O ideal de construção de um ambiente de trabalho saudável e os desafios da Lei 13.467/17: elementos para resistência

AutorRaimundo Simão de Melo/Cláudio Jannotti da Rocha
Páginas437-444

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Introdução

A Lei n. 13.467/17 tem claro objetivo de fragilizar completamente a proteção que informa e justifica o Direito do Trabalho. Afeta tanto o direito material quanto processual do trabalho e prejudica, em diversos aspectos, não apenas o padrão de direitos constitucionais estabelecidos em favor do trabalhador, mas a própria estrutura de Estado edificada a partir de 1988. E o pior é que essa lei nada mais é do que parte de um movimento bem mais amplo e claramente direcionado à eliminação do pouco que conseguimos concretizar em termos de Estado Social.

Considerando essa realidade, pretendo aqui propor o exame crítico de algumas regras que buscam inibir tanto a atividade dos peritos auxiliares do juízo, quanto a dedução de pretensões que envolvam situação de prejuízo efetivo à saúde do trabalhador.

O pressuposto é de que a atividade pericial tem no processo do trabalho a função de aferir a qualidade do ambiente de trabalho, para a preservação da saúde e da vida do trabalhador, e encontra aí a sua importância.

Para isso, precisamos compreender que toda interpretação/ aplicação de um conjunto de regras deve observar o princípio que o institui, sob pena de perda de sua própria razão de ser. Pois bem, no caso do Direito do Trabalho, o princípio que institui o conjunto de regras trabalhistas é a proteção, que não decorre de circunstâncias pessoais de quem trabalha, nem da maldade ou bondade do empregador. A proteção se justifica historicamente como uma forma de tentar manter a promessa da modernidade, de que todos são destinatários da norma jurídica.

Dentre essas promessas está, justamente, a de preservação de um ambiente saudável de trabalho.

As Promessas da Modernidade e o Direito do Trabalho

Todos, inclusive os trabalhadores, têm direito a uma vida minimamente boa, a exercer sua liberdade, a ter sua dignidade respeitada etc. Essas são as promessas da modernidade, que rompe com o modelo feudal de castas e se fundamenta no discurso da igualdade e da liberdade. O problema é que em uma sociedade fundada na troca entre capital e trabalho, na qual o trabalho não é apenas um meio de realização do ser humano, mas principalmente uma forma (no mais das vezes, a única forma) de subsistência física, o trabalhador – sem uma proteção minimamente adequada – será transformado em coisa (mercadoria) durante o tempo de trabalho.

Não é difícil perceber que essa é uma característica objetiva da relação social que se estabelece entre trabalho e capital. O melhor empregado será sempre aquele que mais conseguir anular a sua condição humana enquanto trabalha: que não for tantas vezes ao banheiro, não adoecer, não conversar com os colegas, não manifestar queixas, não faltar ao trabalho; não comentar problemas pessoais. Aquele que render mais, que trabalhar de forma incessante, que evitar intervalos. E isso, é bom que se sublinhe, independe da bondade ou da maldade de qualquer dos sujeitos dessa relação. Trata-se de uma tendência natural da relação social de trabalho, que contraria o fundamento da modernidade: o respeito à dignidade e ao ideal de vida minimamente boa para todos.

O Direito opera no nível do discurso, da linguagem. Como instrumento de conservação da ordem (das coisas exatamente como elas estão) precisa reproduzir a promessa fundamental da modernidade, de que a dominação servil seria substituída pela igualdade e pela liberdade. Toda a retórica do discurso moderno fundamenta-se nessa promessa e por mais que ela seja mentirosa para a realidade da vida de muita gente, a sustentação do conjunto normativo, moral e burocrático em que se assenta o Estado pressupõe sua reprodução. Ocorre que defender liberdade e igualdade impede que se sustente, em uma tal sociedade, um tipo de relação social em que a condição humana seja tendencialmente anulada.

A iniciativa de Hegel, até hoje de certo modo reproduzida, de sustentar que somos proprietários de nossa força vital e que, por consequência, quando ingressamos numa relação de trabalho estamos expressando nossa liberdade e alienando nossa propriedade, não pode esconder o fato de que, como já dizia Marx, em regra o trabalhador ingressa apenas com a sua pele e não espera outra coisa da relação que firma com o capital, do que a própria despela.

As consequências desse fato objetivo: a produção de miséria, de desemprego estrutural, a correspondente falta de consumo suficiente e a revolta organizada dos trabalhadores, gerou ao longo dos anos a necessidade da edição de regras que

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de algum modo minimizassem tal característica, sem contudo alterar a lógica da exploração. As regras trabalhistas foram criadas, portanto, para impor alguns limites à tendência natural da relação de exploração do trabalho pelo capital, a fim de seguir sustentando, também para o trabalhador, a condição de “sujeito de direitos”. Mesmo que durante o contrato ele siga precisando comportar-se como mercadoria, os limites (de duração de trabalho, remuneração mínima, vedação de alterações lesivas; ambiente saudável etc. servem para seguir convencendo-o de que também é destinatário da ordem jurídica, e tem, pois, sua humanidade preservada.

O princípio da proteção a quem trabalha, que determina a existência de regras trabalhistas, dá, portanto, a medida da exploração possível. Pois bem, se reconhecemos isso, precisamos também reconhecer que regras de conduta social emanadas pelo Estado só serão realmente normas jurídicas trabalhistas se estiverem fundamentadas na noção de proteção a quem trabalha e se concretizarem esse princípio. Trata-se de uma compreensão de princípio como o que está no início, o que justifica a edição de um determinado conjunto de regras de conduta social. Por consequência, uma regra que nega a proteção não adquire a condição de norma jurídica trabalhista.

É interessante observar que no caso do Direito do Trabalho, mesmo o discurso do capital reconhece a proteção que justifica sua existência. O texto da Exposição de Motivos para a criação da Justiça do Trabalho, datado de 11 de novembro de 1936, por exemplo, refere textualmente que ela “justifica-se não só pela necessidade de harmonizar os interesses em lucta, como em defesa da autoridade do Estado, que não pôde ser neutro, nem abstencionista, deante das perturbações collectivas, deixando as forças sociaes entregues aos proprios impulsos”. Reconhece a ausência de neutralidade em uma estrutura de poder criada para minimizar a assimetria objetiva presente na relação social do trabalho. Além disso, menciona que a função do Sindicato é “a lucta para a conquista de um salario sempre mais elevado e de garantias que attenuem as desigualdades economicas”, reforçando a compreensão presente no caput do art. 7º da Constituição da República, de que as normas coletivas só adquirem normatividade, qualificando-se como um direito fundamental do trabalhador, se efetivamente promoverem a melhoria de sua condição social, pois é exatamente essa a função dos sindicatos. O documento refere, ainda, que a Justiça do Trabalho, como “instancia conciliatoria”, pode oferecer às partes “meios para entendimento, transigencia e accordo, constituindo a arbitragem coercitiva instancia subsidiaria e ultima, por não ser possível fiquem os conflictos sem solução”, admitindo que a supressão dessa instância mediadora produz prejuízos de ordem social, impedindo que o próprio sistema siga se reproduzindo. Reconhece que a questão social nos países capitalistas, “se caracteriza pela necessidade de redistribuição da riqueza accumulada”. E ainda explicita que no Brasil, a questão social se apresenta com aspectos diferentes, exigindo “augmento de riqueza, que só podemos attingir com a organização das nossas actividades productoras”. Por isso, conclui que a função da Justiça do Trabalho é assegurar à classe trabalhadora “protecção capaz de assegurar os seus interesses em equilibrio com os do patronato, subordinados todos aos imperativos de ordem collectiva”.

Ora, nada mais cristalino. A razão fundante do Direito do Trabalho, e da Justiça do Trabalho, é garantir proteção a quem trabalha. O texto ainda conclui que o “problema do trabalho não é unilateral, nem pôde ser resolvido com a sua regulamentação pura e simples. Demanda um esforço geral de organização e ordem, que attinja a todos os sectores da producção”.

É ainda importante observar que a Justiça do Trabalho, nesse documento, é apresentada como uma instituição pautada pelos seguintes princípios: “identidade de juiz – isto é, um só juiz preparador e julgador”; “processo oral”; “prova immediata, não havendo dilação”; “concentração processual, isto é, todos os incidentes e meios de prova são feitos em conjunto e, tanto quanto possivel, na mesma audiencia”; “instancia unica, quando possivel, não havendo recurso das decisões, incidentes ou interlocutorias, e só se permittindo a appellação das sentenças definitivas com effeito suspensivo em casos restrictos”; “gratuidade do processo até 1:000$000 (um conto de réis) e pagamento das custas somente afinal” e “execução, pela Justiça do Trabalho, das proprias decisões”. Em realidade, não se trata de um rol de princípios, mas de decorrências da noção de proteção, que não podem ser suprimidas por uma lei ordinária, quando a ordem jurídica que legitimou tais afirmações não apenas se mantém, mas foi reforçada pela lógica do texto constitucional, e por toda a doutrina que alça os direitos trabalhistas à condição de direitos fundamentais.

A leitura do texto da Lei n. 13.467/17 impressiona pela insistente tentativa de ruptura com a ordem constitucional que busca a proteção da incolumidade física e psíquica de todos os cidadãos, especialmente no ambiente de trabalho. A autorização para que gestante trabalhe em ambiente insalubre, um dos poucos pontos da “reforma” comentados em sua supersônica fase de...

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