Legitimidade e legalidade das políticas públicas de igualação racial no âmbito dos concursos públicos no Brasil: estudo de caso

AutorRogério Gesta Leal
Páginas137-156

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1 Notas introdutórias

Pretendo neste ensaio1 abordar o tema que envolve as razões de justificação e fundamentação de constitucionalidade de políticas públicas atinentes ao chamado sistema de reserva de cotas para negros no âmbito dos concursos públicos à Administração Pública brasileira. Esta abordagem dar-se-á a partir da solução de um caso concreto envolvendo concurso público para provimento de cargos em Município gaúcho.

Estarei dividindo em três momentos o trabalho: (a) a contextualização fática do problema que o caso coloca no particular; (b) o enquadramento social, político, normativo-constitucional e infraconstitucional que está alcançando a matéria fática apresentada; (c) considerações conclusivas sobre a solução do caso.

2 O enquandramento fático do caso

Trata o presente feito de Apelação Cível interposta por candidatos em concurso público para o cargo de advogado em face da sentença que denegou a segurança pleiteada pelos impetrantes.2

Em suas razões recursais, os apelantes alegaram que participaram do concurso público para o cargo de advogado de um município gaúcho, aberto por Edital público e regular, assinado pelo Prefeito. Após a realização das provas e divulgação dos gabaritos definitivos, os apelantes restaram classificados nas posições 19º e 9º.

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Disseram que o Edital de abertura do Concurso, de forma absolutamente inconstitucional, com fundamento na Lei Municipal específica, prevê a reserva de 44% das vagas para candidatos de cor negra ou parda – com a previsão de duas listas de classificação distintas, uma para candidatos ordinários, e outra para “afro descendentes” – identificados na forma da lei supra mencionada, exclusivamente pela cor negra e parda e, desta forma, os impetrantes serão indevidamente preteridos na ordem de nomeação do concurso.

Postularam a reforma da sentença, para ver declarada a nulidade das disposições referidas do Edital mencionado, em face de sua inconstitucionalidade.

No parecer ministerial, no segundo grau de jurisdição, o Parquet opinou pelo desprovimento do apelo.

3 Aspectos normativos aplicados ao caso: considerações críticas

De pronto quero lembrar que a Constituição Federal brasileira de 1988, em seu artigo 3°, elenca os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, a saber: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Deste mandamento constitucional retiram-se o significado e a justificativa das chamadas ações afirmativas, aqui entendidas como políticas públicas e privadas destinadas a implementar benefício em favor de um determinado número de pessoas, dentro de um contexto sócio-econômico em que se encontram em desvantagens por razões sociais.3

De tal perspectiva é que também se constitui a ideia de “discriminação positiva”, entendida pela Corte de Justiça da Comunidade Européia (CJCEi) como uma medida que visa a eliminar ou reduzir as desigualdades que de fato podem existir na vida social4.

Veja-se que desde o Primeiro Plano Nacional de Direitos Humanos, veiculado pelos termos do Decreto Federal nº1.904/1996, a questão das políticas afirmativas já se encontra normatizada de forma mais pontual no país, ratificada quando participou da Conferência Mundial contra Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância correlata, realizada em Durban, nos dias 31 de agosto a 8 de setembro de 2001, a qual endossou (§§107 e 108) a importância de os Estados adotarem ações afirmativas para aqueles que foram vítimas de discriminação racial, xenofobia e outras formas de intolerância correlata.5

De outro lado, no plano ainda normativo, tem-se no Brasil, no mínimo desde o Decreto nº 65.810, de 8-12-1969, a internalização da Convenção Internacional sobre a eliminação de todas as formas de discriminação racial, que previu, no art. 1º, parágrafo4º, a adoção de "discriminação positiva", no sentido de que medidas especiais fossem

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tomadas com o objetivo precípuo de assegurar, de forma conveniente, o progresso de certos grupos sociais ou étnicos ou de indivíduos que necessitem de proteção para poderem gozar e exercitar os direitos humanos e as liberdades fundamentais em igualdade de condições, não serão consideradas medidas de discriminação racial, desde que não conduzam à manutenção de direitos separados para diferentes grupos raciais e não prossigam após terem sido atingidos os seus objetivos.

Por esta razão as ações afirmativas no Brasil têm sido interpretadas como uma estratégia de política social ou institucional voltada para alcançar a igualdade de oportunidades entre as pessoas, distinguindo e beneficiando grupos afetados por mecanismos discriminatórios com ações empreendidas em um tempo determinado, com o objetivo de alterar positivamente a situação de desvantagem desses grupos. (Glossário do Ministério do Trabalho e Emprego).6

No entanto, a polêmica é antiga e abrange não somente os negros, mas mulheres reclamando a discriminação positiva em favor delas para que venham a ocupar o mesmo espaço que os homens no mercado de trabalho, ou, então, para deficientes físicos, assegurando, no caso do Brasil, 20% das vagas oferecidas em concursos públicos.7

Ao longo do tempo foram se constituindo, dentre outras, três ideias fundamentais sobre as relações raciais no Brasil pelos especialistas que têm estudado isto, a saber: (a) que é impossível compreender as relações raciais no país sem levar em conta as relações de classe que aqui existem; (b) que a nossa taxinomia racial é complexa, quiçá ambígua, e o processo de classificação dos membros da sociedade se dá não só segundo suas aparências físicas, mas também em função de suas posições de classe; (c) que apesar da existência de uma ideologia de democracia racial, há uma correlação entre raça e classe social, os mais escuros sendo os mais pobres.8

É de tal relevância este debate que a Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal nacional (CCJ) aprovou no dia 17/04/2002, por unanimidade, o substitutivo do senador Sebastião Rocha (PDT-AP) ao projeto de lei do senador José Sarney (PMDB-AP) - Projeto de Lei nº 650/99 - que pretende instituir, pelo prazo de 50 anos, cotas para negros e pardos em concursos públicos, nas universidades, públicas e privadas, e nos contratos de crédito educativo. A cota será de, no mínimo, 20% das vagas oferecidas, podendo aumentar para se ajustar à conformação étnica do Estado onde o órgão público ou a universidade estiver localizada.9

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Não bastasse isto, o Congresso Nacional aprovou o projeto de conversão em lei da MP nº 111/2003, que criou a "Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial", surgindo a Lei nº 10.678/2003, com competência à formulação, coordenação e avaliação das políticas públicas afirmativas de promoção da igualdade e da proteção dos direitos de indivíduos e grupos raciais e étnicos, com ênfase na população negra, afetados por discriminação racial e demais formas de intolerância (art. 2º, da Lei nº 10.678/2003).

O ponto de vista jurídico da matéria aqui invocada, não é outro senão o de garantir tratamento desigual aos desiguais, na medida de suas desigualdades. É nessa esteira de raciocínio que a igualdade está prevista de forma fluída e dispersa ao longo da CF/88, de forma expressa, como no preâmbulo, nos arts. 1º, II e III; 3º, III e IV; 5º, XLI, XLII; art. 7º, XX ( proteção ao mercado de trabalho da mulher) e no art. 37, inciso VIII (percentual de cargos públicos para pessoas portadoras de deficiência), entre outros. Infere-se, pois, naquilo que há uma desigualdade entre partes, é necessário restabelecer o ponto de equilíbrio.10

Não desconheço que muitos defendem que a opção por políticas públicas que venham a instituir cotas para os negros em determinados segmentos e atividades representa oferecer vantagem a uns em relação a outros, uma espécie de bônus a ser ganho pelo negro em detrimento do branco, do amarelo, do pardo11. Todavia, quero sustentar aqui – e já adianto minha posição sobre o tema - que a reserva de cotas para negros em concursos públicos – assim como para vagas nas universidades e mesmo nos contratos de crédito educativo - afigura-se como uma verdadeira forma de equalização normativa de realidades e oportunidades sociais tão distintas, de forma alguma podendo caracterizar-se como discriminação em relação a brancos ou quem quer que seja. Mas é preciso avançar nos argumentos.

A despeito da fragilidade de dados sistematizados de forma mais global dando conta da realidade do negro no Brasil, já há dados estatísticos mensurando-a de alguma forma, ex vi, em caráter histórico, a pesquisa apresentada pelo IBGE, publicada na revista Isto É, edição de 10 de outubro de 2002, revelando que a população brasileira é formada por 24% de analfabetos, sendo que, destes, 80% são negros. Em tal pesquisa, consta que: (a) o DIEESE, em relação a São Paulo, apontou que, na área do desemprego, 22% são negros, enquanto que 16% são brancos; (b) o salário médio em São Paulo, para mulher negra, é de R$399,00; paraPage 141 mulher branca, R$ 750,00; para o homem negro é de R$ 601,00, e para o homem branco de R$ 1.100,00.12

Na publicação Mulheres Negras - Um Retrato da Discriminação Racial no Brasil13, tem-se informações que dão conta de que: (a) do número de formandos em universidades, segundo o Ministério da Educação, resulta em 80% de brancos e 2% de negros; (b) a expectativa de vida (até por fatores de carga pesada, serviços pesados para os negros, continuando como trabalhadores braçais) entre negros é de 64 anos, enquanto que os brancos têm uma expectativa de 70 anos.

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