(Im)pacto com a loucura

AutorMarion Bach
Páginas246-247
ALÉM DO DIREITO
246 REVISTA BONIJURIS I ANO 31 I EDIÇÃO 661 I DEZ19/JAN20
Marion Bach ADVogADA
(IM)PACTO COM A LOUCURA*
ro porque os internos, há
tempo privados do con-
vio familiar e da atenção de
qualquer ouvinte, aprovei-
tavam as audiências para
contar seus longos e nem
sempre inteligíveis casos.
Segundo porque o sistema
de pergunta e resposta não
tinha, com aqueles acusados,
o usual funcionamento. Por
vezes eu questionava sobre
o estado civil do acusado e
recebia, como resposta, o lo-
cal de nascimento. Questio-
nava sobre o número do 
e recebia, como resposta, o
número do celular. Mesmo a
mais simples das perguntas,
como a identidade do acu-
sado, induzia a revelações
improváveis. Foi assim que
interrogamos, na mesma
tarde, Napoleão Bonaparte e
Noé — que estacionou a sua
arca ali mesmo, em frente ao
fórum de Pinhais.
Não consegui deixar de me
surpreender, portanto, quan-
do o último acusado do dia
entrou na sala de audiências.
Impecavelmente vestido. Fala
eloquente. Respostas convin-
centes. Ensino superior com-
pleto. Raciocínio rápido e ar-
ticulado.
“A denúncia narra que o
senhor teria matado seu ami-
go, em razão de ciúme de uma
mulher. Tal acusação é verda-
deira?”
“Sim, doutora. É ver-
dade. Mas f‌iz para honrar o
pacto.”
— “Pacto?”
“Tenho um pacto com
Deus, doutora.”
“O senhor pode nos ex-
plicar como funciona esse
pacto?”
“Deus conversa comigo.
Determina as minhas ações.
Conversa comigo através dos
latidos dos cachorros. Se te-
nho dúvida sobre alguma ati-
tude minha, pergunto a Deus
se devo ou não ir em frente.
Se o cachorro late uma vez, a
resposta é não. Se o cachorro
late duas vezes, a resposta é
sim, devo prosseguir.”
“E esse pacto interferiu
nos fatos pelos quais o senhor
está, aqui, sendo acusado?”
“Sim, doutora. Gostava
da mulher e queria muito f‌i-
car com ela. Sabia que meu
amigo podia ser um empeci-
lho. Questionei a Deus: “devo
eliminar esse empecilho?” O
cachorro latiu, doutora. Uma
vez. Duas vezes. Tive minha
resposta.”
“E então o senhor en-
forcou o seu amigo dentro da
residên...”
Um latido de cachorro in-
terrompe a minha pergunta.
O interrogado, atento, ime-
diatamente olha para a janela
da sala de audiência. Amaldi-
çoando Noé — e a arca esta-
cionada logo ali, em frente ao
fórum —, rapidamente levan-
to. Não acredito em pactos.
Mas fecho a janela antirruí-
dos. Vai que o cachorro late
pela segunda vez... n
“ENTÃO O senhor confes-
sa que matou a sua esposa?”
— “Matei.”
“E por qual razão o se-
nhor fez isso?”
“Era ela quem contro-
lava os meus remédios, dou-
tora... e colocou um, no meio,
para me deixar broxa.”
“Quais remédios o se-
nhor tomava?”
“Tomava Clozapina, pa-
ra a esquizofrenia; Lítio para
a bipolaridade; Risperidona
para a síndrome do pânico;
Rivotril, para controlar a an-
siedade e Fluoxetina, para a
depressão. Acho que só.”
“E como o senhor pode
af‌irmar que sua esposa co-
locou, no meio, um remédio
para te deixar broxa?”
— “Porque eu f‌iquei, ué.”
Essa foi a primeira au-
diência do dia. Um dia que
seria longo, eu sabia. Dia de
au diências envolvendo o
Complexo Médico Penal, em
Pinhais. Na pauta, vinte au-
diências, sendo a maioria para
interrogatório dos acusados
que estavam internados no
hospital penitenciário.
Tais audiências costuma-
vam ter longa duração, por
motivos diferentes. Primei-
* A protagonista da presente crônica
é Isabella Demeterco, promotora de
Justiça do Estado do Paraná.
Rev-Bonijuris_661.indb 246 14/11/2019 17:45:46

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