Direitos humanos e biotecnologia: aspectos dilemáticos contemporâneos

AutorRicardo Stanziola Vieira/Ester de Carvalho
CargoDoutor em Ciências Humanas e Mestre em Teoria e Filosofia do Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina/Bacharel em Direito (UNIVALI); advogada; pesquisadora
Páginas64-70

Ricardo Stanziola Vieira1

Ester de Carvalho2

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1 Introdução

Pautado por uma perspectiva crítica e interdisciplinar, este artigo tem por objetivo explorar os dilemas e desafios à racionalidade e ao potencial de eficácia do direito, e instituições de governabilidade a ele ligadas, em face das transformações que vêm ocorrendo na modernidade contemporânea, destacando-se o avanço da ciência e da técnica, representado pela biotecnologia.

Para compreender os inúmeros dilemas e desafios que são apresentados cotidianamente ao Direito contemporâneo, o foco será centrado sobre os direitos humanos. Entende-se que os direitos humanos podem ser considerados grandes representantes da racionalidade moderna. Neste sentido, o "direito ao meio ambiente sadio e equilibrado" pode ser apresentado, por sua vez, como um dos grandes referentes contemporâneos dos direitos humanos.

Porém, mais do que tratar especificamente dos direitos humanos e da racionalidade jurídicoestatal moderna, este artigo objetiva problematizar o debate dos direitos humanos em face de um de seus maiores desafios contemporâneos: o avanço do conhecimento científico e tecnológico em torno da biotecnologia.

Procura-se investigar em que medida os conceitos como "natureza" e "dignidade" humana estão sendo "relativizados" ou "problematizados" pela biotecnologia. Assim, apresenta-se como hipótese inicial, que o discurso dos Direitos Humanos, conforme talhado pela modernidade, não vem sendo capaz de incorporar esta nova problemática, o que não deixa de ser uma decorrência lógica do fato da própria modernidade também estar sofrendo um abalo em seus paradigmas por conta do avanço biotecnológico.

2 Direitos Humanos e as transformações trazidas pela biotecnologia

Para melhor compreender as transformações em curso na modernidade, busca-se situar o modelo do direito vigente, forjado com base no Estado moderno e em princípios e valores como: a liberdade e a igualdade. Sob a égide de tais princípios, reconhecidos pelos Estados Modernos, construiu-se um verdadeiro "edifício jurídico", um sistema (nacional e internacional) de proteção de direitos.

Atualmente, de acordo com alguns autores, a exemplo de Noberto Bobbio (A Era dos Direitos), vive-se um momento juridicamente privilegiado da história. Para Bobbio, os direitos humanos, na forma como estão reconhecidos no atual estágio da modernidade, tanto em nível internacional (Sistema de proteção internacional), como nos Estados Constitucionais de Direito (sobretudo no mundo ocidental), representam uma importante conquista histórica.

Abre-se, assim, um importante debate em torno dos rumos a serem seguidos pela humanidade. Para Bobbio, mais importante do que lutar para o reconhecimento de novos direitos é o esforço por realizar os direitos já reconhecidos, positivados pelo direito moderno. Nesta linha também caminham, de alguma forma, pensadores defensores da modernidade e do sistema jurídico racional estabelecido. Cita-se como destaques, Jurgen Habermas3 (Alemanha), John Rawls e Ronald Dworkin (EUA)4.

Ocorre, no entanto, que pelas razões abaixo arroladas, os próprios pilares sobre os quais esteve sustentada a modernidade, e com ela os sistemas de proteção aos direitos humanos já estabelecidos, segundo Bobbio, começam a ser colocados em xeque quando se verifica que a categoria "homem-indíviduo" é trazida ao foco das controvérsias contemporâneas, obliterando a categoria "homem-sociedade", que fundamentou boa parte da construção teórica do modernidade

Isso porque, a partir de Edgar Morin, retoma-se a visão tripartite do ser humano5, com base na qual, apresentam-se três "entendimentos" de ser humano: 1- indivíduo como espécie (natureza); 2- indivíduo como membro da sociedade (sociedade) e; 3- indivíduo como self (noosfera). Pode-sePage 65 perceber que atualmente e, sobretudo com vistas a uma perspectiva interdisciplinar, para compreender-se o ser humano para além do self (como característica da modernidade), há que se analisar o indivíduo enquanto espécie. O que se discute, no fundo, é a condição humana neste contexto.6

Neste ponto é que o advento e avanço da biotecnologia vem tornar ainda mais complexa a questão, na medida em que reintroduz a dimensão de indivíduo como espécie, antes distante do discurso jurídico da modernidade (pautado primordialmente pela relação indivíduo - sociedade). Para Edgar Morin (e outros), a idéia de unidade do homem foi afirmada pelo humanismo, de forma a extrair do conceito de ser humano, a conotação carnal ou natural. Assim, constata, à luz do humanismo, que:

[...] si el homo sapiens desciende ciertamente de la naturaleza, por su inteligencia se separa de ella. El hombre es un ser superior, y por eso se le debe respetar y honrar em cada hombre. De ahí la noción humanista universalista y emancipadora de los 'derechos del hombre'. 7

Esse autor explica, ainda, como este humanismo, característico do racionalismo das "luzes", alimentou as idéias emancipatórias modernas, mas, por outro lado, encobriu a condição biológica humana:

Puesto que todos los hombres son hombres, todos son, pues, por derecho libres e iguales. Este humanismo racionalista, en apariencia 'descarnado', recubre de hecho la unidad biológica de la especie homo. Pero, en lugar de extraer de ahí su fundamento en la naturaleza, lo postula por derecho y a título de ideal. [...] La idea de la unidad de la especie humana postulada por el humanismo triunfante en el Occidente dominador no ha sido nunca, en realidad, más que una noción ideal. 8

Neste sentido, pondera ainda Edgar Morin que a idéia de humanismo acabou tendo um conteúdo pobre, vazio e artificial do ponto de vista físico e biológico.9 Não surpreende, portanto, que em tal contexto as questões decorrentes do "homem-indíviduo" acabem por serem suscitadas em um campo onde as prescrições morais e normativas ainda não estejam suficientemente sedimentadas.

Desse ponto de vista, as descobertas recentes da biotecnologia, como a clonagem, as pesquisas com células-tronco, o diagnóstico genético pré-implantatório, a manipulação e terapia genética, entre outros, podem ser encaradas como uma evolução e a sua prática como uma experiência da identidade humana.10

Questões como a clonagem e a manipulação genética criam um conflito entre as perspectivas do ser humano como indivíduo, espécie e sociedade. Ou seja, a unidade indivíduo-sociedadeespécie torna-se uma unidade problemática em face da biotecnologia11 . Um dos referentes para esta discussão é o estudo da bioética. A partir da reflexão ética, desenvolveu-se a deontologia e o direito. Nos tempos atuais, e em face dos avanços científicos, a bioética tornou-se o campo mais dinâmico da ética e um dos setores mais importantes da reflexão filosófica. Confere aos direitos humanos alguns de seus princípios basilares, como o direito à vida e à dignidade humana.

3 Interdisciplinaridade e filosofia: o papel da ciência e do direito nos dias atuais

Enfoca-se aqui o papel do avanço da ciência (biotecnologia) na redescoberta do ser humano como espécie (colocada em segundo plano pelo projeto jurídico da modernidade). A noção de homem-espécie, as potenciais alterações no genoma humano e as implicações de tudo isto na regulação da vida em sociedade traz uma grande incerteza e um grande desconforto para o direito moderno contemporâneo.

O pensador português Boaventura de Sousa Santos, contribui no sentido de compreender o significado das categorias ciência e direito no paradigma da modernidade, em crise. Para esse autor, a modernidade, caracterizada a partir dos pilares principais, da regulação e da emancipação, teve a sua força regulatória reduzida, à medida que as dimensões emancipatórias do pilar da emancipação convergiram com o desenvolvimento capitalista, a dois grandes instrumentos dePage 66 racionalização da vida coletiva, a ciência moderna e o direito estatal moderno. A crise de ambos coincide por isso com a "crise do paradigma dominante, uma crise epistemológica e societal".12

Aqui, então, pode-se suscitar a metáfora dos espelhos sociais. As sociedades seriam a imagem que têm de si vistas nos espelhos que constroem para reproduzir as identificações dominantes em um determinado momento histórico: "são os espelhos que, ao criar sistemas e práticas de semelhança, correspondência e identidade, asseguram as rotinas que sustentam a vida em sociedade. Uma sociedade sem espelhos é uma sociedade aterrorizada pelo seu próprio terror". E explica Boaventura de Sousa Santos:

[...] há duas diferenças fundamentais entre o uso de espelhos pelos indivíduos e o uso dos espelhos pela sociedade. A primeira diferença é, obviamente, que os espelhos da sociedade não são físicos, de vidro. São conjuntos de instituições, normatividades, ideologias que estabelecem correspondências e hierarquias entre campos infinitamente vastos de práticas sociais. São essas correspondências e hierarquias que permitem reiterar identificações até o ponto de estas se transformarem em identidades. A ciência, o direito, a educação, a informação, a religião e a tradição estão entre os mais importantes espelhos das sociedades contemporâneas. O que eles refletem é o que as sociedades são. Por detrás ou para além deles, não há nada. (grifo nosso). 13

Nota-se que a metáfora de Santos (os espelhos societais) tem direta relação com o tema deste artigo. O direito moderno, aqui entendido como um importante espelho social, encontra-se em um contexto de perplexidade ante o avanço quase sem limites da lógica técnico científica representada pela biotecnologia.

4 Modernidade e biotecnologia: em busca de uma nova pauta...

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