A Ideia de Ciência em Karl Marx

AutorRicardo Luis Chaves Feijó
CargoDoutor e Livre-Docente em Economia
Páginas293-325
DOI: http://dx.doi.org/10.5007/2175-7984.2015v14n31p293
293293 – 325
A ideia de ciência
em Karl Marx
Ricardo Luís Chaves Feijó1
Resumo
O objetivo deste artigo é o de examinar a concepção particular de ciência em Mar x. Para isso,
começa-se por identif‌icar os referenciais teóricos que mais inf‌luenciaram a gestação de suas
ideias: a economia política clássica e o legado alemão. Em seguida, investiga-se o que seria a sua
concepção particular de ciência, entendida como uma proposta de fundir esses dois legados.
Avalia-se, em seguida, o caráter científ‌ico da contribuição marxiana, entendida como o fazer de
uma ciência que se propõe positiva. Destarte, iremos examinar as razões que separam a tradição
marxiana e o mainstream da economia atual, mostrando que a natureza peculiar de uma ciência
de raízes alemãs gera dif‌iculdades na comunicação entre uma e outra.
Palavras-chave: Karl Marx. Metodologia da ciência. Tradição alemã de ciência. Def‌inição de ciência.
1. Introdução
Este artigo examina a concepção particular de ciência em Marx. Tal pen-
sador, assim como os grandes cientistas, conjuga excepcional criatividade ao
lado de elevado poder de síntese das tradições de pensamento que o ante-
cederam. Ele estava particularmente inclinado a adotar o método cientíco
da economia clássica; contudo, não poderia fazê-lo abdicando das tradições
cientícas e losócas alemãs e simplesmente passando a pensar como um
britânico. O encanto que a economia política clássica de Adam Smith e David
Ricardo teria exercido em Marx é bastante evidente; entretanto, o grande pen-
sador buscou uma solução de compromisso entre o estilo alemão de ciência e
o peculiar modo inglês de fazer-se ciência positiva.
É bastante complexa a ciência resultante dessa conjugação de duas bens
distintas matrizes de pensamento. Na Inglaterra, onde Marx viveu boa parte
1 Doutor e Livre-Docente em Economia. Professor Associado da Faculdade de Economia, Administração e Con-
tabilidade de Ribeirão Preto, FEA-RP/USP. E-mail: riccfeij@usp.br
A ideia de ciência em Karl Marx | Ricardo Luís Chaves Feijó
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da etapa de economista do seu trabalho, a análise social obedecia à autoridade
dos lósofos iluministas do século XVIII. Smith era a grande referência para
se pensar questões de economia; e Stuart Mill, o autor da moda. O modo de
pensar a economia e a sociedade devia muito ao legado dos modelos de ciência
newtoniano e baconiano; porém, o pensamento social conquistara certa au-
tonomia em relação à ciência natural e, também, à losoa, pois se praticava
uma ciência social autoconante e autônoma em relação aos demais campos
do conhecimento.
Marx, lósofo de formação, e prossionalmente atuando na imprensa
panetária da época, conquistara fama de agitador anarquista e, sem dúvida,
era um dos poucos de seu grupo com boa formação intelectual e com preten-
sões de dotar de sólido aparato cientíco os protagonistas do movimento por
mudanças sociais. Marx acreditou na ciência, considerando-a como forma
superior e privilegiada de conhecimento. Acidentalmente, veio a interessar-se
pela contribuição dos economistas britânicos, graças ao exílio em Paris – onde
conheceu Friedrich Engels, que lhe apresentou a novidade. Leu, por ocasião,
a resenha crítica desse autor; pôde, então, perceber a fecundidade do campo
de estudos com o qual havia se deparado e, também, como formulações de
conservadores estrangeiros poderiam ser modicadas de modo a servir à sua
causa intelectual.
A mutação do legado da economia clássica seria comandada por essa sin-
gular junção de estilos aparentemente bem diferentes de se pensar e de se
fazer ciência. Sob o comando da poderosa mente de Marx, a ciência econômi-
ca voltaria a conciliar-se com a losoa das essências, um anacronismo para
o saber britânico que se gabava de ter-se livrado do misticismo aristotélico
à luz da razão propagada por Bacon. É claro que a ciência britânica nunca
se desvencilhou completamente de pressupostos metafísicos nos quais toda
ciência tem mesmo de se apoiar; no entanto, ela se valia de uma losoa que
primava pela clareza de conceitos, pela especulação sobre a natureza humana,
pela observação acurada da história, pelo uso da lógica clássica e repúdio a
contradições. A losoa e, portanto, a ciência alemãs eram diferentes. Tinham
a complexidade sólida, mas intrincada, de Kant e Hegel. Na Alemanha, não se
tinha a mesma conança no empirismo enquanto caminho da verdade cientí-
ca, e Aristóteles, ao invés de ser refutado, fora revitalizado nos meandros da
losoa das categorias e do a priori de Kant, bem como na losoa das tensões
entre essência e aparência, de Hegel.
Política & Sociedade - Florianópolis - Vol. 14 - Nº 31 - Set./Dez. de 2015
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Acompanhando os passos de Marx e auscultando os batimentos de sua
alma, percebe-se que ele caminha por esse “o de navalha” em que tenta
equilibrar uma ciência que se vê como continuação, e até como aperfeiçoa-
mento, do que Smith e Ricardo disseram, ao mesmo tempo em que lhes
censura por terem se iludido com a aparência das leis da sociedade burguesa,
as quais – longe de terem validade universal e a-histórica – são, de fato, leis
especícas de uma etapa da história, criadas pela ação de um peculiar siste-
ma social de produção.
Caracterizar Marx como inteiramente novo e diferente é simples; porém,
simplista. Dizer que ele rompe com o objeto da escola clássica de economia e
que lhe confere novo método não é necessariamente falso; no entanto, arma-
tivas categóricas desse jaez encobrem subjacente tensão entre diferentes mode-
los de ciência e entre paradigmas losócos distintos e quase irreconciliáveis
que permeiam a contribuição de Marx. A proposta marxiana de conciliação
valera-lhe amiúde a acusação (quiçá injusta) de que sua contribuição não fora
verdadeiramente cientíca.
Anal, Marx fez ciência ou literatura? Legou às futuras gerações ciên-
cia analítica e empírica ou losoa social? Não devemos ter ilusões quanto à
complexidade da investigação e a possibilidade de respostas totalmente con-
clusivas. Não se sustenta a tese, conforme se argumenta tradicionalmente, de
que Marx foi incompreendido por seus colegas economistas porque estes não
estavam sucientemente habilitados em losoa para entender a metafísica
marxiana. Também não é lícito contrapor a metafísica de Marx a uma visão
positivista ingênua de ciência (que, hoje em dia, ninguém mais tem) e armar
que os que não o compreendiam, ou não o aceitavam, zeram-no por mero
repúdio à entrada da metafísica na economia. Melhor do que contrapor certa
metafísica com positivismo ingênuo, é fazer-se a contraposição entre diferen-
tes metafísicas que vicejam em sistemas explicativos (cientícos ou não, não
importa por ora) dotados, cada qual, de uma metafísica explícita2.
2 Diferentemente dos positivistas lógicos, aqui não se entende metafísica como sendo o oposto da atitude cientí-
f‌ica, mera forma especulativa de pensamento. Estamos nos referindo ao conceito no sentido aristotélico, como
descrição fundamental da realidade, de sua pressuposta estrutura básica, do sentido e f‌inalidade da realidade
como um todo. Envolve, portanto, uma ontologia (hipóteses sobre as categorias básicas do ser e de como
elas se relacionam entre si) e uma cosmologia que descreve a totalidade de todos os fenômenos envolvidos.
A metafísica é a parte do núcleo rígido dos paradigmas científ‌icos que não está sujeita à testabilidade direta,
mas funciona como um conjunto de premissas não testáveis que suportam a análise científ‌ica.

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