O Princípio da Afetividade no Direito das Famílias

AutorThiago Montanari Marins
Páginas76-126

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I Introdução

Não é de hoje1 que o Direito das Famílias2 desperta acalorados debates jurídicos entre seus cientistas, sobretudo pela sua relevância imprescindível na vida dasPage 77 pessoas. No cerne das principais problemas que permeiam a civilista contemporânea no que tange as relações familiares, encontra-se, direta ou indiretamente, o princípio da afetividade.

O presente trabalho almeja tratar desse controverso e novo princípio, o princípio da afetividade. Assim, procura-se delimitar a citada temática pela exposição dos seus principais aspectos e a sua aplicação no ramo do Direito das Famílias, tendo como base a sua inserção histórica na evolução do conceito de família, a sua aplicação em casos concretos relevantes e a sua influência no âmbito das decisões do Poder Judiciário, além do tratamento dado pela doutrina. Realizou-se uma exposição crítica de algumas questões polêmicas atuais que giram em torno do princípio da afetividade e uma busca pela definição de novas perspectivas.

No que tange aos métodos de pesquisa, a mesma é classificada, quanto à forma de abordagem, como qualitativa, na medida em se baseia em dimensões subjetivas da atividade humana, além de desenvolver um estudo em que as informações são, em sua maior parte, oriundas de fontes bibliográficas qualitativas.

O leitor perceberá que não foram raros os momentos em que houve uma necessária viagem interdisciplinar, seja pelo mundo da psicologia, da história ou da sociologia. Essas conexões interdisciplinares foram feitas para dar maior amplitude de visualização à problemática e, conseqüentemente, um melhor tratamento ao tema.

II Princípios

Na visão de Celso Antônio Bandeira de Mello, princípio é “o mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico”3.

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Gilmar Ferreira Mendes, fazendo referência a Gomes Canotilho, revela as seguintes características dos princípios:

• são normas com um grau de abstração relativamente elevado;

• carecem de mediações concretizadoras, seja do legislador ou seja do jurista, pelo fato de serem vagos e indeterminados;

• pela posição hierárquica no sistema de fontes ou pela importância estruturante dentro do sistema jurídico, possuem um papel fundamental no ordenamento;

• são standards juridicamente vinculantes, radicados nas exigências de justiça ou na idéia de direito; e

• são fundamentos de regras, isto é, são normas que estão na base ou constituem a ratio de regras jurídicas, desempenhando, por isso, uma função normogenética fundamentante4.

Humberto Ávila, em suas conclusões a respeito da teoria dos princípios, expõe alguns pontos fundamentais a serem considerados na sua definição, sobretudo quando comparados às regras. Para ele, os princípios são normas que objetivam um determinado fim (normas finalísticas). São normas prospectivas, na medida em que apontam uma direção, e com pretensão de complementaridade e de parcialidade, já que não objetivam abranger todos os aspectos relevantes para a tomada de uma determinada decisão nem, tampouco, gerar uma solução específica. A finalidade é contribuir, ao lado de outras razões, para a formação da decisão. Desse modo, a interpretação e a aplicação dos princípios demandam uma avaliação da correlação entre o estado de coisas a ser promovido e os efeitos decorrentes da conduta havida como necessária à sua promoção. Nessa seara, a qualidade dos princípios é determinar a realização de um fim juridicamente relevante.5

Com isso, resta indubitável, para a ciência do Direito, o caráter de extrema importância assumido pelos princípios na atual ordem jurídica. Como se viu, os princípios são fundamentos de todo o ordenamento, representando o espírito deste. Eles são ordenações dePage 79 onde emanam valores jurídicos de extrema relevância. Além disso, são vetores jurídicos que direcionam a interpretação e a aplicação das leis de forma racional, lógica e harmônica com todo o sistema normativo, e apontam para a realização de um fim juridicamente relevante.

III Família
III 1. Uma breve história da formação da família brasileira

A história do Brasil e sua formação econômica e social guardam forte ligação com a estrutura da família brasileira.

Neste trabalho, toma-se como ponto de partida a família rural baseada no modelo patriarcal, hierarquizado e transpessoal6. Tal padrão era baseado no matrimônio, de tradição católico-romana, em que a relação entre homem e mulher casados deveria durar até a morte de um dos dois7, ainda que isso significasse uma vida infeliz.

Nesse modelo de família, os laços patrimoniais eram realçados em detrimento dos laços afetivos. Tratava-se muito mais de um modelo de produção da sociedade do que de uma célula social constituída para a satisfação e felicidade de seus membros.

Não é difícil entender porque o vínculo do casamento era indissolúvel. A dissolução do casamento colocava em risco a própria sociedade, já que o matrimônio era a sua célula fundamental não somente para a formação dos indivíduos que nasciam e cresciam no seio da família, mas também era a base econômica da sociedade ali desenhada. Gilberto Freyre, em sua grandiosa obra de descrição da sociedade brasileira, revela:

“A nossa verdadeira formação social se processa de 1532 em diante, tendo a família rural ou semi-rural por unidade (...). Vivo e absorvente órgão da formação social brasileira, a família colonial reuniu, sobre a base econômica da riqueza agrícola e do trabalho escravo, uma variedade de funções sociais e econômicas. Inclusive, como jáPage 80 insinuamos, a do mando político: o oligarquismo ou nepotismo, que aqui madrugou (...)”8.

Não se pode deixar de mencionar, porém, que apesar de existir um modelo de família predominante (a família patriarcal), já se verificava, em épocas remotas, a existência de diferentes núcleos familiares. É o que o mesmo autor traz:

Em ligação com o assunto devemo-nos recordar que o familismo no Brasil compreendeu não só o patriarcado dominante – e formalmente ortodoxo do ponto de vista católico-romano – como outras formas de família: parapatriarcais, semipatriarcais e mesmo antipatriarcais (...)9.

As mudanças de valores ocorridas no século passado acabaram por muito influenciar o modelo de família até então existente, transformando-o à medida que a sociedade brasileira também mudava.

Nessa digressão histórica de transformação, podemos citar o fenômeno da globalização como fator preponderante, já que reduziu as distâncias entre diferentes povos, aproximando culturas diversas e criando uma economia em escala global.

A aproximação com outros povos tornou perceptível a fragilidade dessa sistemática econômica e política. Aos poucos, a família deixou de ser um modelo de produção econômico e passou a ser uma instituição desenvolvida em torno das relações de afeto entre seus membros, sendo possível afirmar que esse processo de transformação ainda não se concluiu totalmente.

Paralelamente com a globalização e também por causa dela, a emancipação feminina exigiu igualdade entre homens e mulheres, o que acabou por revolucionar a célulamáter da sociedade, já que o modelo de submissão da mulher ao homem deixou de ser comportado. Com isso, perdeu-se um elemento importante capaz de manter o elo formado pelo casamento, uma vez que a esposa era obrigada a tolerar as agressões e os desmandos do marido, sob pena de ser socialmente marginalizada. A relação entre homem e mulher no seioPage 81 familiar deixou de ser uma relação de autoridade para centrar-se num elemento muito mais sensível, o afeto. A afetividade passou a ser preponderante para a conquista de uma relação familiar duradoura e saudável.

A democratização também contribuiu para o processo de transformação da família, na medida em que houve inegável valorização da liberdade e da igualdade entre os indivíduos. Diminuía-se, assim, cada vez mais, o abismo existente nas relações entre os membros da família, até então marcada pela autoridade do pai.

O advento da Constituição da República de 1988 alçou o princípio da dignidade da pessoa humana à categoria de princípio basilar de todo o ordenamento, passando a ser o epicentro axiológico de toda a ordem constitucional. Previsto no art. 1º, III, da Constituição, o princípio também é citado expressamente no §7º do art. 226 quanto à proteção da família pelo Estado e pela própria sociedade.

A transformação do arranjo familiar no Brasil é tão latente que o IBGE publicou, em 2006, pesquisa na qual se verificou um aumento significativo no número de famílias chefiadas por mulheres, a chefia feminina na família aumentou cerca de 35%, de 22,9%, em 1995, para 30,6% em 200510.

Com tudo que fora exposto acima, é possível concluir que a família brasileira vem mudando na mesma esteira em que a sociedade vem se transformando e incorporando novos valores. Nesse diapasão, respeitando-se a dignidade...

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