O princípio da igualdade na Constituição Brasileira e sua aplicabilidade nas ações afirmativas referentes ao ingresso no ensino superior

Autor1.Clovis Gorczevski - 2.Rosane Beatris Mariano da Rocha Barcelos Terra
Cargo1.Advogado, Professor Doutor da Universidade de Santa Cruz do Sul, Pós-Doutorando pela Universidade de Burgos da Espanha - 2. Advogada, Especialista em Pesquisa Científica, Mestranda em Direito pela UNISC.
Páginas117-137

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Considerações iniciais

O escopo de romper paradigmas na educação pátria decorrente de um ideal, movido pela latente injustiça vigente no nosso país, causada pelas desequiparações sociais, geradoras de uma pseudocidadania e da manutenção do status quo para os mais desfavorecidos, fomentando a violência que devasta todos os segmentos sociais que assumem variadas formas, tais como o desemprego generalizado e a alienação política e social, incitando a abertura de olhos para um novo horizonte, impondo, dessa forma, uma nova visão de mundo para equacionar da melhor forma possível a questão educacional, visto que ela é pedra angular ao desenvolvimento humano.

Num primeiro momento, prima-se pela análise, de forma crítica, do Princípio da Igualdade e do tratamento atribuído pela Constituição Brasileira. Em seguida, cotejarse-á a questão da estipulação de “cotas” para ingresso em instituições de ensino superior, como forma de instrumentalização de ações afirmativas.

Pelo prisma abordado, objetivando-se a concretização dos ideais lançados, mostra-se essencial o estabelecimento da distinção existente entre a acepção formal e a material do princípio referido. No mesmo ensejo, será abordado as conceituações necessárias para a boa fluidez da compreensão da proposta.

Ademais, será exposto, ainda, uma breve evolução histórica sobre a implementação de discriminações positivas (segundo o direito europeu) ou ações afirmativas (conforme a designação do direito americano e brasileiro).

Inolvidável, nessa visão, ressaltar a intrincada questão que as discriminações nos colocam, uma vez que, dependendo da ótica pela qual se perpassa, elas poderão ser consideradas como positivas ou negativas.

Cumpre, ademais, repisar a correlação inarredável e permanente que se deve fazer entre os fundamentos constitucionais, os princípios, como o da Igualdade, da Liberdade, da Dignidade da Pessoa Humana, dentre outros, pois tais questões são meios de solucionar as novas indagações e interpretações, não só do meio acadêmico, como também da seara do espaço jurídico-político.

É justamente, nesse sentido, que o presente trabalho se esmerará, em demonstrar a possibilidade de adoção de ações afirmativas, denominadas de reservaPage 119de cotas, voltadas a beneficiar parcela da população para ingresso no ensino superior, seja em razão da etnia dos ingressantes, seja em razão de sua condição física ou socioeconômica, sem isso constituir-se num afronte ao princípio da igualdade.

1 Breves apontamentos sobre o Princípio da Igualdade e suas contextualizações

Segundo a ótica liberal, o princípio da igualdade atinha-se à proclamação da igualdade de todos perante a lei, sob a acepção estritamente formal, dissociada do interesse de eliminar as desequiparações sociais e econômicas.

No início do século passado, a acepção do princípio ganhou novo entendimento, ou seja, passamos a compreendê-la como um conceito substancial que encerra o aspecto de proporcionalidade e ponderação no que tange à consideração das peculiaridades específicas de cada pessoa, muito bem pontuado por Faria3 : “(...) além da igualdade perante a lei, deverá existir igualdade perante a vida”.

Em nossa Constituição atual, encontramos a caracterização do princípio da igualdade desde seu preâmbulo, estendendo suas ramificações por todo o texto constitucional. Exemplificativamente, podemos citar os seguintes dispositivos: Preâmbulo, artigo 3º e incisos I, III e IV, artigo 5º e inciso I, artigo 170 e incisos VII e IX, artigo 7º e inciso XX, artigo 37 e inciso VIII, artigo 208 e inciso V, artigo 227 e inciso II.

Além dessas preceituações, a Constituição Federal do modo como dispõe a questão do princípio da igualdade dá margem para que surjam duas formas de interpretações, ou seja, pode-se desprender uma interpretação formal e outra material.

Silva4, em posicionamento peculiar, entende que a igualdade constitui o signo fundamental da democracia e, como tal, deve ser interpretada, aproximando as duas formas de igualdade expressas na própria Constituição Federal.

Porém, o princípio da igualdade, de acordo com a atual Carta Magna, significa propiciar, como já referido, perante o direito, um tratamento legislativo e jurídico igualitário aos iguais e, por questão de justiça, da mesma forma tratar os desiguais, desigualmente. Esta é a forma denominada de igualdade material, substancial, que postula uma igualdade real, efetiva, entre todos os homens, perante os bens da vida.

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Coadunam-se a esse posicionamento as idéias de Pérez-Luño5 que, de forma bastante didática, expõe a significação do conceito de igualdade:

Desde um punto de vista lógico, el concepto de igualdad significa la coincidencia o equivalencia parcial entre diferentes entes. Esta categoria es distinta de la identidad, que entranã la coincidencia absoluta de um ente consigo mismo, y de la semejanza, que evoca la mera afinidad o aproximación entre diferentes entes.

Sabe-se, no entanto, que a igualdade absoluta é utópica, uma vez que existem pessoas com diferentes valores, tais como habilidade e aptidão que não podem ser ignoradas. Nesse sentido, a busca pela igualdade absoluta persiste no constitucionalismo moderno, de maneira itinerante.

Em sentido oposto, temos a designação do que seja a igualdade formal, presente em nossa atual Carta Magna, assim como em quase todas as Constituições Democráticas da modernidade, isto significa dizer que o formalismo dessa igualdade “consiste no direito de todo cidadão não ser desigualado pela lei senão em consonância com os critérios albergados ou ao menos não vedados pelo ordenamento constitucional”6 .

Visando aos avanços em direção à igualdade substancial, ou do que mais se aproxime dela, eis que se constitui no escopo da presente pesquisa, valemo-nos de normas ditas programáticas voltadas a diminuir as desequiparações materiais e sociais existentes na sociedade atual, bem como da implementação das políticas ou programas de ação estatal, por meio das ditas ações afirmativas, que serão retomadas adiante com mais afinco.

Assevera, ainda, Pérez-Luño7 , com propriedade, a justificativa para a real compreensão da diversidade da noção do princípio da igualdade

La noción de igualdad, como casi todos los grandes valores fundamentales, presenta estrechas concomitancias con otros princípios ideales ( libertad, justicia, bien común...) dirigidos al desarrollo ético-social de la comunidad humana. Esta condición, junto con la diversidad de planos y etapas históricas em los que há venido utilizada há sido motivo de su diversidad significativa.

Silva8, ao tratar especificamente do direito de igualdade, salienta que este direito há muito não vem recebendo um destaque maior nas rodas de discussão, em relação ao direito de liberdade. Em suas palavras,Page 121(...) a igualdade constitui o signo fundamental da democracia. (...) Não admite os privilégios e distinções que um regime simplesmente liberal consagra. (...) Por isso é que a burguesia, cônscia de seu privilégio de classe, jamais postulou um regime de igualdade tanto quanto reivindicara o de liberdade. (...) É que um regime de igualdade contraria seus interesses e dá à liberdade sentido material que não se harmoniza com o domínio de classe em que se assenta a democracia liberal burguesa.

Feitas essas considerações iniciais a respeito do princípio da igualdade, passamos, de imediato, a sopesar a conceituação das ações afirmativas e sua evolução histórica no contexto mundial, e os instrumentos positivados na Constituição de 1988, bem como as leis esparsas, caracterizadoras das políticas afirmativas.

2 Conceitualizaçao das ações afirmativas e sua correlação com os demais princípios norteadores

Segundo a ótica de renomados doutrinadores, que serão elencados a seguir, cotejaremos a conceituação das ações afirmativas, apresentando, na seqüência, um sucinto enquadramento espaço-temporal dessas políticas.

Inicialmente coletamos a conceituação trazida por Gomes9 para a melhor compreensão de ditas ações, as quais consistem em políticas públicas (e também privadas) voltadas à concretização do princípio constitucional da igualdade material e à neutralização dos efeitos da discriminação racial, de gênero, de idade, de origem nacional e de compleição física. Impostas ou sugeridas pelo Estado, por seus entes vinculados e até mesmo por entidades puramente privadas, elas visam a combater não somente as manifestações flagrantes de discriminação de fundo cultural, estrutural, enraizada na sociedade.10

Assim, temos que a primeira designação de ação afirmativa influencia até os dias de hoje a questão da conservação do sentido de reparação por uma injustiça passada. Enquanto que a noção moderna, diz respeito a um programa de políticas públicas impostas pelo Executivo ou pelo Legislativo, ou praticado por empresas privadas para garantir a ascensão de minorias étnicas, raciais e sexuais11 .

Portanto, podemos afirmar que são duas as correntes teóricas embasadoras das ações afirmativas. Cita-se a existência da que se denomina justiça compensatória, que é caracterizada como política ou programa público ou privado, que objetivaPage 122conceder benefícios às minorias sociais, em condições desvantajosas frente a uma realidade social, em face de discriminações negativas passadas. A segunda corrente se fundamenta na justiça distributiva, ou seja, baseia-se na eqüidade da redistribuição de encargos e benefícios sociais.

É relevante ressaltar a existência de doutrinadores que reconhecem as ações afirmativas como sendo medidas eivadas do caráter de temporariedade. Nesse sentido, a conceituação de Cashmore12...

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