Idealismo e materialismo na história

AutorSérgio Paulo Muniz Costa
CargoDoutor em Ciências Militares, diplomado pela Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (1992)
Páginas355-391
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis, Volume 45, Número 2, p. 355-391, Outubro de 2011
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* Idealism and materialism in history.
1 Doutor em Ciências Militares, diplomado pela Escola de Comando e Estado-Maior do Exército
(1992). Foi Presidente da Comissão de Fortificações Históricas da Bahia, Chefe da Seção de Ensino
de Geografia e História Militar, Coordenador da Modernização da Academia Militar das Agulhas
Negras (Resende, RJ) e Delegado do Brasil na Junta Interamericana de Defesa (Washington – DC).
É autor do livro Os Pilares da Discórdia: fundamentos de uma incerteza, colaborador do Centro de
Estudos Estratégicos da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (CEE/ECEME), membro
do Centro de Pesquisas Estratégicas da Universidade Federal de Juiz de Fora (CPE/UFJF) e pesqui-
sador de Segurança e Defesa do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (CEBRI). Endereço
para correspondências: SHIS QI 09 Conjunto 8, Casa 23, Lago Sul, Brasília, DF, 71625-080
(spmunizcosta@gmail.com).
Idealismo e materialismo na história*
Sérgio Paulo Muniz Costa1
Centro Brasileiro de Relações Internacionais
Este ensaio se fundamenta na re-
lação entre filosofia e história. Se a filo-
sofia, desde as suas origens, ocupou-
se do ser, a sua permanente reconstru-
ção pela história – obrigatória para seu
prosseguimento – haverá de se dar se-
gundo as concepções que o explicam.
Esta é a relação inolvidável que susten-
ta a perenidade da filosofia e história,
imbricando-as num liame que pode se
explicitar por meio das grandes posições
do materialismo e do idealismo adota-
das por não poucos pensadores rele-
vantes e contidas nas correspondentes
explicações para o ser. Outras concep-
ções filosóficas se desenvolveram ao
longo da história do pensamento, para-
lelamente ao materialismo e idealismo.
Não são as únicas, portanto, uma vez
que a ampliação do horizonte teórico
pode incluir a polarização entre inferên-
cia e empirismo, conhecimento científi-
co e não científico e em outras antepo-
sições que marcam a história das idéias.
Foram escolhidas por que materialismo
e idealismo abrigam filósofos e historia-
dores, cientistas e pensadores, empiris-
tas e racionalistas cujas concepções de
mundo inspiraram ou foram sua base.
This essay focuses on the rela-
tionship between philosophy and his-
tory. If philosophy, since its beginnin-
gs, has concerned itself with “being”,
its historical reconstruction, which is
necessary for it to continue, will have
to be done according to the ideas that
explain “being”. This is the unforgetta-
ble relationship that sustains the conti-
nuity of philosophy and history, joining
them in a bond that can be explained by
the materialist and idealist positions
adopted by many relevant thinkers in
their explanations of “being”. Other phi-
losophical views have developed throu-
ghout the history of thought, parallel to
materialism and idealism. Such views
might include the polarization between
inference and empiricism, scientific and
nonscientific and other dichotomies that
mark the history of ideas. They were
chosen because materialism and idea-
lism house philosophers, historians,
scientists, rationalists, and empiricists
whose world views they inspired or were
their basis. This essay’s aim is to exami-
ne the influence of materialism and ide-
alism in the study of history and identi-
fy their traces in some epoch-making
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historical works that led to the formation
of schools of thought. In a broader pers-
pective, the analysis of the historical
evolution of thought and ideas contai-
ned in this paper offers conclusions
applicable to knowledge and the relationship
between knowledge and history today,
themes that ought to be understood as
being fundamentally important for the de-
velopment of brazilian society.
Keywords: History – Philosophy – His-
tory of thought – Materialism – Idealism.
Essa é a perspectiva considerada neste
ensaio, cujo objetivo é apresentar a in-
fluência do materialismo e do idealismo
no estudo da história e identificar os
seus traços em algumas das obras his-
tóricas que marcaram época e, even-
tualmente, criaram escolas. Numa pers-
pectiva ampliada, a apreciação históri-
ca da evolução do pensamento e das
idéias contida neste trabalho faculta
conclusões aplicáveis ao conhecimen-
to e à relação entre conhecimento e
história na atualidade, temas que devem
ser entendidos como de fundamental im-
portância para o desenvolvimento da so-
ciedade brasileira.
Palavras-chave: História – Filosofia –
História do pensamento – Materialismo
– Idealismo.
1. Uma linha evolutiva
A anteposição entre materialismo e idealismo não é tão antiga quanto possa
parecer, pois somente se efetivou depois que a filosofia criou as bases da
física e das matemáticas na Idade Média, objeto e linguagem científicos
por excelência. Os que primeiros podem ser denominados idealistas, Geor-
ge Berkeley (1685-1753), um empirista, e Gottfried Wilhelm von Leibniz
(1646-1716), um racionalista metafísico, foram cientistas que se coloca-
ram além do objeto e da linguagem das ciências para propor existências
que não podiam ser provadas, Berkeley com o imaterialismo e Leibniz com
o inatismo. A partir daí, a passagem do século 17 para o 18, pode-se apon-
tar uma densa linha de evolução do pensamento idealista que passa por
Immanuel Kant (1724-1804), Johann Gottlieb Fichte (1762-1814), Frie-
drich Wilhelm Joseph von Schelling (1775-1854) e Georg Wilhelm Frie-
drich Hegel (1770-1831), paralela e distinta de uma muito mais antiga, tor-
nada possível identificar como materialista desde Demócrito (460-370AC),
Epicuro (341-261AC) e Lucrécio (99-55AC), saltando depois para Tho-
mas Hobbes (1588-1679), Julien Offray de La Mettrie (1709-51), Paul-
Henri Thiry, o Barão de Holbach (1723-89), Karl Heinrich Marx (1818-
83), Friedrich Engels (1820-95) e Ludwig Eduard Boltzmann (1844-1906),
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para desaguar nos historiadores Lucien Paul Victor Febvre (1878-1956),
Marc Léopold Benjamim Bloch (1886-1944) e Fernand Braudel (1902-85),
e estar presente em Carl Frederick Buechner (1925-). O mero anúncio dos
expoentes do idealismo e do materialismo sugere que o segundo está mais
presente e visível no estudo atual da história, dado o sucesso da história
total introduzida pela escola dos Annales. Essa impressão é reforçada pela
desenvoltura com que Eric John Earnest Hobsbawm (1917-) interpreta a
contemporaneidade pelo viés marxista.
Hoje temos as tradições materialista e idealista da história nos che-
gando com muita clareza nas heranças de Kant e Hegel, por um lado, e no
florescimento de uma história de corte epistemológico originada na França,
por outro. Ambas as tradições permeiam ideologias, escolas históricas e o
estudo dos grandes temas. Uma se move nas interpretações dos fatos se-
gundo paradigmas portadores de futuro, enquanto outra reconstrói o pas-
sado e projeta o porvir por intermédio da materialidade de fatos e efeitos,
registrada pelos respectivos traços. De novo, tem-se a impressão que a
tradição materialista tem a primazia na nossa atualidade. Da micro-histó-
ria, construída a partir de registros de pequenas e fragmentadas realidades,
à história econômica, tão influenciada por estudos estatísticos, tem-se um
extenso elenco de reconstruções e reinterpretações que clamam por legiti-
midade segundo as evidências. Mas essa primazia do materialismo não se
confirma quando se verifica a necessidade de cada sociedade em se rein-
terpretar segundo os desafios que o momento lhe apresenta, o que induz a
uma elevada dose de idealismo nas reencenações do passado, onde se mis-
turam continuidades e rupturas que promovem seguidos surtos de revisio-
nismo. Não é demais reiterar aqui o caráter protéico (TOYNBEE, 1987; p.
13) da história para buscar a explicação para tantas “histórias” e, dentro
de cada uma delas, distintas interpretações para mesmos fatos.
2. Materialismo e história
O fim da Grécia Clássica
A obra que, pela primeira vez, pretendeu descrever, nas suas causas e desen-
volvimentos, um acontecimento comprovadamente ocorrido na Antiguidade foi a
História da Guerra do Peloponeso, escrita por Tucídides (471-399AC), o histo-
riador que emitiu um “julgamento severo sobre os antecessores” (PRADO, 2008;
p.xli) e foi considerado “o criador da história política” (JAEGER, 1986; p. 306).
Independentemente do fato de Tucídides ter inovado a História ao bafejá-la
com o pensamento político ou de tê-la enriquecido com uma nova metodologia,

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