Humor e liberdade de imprensa em O Mequetrefe/Humor and freedom of the press in O Mequetrefe.

AutorCapelotti, Joao Paulo

INTRODUCAO

Durante o periodo colonial, decretos regios proibiam, no Brasil, nao so a instalacao de universidades, mas tambem de graficas. Consequentemente, dificultavam sobremaneira o acesso da populacao a livros e jornais (4). A dificuldade de circulacao de ideias em escala nacional (5)--que, se nao impediu, ao menos atrasou o projeto de Independencia--foi em parte superada com a transferencia da Familia Real para a colonia em 1808.

Em 13 de maio do mesmo ano foi criada a Imprensa Regia, a principio autorizada a imprimir apenas papeis diplomaticos e legislacao, mas a qual logo foi permitida a publicacao de outros titulos e assuntos (6). A Gazeta do Rio de Janeiro, nosso primeiro periodico (7), comecou a circular em 10 de setembro de 1808, estando sujeita a censura previa (8), que vigorou ate 28 de agosto de 1821. Com seu fim, surgiram no Rio de Janeiro diversos jornais de vida curta (9), mas de significativa importancia politica para o processo de independencia em marcha (10). Pouco depois, por meio de Portaria baixada em 19 de janeiro de 1822, Jose Bonifacio de Andrada e Silva, entao Ministro do Reino e de Estrangeiros, determinou que nao se embaracasse a impressao de escritos anonimos (11), garantindo, porem, a responsabilizacao do autor, ainda que seu nome nao tivesse sido publicado, e, na falta deste, do editor ou impressor (12). Em 22 de novembro de 1823, foi publicada a primeira Lei de Imprensa, mais tarde incorporada pelo Codigo Criminal de 1830, que regulamentou os crimes de imprensa como comuns ate a edicao do Codigo Criminal da Republica, em 1890 (13).

A Constituicao de 1824, outorgada apos a Independencia, assegurava expressamente a liberdade de expressao e de imprensa (14). Porem, o exercicio concreto dessa garantia sofreria os desmandos de D. Pedro I (15), devidos talvez a contexto politico-constitucional instavel. Durante o turbulento periodo regencial (16), aponta-se ter havido maior liberdade de imprensa, ainda que tenham sido registradas prisoes de redatores e periodicos tenham saido de circulacao. A fim de superar as inquietacoes da Regencia, D. Pedro II assumiu o trono pelo Golpe da Maioridade (17). Assim iniciado o Segundo Reinado, interessa ressaltar o fato de haver sido marcado pelo respeito a Constituicao e por tendencias liberais (18).

Segundo a Constituicao, por exemplo, o Imperador era chefe do executivo e nomeava livremente os ministros. Com a introducao de caracteristicas parlamentares no sistema constitucional pelo Decreto n. 523, de 20 de julho de 1847, foram admitidos na cena publica o conselho de ministros e seu presidente, nomeado livremente pela Coroa para, em seguida, distribuir os ministerios. Ou seja, houve reducao das atribuicoes do Poder Moderador em favor do executivo, tornando mais liberal o equilibrio constitucional brasileiro, o que sugere nao ser verdadeiro o mito do quarto poder centralizador e despotico. Embora a massa de analfabetos, a desigualdade social, a restricao da cidadania e a permanencia da escravidao sejam fatores a mencionar em qualquer estudo sobre o periodo monarquico, tais caracteristicas nao desmentem o perfil liberal da Monarquia Constitucional brasileira. Nesse momento historico, liberalismo nao era sinonimo de democracia ou justica social, temas a se consolidarem com clareza no panorama constitucional apenas no seculo XX.

Durante o Segundo Reinado, a garantia de liberdade de imprensa pareceu receber maior protecao do que nas conjunturas antecedentes. Na verdade, certamente mais que nos primeiros anos da Republica e que em diversos governos autoritarios ao longo do seculo XX. Para fundamentar tal argumento, antes de qualquer opiniao interessada, invoca-se a critica do periodico paranaense A Republica, segundo a qual "Collocar sob o manto da liberdade essa faculdade que nos temos de injuriar os outros sem soffrermos as penas da lei, e fazer uma injuria a propria liberdade. A liberdade suppoe sempre a responsabilidade; de outra forma nao e liberdade e licenca" (grifamos) (19). Ao entregarem-se a crenca republicana na evolucao natural da sociedade, rejeitavam a ampla liberdade de que faziam uso cotidianamente, emitindo discursos em franca contradicao com suas possibilidades praticas de contestacao.

Assim, de um lado, embora poucos pudessem ler e ainda menos pudessem ter suas opinioes estampadas em jornais e revistas, parece salutar o posicionamento de D. Pedro II, em particular, e das instituicoes, em geral, afastando do espaco publico a censura previa e a intervencao no funcionamento da imprensa. De outro, a formacao da opiniao publica como instituicao fundamental a ordem constitucional, verdadeiro tribunal dos atos politicos e administrativos, meio de publicidade e discussao por excelencia, a tornaria quase irresistivel com o passar dos anos. A liberdade de exprimir todas as opinioes, assim, nao deve ser atribuida unilateralmente a benevolencia da Coroa, ou ao carater moderado do monarca. Embora tais elementos fossem importantes a sua conformacao, a imprensa, encarnando a opiniao publica, tornou-se instituicao imprescindivel a esfera politico-constitucional (20), de forma a elevar os custos simbolicos da intervencao direta e fazendo do debate publico o meio mais eficaz de combater a oposicao, fosse monarquica ou republicana.

Bom termometro dessa liberdade sao as charges publicadas em O Mequetrefe, periodico circulante no Rio de Janeiro entre 1875 e 1893 (21). Foi uma entre tantas revistas ilustradas com que a introducao da tecnica litografica ornou as paginas de nossa historia politica e cultural. Como bem delineado em um de seus editoriais, o carro-chefe do periodico eram as charges e os textos comicos comentando aspectos da vida politica do pais:

(...) E em poucas palavras podemos resumir o nosso programa. Periodico essencialmente caricaturista, procurara sempre o Mequetrefe tomar nos acontecimentos a nota comica que va despertar a hilaridade. Em todo caso, sera sempre alheio a politica, e aos grupos em que ella se devide. Nao quer isto dizer que fujamos a encarar o assumpto politico, a pretexto de escabroso. Em vez, porem, de apreciarmos os factos em suas generalidades e os individuos em suas particularidades, procuraremos sempre apanhar o ridiculo nos acontecimentos e a caricatura nas invididualidades (22). Criticava o regime monarquico desde os primeiros numeros e tinha posicionamento marcadamente republicano, colocando diversas vezes em sua capa o retrato de algum proeminente entusiasta da causa que ganhara vigor apos o Manifesto Republicano de 1870 e a formacao partidaria da nova fracao politica nos anos subsequentes. Nao era o unico, por certo. Especialmente no Rio de Janeiro e em Sao Paulo (talvez gracas a Faculdade de Direito), floresciam inumeros jornais de orientacao pro-republica, merecendo analises eruditas de diversos historiadores (23).

Optamos, contudo, por delimitar o tema deste estudo a analise do periodico intitulado O Mequetrefe, sem perder de vista o quadro mais amplo retratado por outros pesquisadores a partir de perspectivas distintas e do uso de fontes primarias auxiliares, como a folha paranaense A Republica. A escolha se justifica tanto pelo enfoque empirico adotado (resultando em coleta de evidencias historicas) quanto pelo interesse em esquadrinhar um periodico relativamente longo, cobrindo especialmente os ultimos anos da Monarquia e os primeiros da Republica. Essa longevidade nos permite justapor posturas editoriais em conjunturas distintas, destacando suas permanencias e descontinuidades. O Mequetrefe, alem disso, nao tem sido tao estudado como outros periodicos da epoca, de maior fama--entre os quais se destaca a Revista Illustrada--, lacuna que este trabalho pretende modestamente ajudar a preencher.

A fim de atingir esses objetivos, num primeiro momento, procuramos tracar breve panorama do cenario em que O Mequetrefe se inseria, buscando contextualizar a liberdade de imprensa no ambiente de relativo respeito as liberdades individuais classicas. Num segundo momento, buscamos apreender a atuacao do periodico no espaco publico, especialmente em sua veia humoristica atacando a Monarquia Constitucional, satirizando a figura publica (e privada) do imperador, dando publicidade a Republicas imaginarias. Por fim, a terceira secao discorre sobre a atuacao do jornal no inicio do novo regime, com o intento de compara-la ao conteudo veiculado durante o antigo, possibilitando-nos, por meio de indicios historicos, captar sensibilidades juridicas distintas em relacao a amplitude da opiniao publica.

Este estudo nao se pretende exaustivo, considerando que a revista teve mais de 500 edicoes e que, ante nossa modesta pretensao, uma selecao teve de ser feita (pareceunos mais relevante ao tema a analise de alguns exemplares de O Mequetrefe, sobretudo aqueles representando periodos de maior crise politica, embora todos estejam disponiveis no site da Fundacao Biblioteca Nacional (24)). No entanto, centrando-se no periodo da transicao de regimes, ele busca tracar um panorama do humor como modo de exprimir idearios e critica politica. Nao parece exagero afirmar que a circulacao de imaginarios republicanos na imprensa, garantida pela ordem constitucional monarquica, teve papel razoavel na queda desta. Ironicamente, essa larga liberdade sofreu consideraveis restricoes nos primeiros anos de um regime supostamente mais democratico e emancipador, proclamado em nome do povo por elites descontentes associadas ao exercito.

  1. O reinado de Pedro II e as liberdades publicas

    Costuma-se apontar o reinado de D. Pedro II como periodo em que se consolidou o processo de organizacao do Estado brasileiro, solidificando-se uma ordem constitucional marcada por estabilidade e progressiva liberalizacao. Embora nao se possam perder de vista as ressalvas feitas na introducao--da concentracao de renda a escravidao, passando pelo analfabetismo e pela restricao da cidadania ativa--as liberdades publicas estavam razoavelmente asseguradas, em escala...

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