O 'humanismo racial brasileiro': o nosso racismo particular

AutorAdilson José Moreira
Páginas195-211
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CAPÍTULO VII
O “HUMANISMO RACIAL BRASILEIRO”:
O NOSSO RACISMO PARTICULAR
Volto a trabalhar neste livro depois de algumas semanas preocu-
pado com algumas questões pessoais relevantes. Eu me sinto muito
motivado para falar sobre temas dessa natureza porque reconheço que
sou uma das poucas pessoas negras que tem algum tipo de inserção
dentro do espaço acadêmico. Trabalho durante umas duas horas e depois
interrompo para relaxar um pouco. Geralmente vejo algum vídeo sobre
história ou arqueologia. Não foi fácil retomar o trabalho na última vez
que o interrompi. Encontrei um vídeo de uma apresentação de Nina
Simone em Montreux que me deixou muito, muito triste. Uma mú-
sica que fala sobre a vontade de sentir a sensação de ser livre. Eu me
lembrei de um filme sobre sua vida e todo o seu engajamento com a
luta contra a opressão racial, o que implica a luta contra estigmas raciais.
Lembro que ela sucumbiu a uma doença mental por causa dos proble-
mas que todas as mulheres negras enfrentam. Como a letra da música,
eu realmente pensei que deve ser uma ótima sensação viver sem ter a
sensação de ser uma pessoa marcada pelo olhar do outro. Analisei a
interpretação contundente dela como uma mensagem direta à plateia
exclusivamente branca que a estava ouvindo, como um protesto contra
a opressão, como o racismo impede que as pessoas possam ter uma
existência plena.
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ADILSON JOSÉ MOREIRA
Mas vivências cotidianas sobre discriminação fazem pouco senti-
do para pessoas brancas que vivem no nosso País. Liberdade significa
apenas a possibilidade de agir de forma autônoma. Negros podem fazer
o que eles quiserem, podem chegar ao lugar que eles quiserem. Muitos
dizem que minha trajetória pessoal é um exemplo de superação que
pode ser reproduzido por quem quiser. Essa afirmação é geralmente
seguida por um abraço ou por um sorriso que expressa admiração. Que-
ro recordar alguns momentos da minha história pessoal. Comecei a
procurar estágios no quarto ano da Faculdade; tinha sido bolsista de uma
agência federal de fomento à pesquisa até aquele momento. Era um bom
aluno, minha pesquisa tinha ganhado o prêmio de melhor trabalho na
área de Ciências Sociais Aplicadas no ano anterior, no âmbito da uni-
versidade onde estudava. Procurar trabalho não foi nada fácil. Sempre
via colegas brancos conseguindo estágios em lugares que tinham acaba-
do de me informar que todas as vagas tinham sido preenchidas. Não
preciso dizer que estava muito frustrado com essa situação. Mais do que
isso. Estava indignado, mas minhas reclamações não encontravam res-
sonância entre meus colegas e professores brancos. Lembro-me da rea-
ção deles em uma discussão de uma obra sociológica clássica, O povo
brasileiro. O autor exalta a propensão dos brasileiros à miscigenação, o
que teria feito de nós um povo que preza a harmonia social. Eu intervi
e disse não existir no mundo pessoas mais racistas do que os brasileiros.
Todos ficaram indignados. Nem mesmo a citação de inúmeras estatís-
ticas foi suficiente para convencer os colegas brancos. Eles também se
recusaram a reconhecer que a minha experiência de racismo no merca-
do de trabalho representa uma prática social cotidiana no Brasil. Alguns
alunos que tinham estagiado nessas instituições disseram que isso era uma
simples consequência da melhor formação dos outros candidatos. Mas
quantos deles tinham notas melhores do que as minhas, quantos estuda-
vam na mesma Faculdade que a minha e quantos ganharam os mesmos
prêmios que eu? Quantos chefes realmente se preocuparam com o
aproveitamento escolar dos candidatos?
Uma das coisas que mais me deixa perplexo é a recusa de juristas
brancos em reconhecer a existência e a extensão da forma como o racismo
opera no Brasil. Eles utilizam duas estratégias para negar a relevância

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