O direito à diferença, mas na igualdade de direitos: o reconhecimento pelo supremo tribunal federal brasileiro da união homoafetiva enquanto entidade familiar

AutorDomingos do Nascimento Nonato - Pastora do Socorro Teixeira Leal
CargoLicenciado Pleno e Bacharel em História pela Universidade Federal do Pará (UFPA) - Mestre em Direito Público pela UFPA. Doutora em Direito das Relações Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo ? PUC/SP
Páginas224-259

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Introdução

A Constituição Federal de 1988 à luz de princípios como a dignidade da pessoa humana e a igualdade, proíbe expressamente toda e qualquer forma de discriminação fundada no cerceamento do exercício da livre orientação sexual do ser humano. Ela não faz menção às uniões homoafetivas. Reconhece expressamente como entidades familiares merecedoras de proteção estatal o casamento civil e religioso, às uniões estáveis e a família monoparental.

A despeito da ausência de normatização expressa sobre união homoafetiva, a postura do Estado em relação ao assunto tem sido de crescente reconhecimento dessa relação familiar. Em território brasileiro, as relações homoafetivas vinham sendo reconhecidas, dia após dia, pelos tribunais estaduais e pelos magistrados de 1o grau. Toda sorte de direitos já vinham sendo concedidos aos parceiros homossexuais, como partilha de bens, pensão por morte, condição de dependente em planos de saúde, extensão de benefícios previdenciários ao companheiro (a)

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homoafetiva, direito real de habitação, direito à declaração conjunta de Imposto de Renda, alimentos, adoção conjunta, entre outros.

Apesar dos pronunciamentos judiciais divergentes sobre o tema, no dia 05 de maio de 2011, através de julgamento, o Supremo Tribunal Federal (STF), reconheceu, em decisão unânime, a equiparação da união homossexual à heterossexual. Reconheceu que a união homoafetiva é uma entidade familiar. O STF realizou um julgamento proativo no sentido da interpretação dada ao artigo 226 da Constituição Federal de 1988.

Com esse reconhecimento, as uniões homoafetivas equiparam-se, a partir de então, às uniões estáveis para todos os efeitos legais, ou seja, passam a ter os mesmos direitos garantidos aos casais heterossexuais, numa união estável. Ocorreu a inclusão de uma "nova" entidade familiar no elenco de famílias já reconhecidas juridicamente no Brasil, demonstrando certa tolerância do judiciário brasileiro frente à diversidade humana, pois é inadmissível nos dias atuais que as pessoas sejam discriminadas por expressarem livremente sua orientação sexual. Particularmente para a população GLBT (gays, lésbicas, bissexuais e transgê-neros), esse julgamento é condição sine qua non para o reconhecimento e respeito à diversidade sexual. Para a população em geral, esse julgamento gerou um legado de perplexidade e temor, sentimentos que sempre explodem quando muda o paradigma.

1. Proibição constitucional da discriminação em função da opção sexual do ser humano

Em diferentes épocas da história brasileira o tratamento dispensado à condição homossexual foi de intolerância, de repressão sexual, inclusive por parte do poder público. Os valores e regras estabelecidas histórica e culturalmente, encarregaram-se de imprimir um sistema de exclusões baseado em atitudes discriminatórias. Foram e em certa medida ainda são valores dominantes, pois segregam o diferente e en-

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cerram padrões de comportamentos da maioria. Nesse sentido, devemos recorrer aos escritos de Dias (2009, p. 29):

A discriminação contra os homossexuais é uma histórica, universal, notória e inquestionável realidade social. As barreiras do preconceito, por sua vez, são ainda mais desafiantes: esmaecem a razão, quando não produzem rejeição sistemática e violência. O fato é que nenhum estado contemporâneo pode ignorar essa realidade cada vez mais transparente, pois nãos e trata de questão isolada ou frouxidão dos costumes, como querem os moralistas, e sim expressão da sexualidade que qualquer estado democrático tem o dever de respeitar.

Infelizmente, o Brasil ainda convive com manifestações de ho-mofobia, inclusive com o emprego de violência contra os homossexuais. Contudo, progressivamente, as relações homoafetivas vêm conquistando aceitação e respeito, tanto na esfera privada quanto na esfera pública.

É público e notório que nas últimas décadas as uniões homoafetivas adquiram maior amplitude social no Brasil, pois inúmeros casais assumiram publicamente suas relações homoafetivas. Percebemos que sucessivamente a sociedade passa a ser mais tolerante e suscetível à compreensão da condição homossexual Essa fase de maior abertura representou o surgimento e consolidação de inúmeras organizações sociais instituídas para defender os interesses de tais uniões.

Essa realidade reflete-se em termos legislativos. A legislação pátria proíbe qualquer tipo de discriminação contra o ser humano, sendo vedado o tratamento humilhante e vexatório em relação aos homossexuais, o que constitui, inclusive, violação à sua intimidade. De acordo com o artigo 3o, IV, da Constituição Federal de 1988, "Constituem objeti-vos fundamentais da República Federativa do Brasil: (...) IV - promover

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o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação".

Após discorrer com muita maestria sobre o emprego do vocábulo "sexo" no referido inciso, o ministro Ayres Brito, em seu voto, explica que "o sexo das pessoas, salvo expressa disposição constitucional em contrário, não se presta como fator de desigualação jurídica". O que o ministro deixa claro é que tal dispositivo constitucional (artigo 3o, IV, da CF/88) veda qualquer forma de tratamento discriminatório ou preconcei-tuoso em razão do sexo dos seres humanos.

Já no seu artigo 5o, caput, a Constituição Federal estabelece que "todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade". No inciso X, do mesmo artigo, está expresso, ainda, que "são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação".

A escolha da orientação sexual do indivíduo, hoje, no nosso ordenamento, por força da Constituição Federal, é direito fundamental, além do que é atributo inerente à personalidade humana. Em uma sociedade como a brasileira que se denomina democrática e plural qualquer forma de discriminação deve ser rechaçada. Não podemos admitir que na contemporaneidade que um ser humano possa ser discriminado por expressar livremente sua orientação sexual. É dever de todos o respeito às diferenças humanas, sejam elas de quaisquer natureza.

Do ponto de vista da dignidade humana, ser é muito mais do que ter. Rawls (2002) em sua obra "Uma teoria da justiça", refuta as concepções clássicas da justiça, em particular a utilitarista, a qual visa à realização de interesses de classe se utilizando de alternativas como beneficiar certas maiorias, em detrimento de certas minorias. Grupos hegemónicos ditam um modo de vida "correto" - o seu modo de vida -para os outros indivíduos. Agem com indiferença em relação ao diferen-

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te, revelando, na verdade, um juízo de desvalor em relação à diversidade humana.

Ao fazer algumas reflexões sobre a dinâmica de uma crise mundial verificada nas duas últimas décadas, Capra (2006), explica que são problemas sistêmicos, o que significa que estão estritamente interligados e são interdependentes. Para serem devidamente entendidos, devem ser utilizadas metodologias apropriadas. Portanto, uma mudança de perspectiva metodológica faz-se necessária, mas a grande transformação deve acontecer nas complexas relações sociais, em nossos valores e ideias. Uma interpretação sistêmica do artigo 226 da Constituição Federal pautada em princípios constitucionais resulta na conclusão da união homoafetiva enquanto entidade familiar. Ocorrer, portanto, mudança de perspectiva ou de recorte metodológico para atender aos reclames da diversidade humana.

O direito à igualdade se concretiza também no respeito ao direito fundamental à diferença. Sem o reconhecimento e o respeito à diferença, o conteúdo da igualdade se transforma em discriminação negativa. Ao Estado cumpre criar as condições para que essa igualdade se verifique. E cabe-o fazer independentemente de se verificarem eventuais consensos sociais acerca de determinada matéria decisivamente implicada na sua realização. Torna-se mister que o reconhecimento e o respeito ao diferente passam por um inexorável vínculo com o princípio da di nid de da pessoa hum na , o que reclama e exige especiais posturas estatais de proteção daqueles que são diferentes em razão de quaisquer fatores.

Ao postular em defesa do direito fundamental à diferença, Torres (2009), assim se manifesta:

Dessa maneira, a compreensão da existência do direito à diferença passa necessariamente pela fenda do 2°, art. 5o, da Lei Maior, analisado anteriormente, segundo o qual, autoriza-se a extração de direitos fundamentais i plícitos , decorrente

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do regime e dos princípios constitucionais adota-dos. Com efeito, o direito fund ent I de ser diferente, e de ser respeitado por conta de seus fa-tores diferenciais, está subentendido nos princípios constitucionais, mais especificamente, na dimensão substancial do direito fund ent I i u al-d de (art. 5o, c put), bem como decorre de elementos encontrados nos princípios fundamentais estatuídos pelo constituinte consistentes na de o-cr cia , di nid de hu na e plur li o (art. 1o, c pute incisos III e V).

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