões então recebidos bem como por
ocasião da submissão deste trabalho à revista Política & Sociedade.
2 Professor Adjunto do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da
Universidade de Brasília (UnB). Bolsista Pesquisador 1D CNPq.
Política & Sociedade - Florianópolis - Vol. 15 - Nº 34 - Set./Dez. de 2016
197196 – 231
da verdade, tempo e espaço são duas categorias do entendimento fundamentais
em seu programa intelectual. Sua vasta e multifacetada obra interpretativa
acerca da formação social brasileira remete-se de maneira profusa e extensa
a ambas as noções para avançar a tese de que a nossa seria uma sociedade
marcada por peculiaridades iniludíveis, um quadro societário único e espe-
cial na modernidade (FREYRE, 2004; FREYRE, 2000a; FREYRE, 2000b;
FREYRE, 1990; FREYRE, 1976; FREYRE, 1973b; FREYRE, 1941). Como
bem sabemos, para o autor pernambucano, haveria aqui outros sentidos de
tempo, assim como tipos de espaço distintos daqueles observados entre as so-
ciedades da Europa setentrional (ARAÚJO, 1994; BASTOS, 2006; BURKE;
PALLARES-BURKE, 2009; LARRETA; GIUCCI, 2007; SANTOS, 2008;
TAVOLARO, 2013; VILLAS BÔAS, 2006).
O presente artigo almeja abordar esse importante aspecto da fatura frey-
reana. Mas em vez de retomar seu tratamento da singularidade brasileira,
interessa-me outro tema, a meu ver também merecedor de atenção: suas pro-
posições em torno da pretensa peculiaridade societal latino-americana. Em
verdade, ao se debruçar sobre essa questão, Freyre fez valer uma longa tradição
do pensamento brasileiro, uma agenda de preocupação que o precedera e que
prosseguiria para além dele – qual seja, as alardeadas especicidades do sub-
continente, bem como o lugar do Brasil nessa experiência. Eis, pois, a primeira
questão que move o artigo: sem perder de vista sua produção mais conhecida e
celebrada voltada à compreensão da formação brasileira, qual enquadramento
interpretativo Freyre confere à América Latina ao também posicioná-la no
concerto da modernidade? Associada a essa questão, um segundo problema
entretém o artigo: quais os sentidos e conotações das noções de tempo e espaço
nessas reexões de Freyre a respeito da experiência latino-americana?
Abundam evidências de que, tal como em sua obra dedicada à compreen-
são da formação brasileira, tempo e espaço serviram a Freyre não apenas como
suporte para argumentar que a América Latina representava uma importante
novidade em relação às congurações sociais hegemônicas do Ocidente. De
fato, em inúmeras ocasiões, conforme sugerido pela produção já acumulada
a esse respeito (BASTOS, 1998a; BAGGIO, 2012; CRESPO, 2003; FREI-
TAS, 2013; SCHNEIDER, 2012; VALENTE, 2013), o autor manifestou seu
desconforto diante do que percebia ser uma tendência bastante generalizada:
tomar aquelas congurações ocidentais como padrões de medida exclusivos e
Imagens de uma Outra Modernidade: Gilberto Freyre e o espaço-tempo latino-americano | Sergio B. F. Tavolaro
198 196 – 231
inequívocos para outros cenários, dentre os quais a própria América Latina.
Ora, como pretendo reforçar, a seu ver, o tempo-espaço latino-americano não
poderia de modo algum ser reduzido ao daquelas sociedades seja no pla-
no conceitual, seja em sua dimensão de experiência prática –, o que em boa
medida ajudaria a explicar formas de sociabilidade marcadamente distintas
num e noutro contextos. Isso posto, é minha intenção revisitar a hipótese de
acordo com a qual Freyre ambicionava mostrar que, ao invés de sinais de sua
incompletude na modernidade, as peculiaridades espaço-temporais da América
Latina seriam elas mesmas expressões de seu protagonismo no quadro social
contemporâneo, capazes inclusive de apontar para alternativas a alguns dos
impasses e esgotamentos das ditas “sociedades centrais”. Nesse sentido, longe
de um mero ensaio imperfeito da civilização moderna, a América Latina re-
presentaria uma realização própria, bem sucedida e até mesmo modelar em
alguns aspectos.
Por m, eis a terceira questão que orienta o artigo: qual o alcance e vi-
gor dessas proposições de Freyre? Seriam elas presas de seu próprio horizonte
intelectual? Ou haveria alguma consonância com elaborações mais recentes
no seio das ciências sociais? A meu ver, preocupações análogas às do autor
animam algumas abordagens contemporâneas que se propõem interpelar cri-
ticamente o imaginário sociológico da modernidade. Rero-me, nesse parti-
cular, a quatro programas de reexão: a abordagem das modernidades múlti-
plas, o programa da modernidade global, formulações em torno da condição
pós-colonial, e o programa da decolonialidade do saber/poder. Conforme minha
hipótese, a retórica de Gilberto Freyre em seus trabalhos e reexões devota-
dos à América Latina aproxima-se de alguns dos pontos das agendas dessas
formulações críticas à sociologia da modernidade. Por certo, não se trata de
programas plenamente convergentes. Suas interpelações àquele imaginário
demonstram graus distintos de escopo e profundidade: em alguns casos, o ob-
jetivo é adequá-lo à maior variedade de congurações societárias que se seguiu
ao alcance ampliado da modernidade (modernidades múltiplas e modernidade
global); em outro extremo, ambiciona-se uma ruptura mais radical com aquele
discurso (condição pós-colonial), quando não sua superação em favor de uma
nova epistemologia (decolonialidade do saber/poder). Admitidas suas irredu-
tíveis diferenças, ainda assim parece haver um denominador comum a essas
abordagens: a problematização daquele imaginário, de suas categorias e no-
ções, de suas unidades de análise, de suas ambições universalistas, do escopo

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT