A igreja do Brasil e o plano de emergência - 1952/1962

AutorEuclides Marchi
Páginas254-280

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I - O enfrentamento de um novo dilema - o capitalismo

Quase* um século se passara desde que Pio IX, em 1870, condenara o mundo moderno. Mesmo assim, a Igreja Católica ainda não superara o trauma decorrente das idéias propostas pela modernização do mundo ocidental. Ao longo de décadas, afirmara e ratificara suas posições condenatórias ao seu principal inimigo, o modernismo. Em 1937, Pio XI consolidava aquele pensamento com a publicação da encíclica Divini Redemptoris lançando o mais cabal anátema contra o comunismo, considerando-o como intrinsecamente perverso, e como tal, era inimigo da Igreja e de todo o gênero humano. Após a segunda Guerra Mundial, o pensamento papal era compartilhado por grande parte do mundo ocidental, que desencadearia uma férrea campanha contra o perigo que vinha do leste.

O mundo contemporâneo defrontava-se com alguns problemas que assumiam dimensões alarmantes, preocupando os analistas das ques-Page 255tões sócio-econômicas, quer fossem pessimistas quer otimistas; era o mundo da fome, da doença, da promiscuidade, da morte e da ignorância, das guerras regionais, da concentração das posses, da explosão das revoltas, da degradação da vida e inúmeras outras situações cuja lembrança contribuiria para ampliar o painel das dificuldades e da degeneração geral da civilização humana. Apesar da dimensão mundial das dificuldades, o terceiro mundo era a parte do planeta que vivia com mais intensidade aquela “dramática” situação. As estatísticas mostravam que, se de um lado o desenvolvimento tecnológico criava condições para o aumento da produção e facilitava a vida de parte da população, de outro havia um “assustador” crescimento da pobreza e das dificuldades de sobrevivência.

Sob o domínio de um discurso da ordem (re)estabelecida como resultado da vitória das democracias sobre as ditaduras, do capitalismo sobre o socialismo, do liberalismo sobre o comunismo e a defesa do estado de bem estar das sociedades ocidentais, escondia-se ou escamoteava-se uma profunda desordem entre os povos e as sociedades. Desordem essa que podia ser visualizada pelo grau de degradação das condições de vida e pela generalização da miséria entre as comunidades subdesenvolvidas.

No entanto, se o comunismo era ainda o grande inimigo, desconfianças em relação ao capitalismo, também transpunham os muros da Sé romana. Desde Pio IX, passando por Leão XIII, Pio X, Pio XI e chegando até Pio XII, as principais encíclicas papais faziam alusões constantes aos males do capitalismo. Embora não se observassem ataques diretos e frontais, já não era possível silenciar ou acobertar os desmandos e as desigualdades sociais, atentatórias a toda a humanidade. Muito embora essas desigualdades nem sempre fossem vistas como elementos definidores da sociedade européia, nos países do “terceiro mundo” já não se suportava com facilidade o impacto do esbanjamento em detrimento da miséria e da crueldade da vida que atingia parte significativa da população.

A pobreza que dizimava contingentes da humanidade obrigava a Igreja Católica Romana a rever sua concepção de ordem social e econômica. A desordem sócio-econômica provocada por um sistema que se sustentava numa desenfreada busca de riqueza, de lucro e do bem-estar material sem limites, inquietava as autoridades eclesiásticas. Constata-Page 256vam elas que a conjuntura gerada pelo liberalismo sem parâmetros, definitivamente, colocava em risco a instituição católica e afetava a religiosidade das populações. Perturbava-se o episcopado com o predomínio do econômico sobre o moral, o material sobre o espiritual. Ambos provocavam estragos na visão sobrenatural da existência humana. A crueza das divisões sociais, das desigualdades, dos efeitos da pobreza na vida e na espiritualidade das pessoas motivaram a hierarquia a programar novas ações e a implantar práticas sociais e pastorais que, embora inicialmente tímidas e cuidadosas, revelavam a descoberta de um outro e perigoso inimigo: O capitalismo.

A partir do final dos anos cinqüenta, um novo discurso era construído. De forma clara e explícita, a instituição manifestava-se sobre as condições de vida das populações de muitos países, resultantes da estrutura social fundada no modelo de desenvolvimento capitalista. E, se desde a Rerum Novarum de Leão XIII em 1891, a suprema autoridade eclesiástica criticava as seqüelas provocadas pelo capitalismo liberal, foi na década de 1950 que o egotismo capitalista passou a sofrer críticas contundentes, apontando claramente a mudança de posição da Igreja em relação a ele.

A questão social, centrada mais especificamente na questão operária, era recorrente nos discursos e documentos papais, desde Leão XIII. Lucien Pelissier, em seu texto “A Igreja e as Classes Sociais ressalta que Pio XII, em sua radiomensagem ao Katholikengad de Viena, já assinalara que “a questão operária é a miséria do proletariado e o dever de elevar essa classe, abandonada sem defesa ao sabor da conjuntura econômica, à dignidade das outras classes, dotadas de direitos precisos”1 .

Ficava evidente aos pastores da Igreja a situação desumana a que estavam submetidos os trabalhadores especialmente quanto às condições de trabalho, de salário e de vida.

Antes dele, Pio XI, em 1922, na encíclica “Ubi arcano Dei” reprovava as atitudes de operários e patrões: uns por sua avidez em adquirir os bens temporais e outros por sua tenacidade em conservá-los, ambos pela ambição de possuir e comandar. Em outra encíclica - “Quadragésimo anno”, de 1931, ressaltava:

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“As classes pecam, todas as duas, igualmente, contra a santa lei: tanto a classe dos ricos, quando, desligada por sua fortuna de toda a solicitude, considera perfeitamente regular e natural um estado de coisas que lhe proporcione todas as vantagens, sem nada deixar ao operário; a classe dos proletários quando exasperada por uma situação que fere a justiça, e muito exclusivamente preocupada em reivindicar os direitos dos quais tomou consciência, reclama para si a totalidade do produto que ela declara ter saído inteiramente de suas mãos” 2 .

Evidentemente, a Igreja, pelo discurso dos papas, apelava para valores morais, para a justiça e condenava os egoísmos, entre outros como fatores da exploração entre os possuidores e os despossuídos. Porém nada fazia supor que nesse discurso insinuava-se a adoção da violência como alternativa para a solução das diferenças. No entanto, reconhecia que a sociedade não era um corpo harmonioso e era preciso que todos se empenhassem e cooperassem para o bem comum. Era a tese da diversidade e da complementaridade sem antagonismos.

Pio XI insistia nessa tese destacando que:

“Uma verdadeira colaboração de todos, em vista do bem comum, não se estabelecerá senão quando todos tiverem íntima convicção de serem membros de uma grande família e filhos de um mesmo Pai celeste, de não formarem senão um só corpo no Cristo, do qual eles são, reciprocamente, os membros, de modo que se um sofre, todos sofrem com eles”3 .

O papa acrescentava que os ricos deveriam dar provas de caridade, acolhendo com benevolência as reivindicações dos proletários, pedindo desculpas e perdoando os erros e faltas dos trabalhadores. Estes,Page 258por sua vez, deveriam renunciar aos sentimentos de ódio e de inveja que os promotores da luta de classe exploravam com tanta habilidade e deveriam aceitar, sem rancor, o lugar que a divina Providência lhes designou. Não raro defendia-se a tese de que as diferenças eram um fenômeno natural.

Cabe ressaltar que “esta concepção quase ‘mística’ da sociedade era, ás vezes, de tal modo conduzida que se chegava a esquecer os corpos para pensar somente nas almas que, elas sim, evidentemente são iguais”4 .

Na segunda metade da década de cinqüenta a Igreja, que tanto se empenhara no combate ao comunismo, vivia, no seu interior, uma situação de tranqüilidade ameaçadora e que, geralmente, precede momentos de intensa transformação. No dizer de J. B. Libânio,“No final do pontificado de Pio XII (1958) (....) os movimentos inquietantes do pós-guerra tinham sido silenciados, através da condenação da Nova Teologia, do envio de Teilhard de Chardin para a China, evitando que seus escritos fossem publicados, do encerramento da experiência dos Padres Operários e do enquadramento, dentro de limites aceitáveis, da renovação litúrgica e da ação do leigo”5 .

Naquele período, o mundo católico convivia em aceitável harmonia com Roma e o papa mantinha-se como o grande condutor dos destinos de Igreja que se (re)afirmava como Una, Santa, Católica, Apostólica e Romana.

II - O Arejamento Joanino

Em 1958, enquanto os sinos das Igrejas de todo o mundo dobravam e a sociedade católica velava Pio XII, lamentando a morte de um grande papa, a Igreja começava a viver uma das fases mais significativas de sua existência no século XX. No final da década, a instituição e os cató-Page 259licos seriam sacudidos pelo movimento que seria denominado por muitos de “arejamento joanino”.

Um novo olhar sobre a sociedade e os tempos modernos provocaria transformações nos comportamentos do clero e fiéis tanto no que se refere às ações pastorais quanto no procedimento dos rituais de espiritualidade. Senão a totalidade, parcelas significativas dos sacerdotes (incluindo os bispos) e dos católicos leigos seriam impelidos a uma nova conquista do mundo, a saírem das sacristias em busca das “ovelhas tresmalhadas” ou daquelas que nunca haviam pertencido ao rebanho da cristandade. Eram tempos novos que batiam à porta das dioceses e das paróquias e demandavam posicionamentos não comuns à trajetória da instituição. As questões sociais e políticas exigiam um comportamento ético-moral e demandavam um comprometimento institucional tanto dos homens de primeira linha quanto de toda a catolicidade. O mundo da...

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