A eqüidade como instrumento da hermenêutica jurídica

AutorRogério Ristow
CargoMestrando em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí - UNIVALI e professor de Direito Penal na mesma Universidade. E-mail: rristow@terra.com.br e home page: rogerioristow.cjb.net
Páginas150-165

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1. Introdução

O presente trabalho tem a finalidade de, em breves palavras, analisar o instituto da eqüidade e sua importância para a hermenêutica jurídica.1 Para tanto, apresentaremos o conceito de eqüidade sob vários enfoques e segundo diversos autores, o que desde já salientamos, divergem sobre o instituto. Também trataremos da classificação realizada por Alípio Silveira, bem como a sua divisão em "eqüidade legal" e "eqüidade judicial".

Faremos uma análise dos dispositivos legais brasileiros, quais sejam, artigos 4o e 5o da Lei de Introdução ao Código Civil brasileiro2, artigo 3o do Código de Processo Penal brasileiro e artigo 8o da Consolidação das Leis do Trabalho.

Verificaremos ainda o preceito do artigo 127 do Código de Processo Civil brasileiro, segundo o qual "o juiz só decidirá por eqüidade nos casos previstos em lei", a fim de solucionarmos eventuais conflitos aparentes entre o citado dispositivo e a eqüidade de que deve sempre fazer uso o intérprete e o aplicador do Direito.

Embora não tenhamos tratado do artigo 1o do Código Civil suíço e do artigo 114 do antigo Código de Processo Civil brasileiro, recomendamos o leitor a verificar a exposição de Alípio Silveira3 , pois sua fórmula tem sido muito discutida dentre os autores, já que confere poderes ao juiz, diante de lacunas da lei, de decidir como decidiria se fosse o legislador.

Chamamos a atenção do leitor para o fato de que o presente trabalho não esgota o estudo da eqüidade, que se estudada a fundo, se apresenta por demais complexa.

A presente pesquisa foi realizada de acordo com o método indutivo, mas, para uma melhor articulação do conteúdo, relatada no método dedutivo. Foram também utilizadas as técnicas da categoria4 e do conceito operacional5 , os quais serão especificados no corpo do trabalho, necessários à compreensão do assunto.

Finalmente, com o objetivo de verificarmos a eqüidade na prática, apresentaremos duas decisões do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, onde os magistrados dela se utilizaram para "quebrar" o rigorismo da norma positivada e fazer "Justiça"6 ao caso concreto.

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2. Conceito de eqüidade

Para falarmos da eqüidade necessitamos ter em mente que a Lei, norma escrita, por mais extensa ou perfeita que seja, é sempre genérica, jamais conseguindo disciplinar ou regrar todas as possibilidades de acontecimentos da vida em sociedade. Desta forma, o julgador nem sempre encontrará uma norma escrita suficiente para fundamentar sua decisão, por ser ela obscura, inflexível, lacunosa ou mesmo inexistente. Na sua função jurisdicional, como é sabido, o magistrado não pode, em hipótese alguma, deixar de decidir a questão levada à sua apreciação. Encontramos no artigo 126 do Código de processo Civil brasileiro que "o juiz não se exime de sentenciar ou despachar alegando lacuna ou obscuridade da lei. No julgamento da lide caber-lhe-á aplicar as normas legais; não as havendo, recorrerá à analogia, aos costumes e aos princípios gerais de direito".

Ensina Maria Helena Diniz7 que "em caso de lacuna, o juiz deverá constatar, na própria legislação, se há semelhança entre fatos diferentes, fazendo juízo de valor de que esta semelhança se sobrepõe às diferenças. E se não encontrar casos análogos, deve recorrer ao costume e ao princípio geral de direito; não podendo contar com essas alternativas, é-lhe permitido, ainda, socorrer-se da equidade".

A eqüidade, ao longo da história do direito, tem sido conceituada por diversos autores, os quais muitas vezes divergem sobre o que vem a ser o referido instituto. Ao estudar os diversos autores, veremos, por exemplo, que para alguns a eqüidade se trata de um princípio geral de direito, enquanto que para outros não, devendo o magistrado recorrer a ela somente em caso de inexistência desses princípios.

A divergência entre os autores na conceituação de eqüidade dá-se, segundo Maria Helena Diniz, por estar o referido conceito intimamente relacionado às concepções jurídico-filosóficas. Explica a autora que "isto é assim porque o termo 'eqüidade' não é unívoco, pois não se aplica a uma só realidade, nem tão pouco equívoco, já que não designa duas ou mais realidades desconexas, mas sim análogo, pois refere-se a realidades conexas ou relacionadas entre si. Tem a equidade sido, de uma certa forma, entendida como um direito natural em suas várias concepções". 8

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Aristóteles9 , apesar de considerar a eqüidade como uma concepção jusnaturalista, separou-a da justiça, definindo como "a justa retificação do justo, rigorosamente, legal. O eqüitativo, embora melhor do que um gênero de justiça, não é obstante justo, e não pertence a qualquer outra categoria superior ao justo. Portanto, a mesma coisa é justa e eqüitativa, e embora sejam ambas boas, o eqüitativo é superior. O problema se põe, porque eqüitativo é justo, mas não o justo da lei, e sim a correção da justiça legítima".

Assim considerada, a equidade desempenha o papel de um corretivo da lei, a qual, devido a sua generalidade, nem sempre se adapta a todos os acontecimentos da vida em sociedade.

São Tomás de Aquino10 , na mesma linha de Aristóteles, afirmou que:

"(...)os atos humanos, que devem ser regulados pelas leis, são particulares e contingentes e podem variar ao infinito. Por isso, não é possível criar qualquer lei que abranja todos os casos; os legisladores nada podem fazer, pois legislam tendo em vista o que se sucede com maior freqüência. Seria, contudo, ir de encontro à igualdade e ao bem comum que a lei visa, observá-los em determinados casos. Assim a lei dispõe que os depósitos sejam restituídos, porque isto é justo na maioria dos casos; mas, em outros, pode ser nocivo. Por exemplo, se um louco, que deu em depósito uma espada, a exige em acesso de loucura, ou se alguém exige um depósito para lutar contra a Pátria. Nesses, e em outras casos semelhantes, seria um mal observar a lei estabelecida; nem seria, ao contrário, bom, pondo de lado suas palavras, observar o que reclamam a idéia de justiça e a utilidade comum. E com isto se harmoniza a Epiequeia, que nós chamamos de 'eqüidade'."

Apresentamos a seguir o conceito de eqüidade dado por outros autores, o que nos auxiliará a entender melhor a matéria ora tratada.

Alípio Silveira11 , ao conceituar eqüidade, explica que "sob o ponto de vista racional, a eqüidade vem a equiparar-se ao próprio fundamento do direito e da justiça, fundamento esse que varia com as várias doutrinas jurídico-filosóficas: direito natural (em suas várias concepções), direito justo, direito racional; trata-se de um fundamento de caráter valorativo ou deontológico. Quanto ao ponto de vista social, a eqüidade considera a realidade social subjacente.

Serge-Christophe Kolm12 , define eqüidade como a liberdade instrumental igual e independente de diferentes justificáveis (dos indiví-Page 153duos, por exemplo) em um espaço de escolha definido, ou como uma situação equivalente. Conforme o Autor, a palavra eqüidade provém do termo latino que significa igual, e liberdade igual é a igualdade ética geral.

No Dicionário de Filosofia de Abbagnano13 , encontramos eqüidade como sendo "apelo à justiça voltado à correção da lei em que a justiça se exprime". Trata-se do conceito clássico dado por Aristóteles. Maggiore14 coloca a eqüidade no terreno da ética, pois a moral é o fundamento do direito. Para Savatier, "a eqüidade seria um dever do órgão judicante que corresponderia ao direito natural de distribuir, equanimente, a justiça".15

Dos conceitos aqui expostos, nos parece mais conveniente para a finalidade do presente trabalho, o conceito clássico formulado na Grécia por Aristóteles, sobre o qual se manifesta Maria Helena Diniz16 comentando que:

"Desempenha a equidade o papel corretivo, de um remédio aplicado pelo julgador para sanar defeitos oriundos da generalidade da lei, pois a aplicação fiel de uma norma a um caso concreto poderia ser injusta ou inconveniente. A eqüidade é, teoricamente, uma virtude de que deve lançar mão o aplicador, para temperar os rigores de uma fórmula demasiadamente genérica, fazendo com que esta não contrarie os reclamos da justiça".

Também para a Política Jurídica, segundo Melo17 , equidade trata da "adequação da norma geral e abstrata à realidade fática, constituindo-se fundamento de equilíbrio, proporção, correção e moderação na construção da norma concreta".

3. As classificações da Eqüidade

Por ser indispensável ao nosso estudo, após conceituá-la de forma genérica, nos vemos obrigados a observar algumas divisões apresentados por determinados autores.

Alípio Silveira apresenta três acepções básicas que apresenta a eqüidade:

"1. Latíssimo sensu, é ela o princípio universal de ordem normativa, a razão prática, extensível a toda a conduta humana - religiosa,Page 154 moral, social, jurídica. Ainda podemos configurá-la como a suprema regra de justiça a que devem os homens obedecer, conjunto de princípios gerais, imutáveis, concebidos pela razão e criados por Deus como necessidades imediatas da natureza do homem. 2. Lato sensu, a eqüidade se confunde com a idéia de justiça, com a justiça absoluta, com a justiça ideal; com os princípios do direito, com a idéia do direito, com o direito ideal, com o direito natural, em suas várias concepções. Esta segunda acepção representa uma diferenciação da primeira, no sentido do bem comum temporal. 3. Stricto sensu, a eqüidade é essa mesma idéia ou ideal de justiça, esses mesmos princípios de direito, esse mesmo direito natural - enquanto se aplicam, quer à elaboração da lei, quer à sua aplicação. Esta aplicação implica operações complexas e complementares umas das outras:...

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