O humanismo em crise: a proposta levinasiana da alteridade do rosto como reconstrução do humanismo

AutorRafael Soares Duarte de Moura
Páginas20-104
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Quando se pensa em crise do humanismo, faz-se imperioso tecerem-se
algumas considerações prévias, exatamente para que o sentido das
construções teóricas a serem desenvolvidas seja identificado por meio da
compreensão de alguns conceitos hermenêuticos próprios desenvolvidos
por Emmanuel Lévinas sobre o sentido formado por meio da percepção do
sujeito. Todas as ideias desenvolvidas serão permeadas pelo seu pensar
como referencial em constante diálogo com outros pensadores escolhidos
como ratificadores do ideal de Justiça fundado na Ética do Amor.
Cumpre-se ressaltar, inicialmente, que a crise da qual o filósofo lituano
fala representa a desvalorização do homem, a objetificação deste fruto de
uma cultura em que a busca pela satisfação do Eu e suas vontades se
propaga como referencial de conduta.
O fetichismo da cultura contemporânea reside na propagação a todos os seus setores desse
código estrutural. A fetichização do código manifesta-se na obsessão pelo objeto-signo como
satisfação sempre insatisfeita do desejo de diferenciar-se a qualquer preço. Nada mais foge a
essa reinscrição pelo signo: o prazer, a beleza, o amor, o verdadeiro e até mesmo o inconsciente,
enquanto objeto de posse e manipulação. (Melo, 1988, p. 149).
Deve-se situar o pensamento filosófico levinasiano no período
marcado por duas grandes guerras mundiais. Período este em que,
paradoxalmente à evolução social das técnicas e dos progressos científicos,
afloram as misérias humanas que se apresentam desde a exclusão social
pelo desemprego e marginalização até as mais primitivas decorrentes do
horrendo extermínio do homem pelo homem.
Quando do individualismo do homem emerge, sistemas totalitários de
destruição humana, vendo a ciência instrumentalizada, inclusive, para essa
finalidade, e a linguagem utilizada para legitimar ideologias e sistemas
políticos perversos, o pensamento levinasiano denuncia a cegueira que
impera. Esta, juntamente com a insensibilidade, depara-se com uma
sociedade em que a racionalidade se instrumentalizada e inflada numa
visão absolutizante, na qual o homem não se apresenta mais como fonte de
hospitalidade, mas, sim, como individualidade de interesses egoísticos.
O homem esquecera-se havia muito da sua humanidade, pois esta se
convertera em um ideal transcendental distante, não mais compreendido e
assimilado pela inteligibilidade. Não se trata, portanto, de uma crise
decorrente das constantes rupturas nas estruturas de pensamento e valores
sociais. A crise que Lévinas denuncia representa a frieza existencial à qual
o homem se acomodou, esquecendo-se da igualdade em humanidade do seu
semelhante-que-diferente. Crise essa que não se restringe apenas às
discussões teórico-acadêmicas, mas que alcançam a nadificação do próprio
homem que vê sua existência desrespeitada pelo seu semelhante.
Antes de se tratar desta crise, apresentam-se algumas linhas sobre o
sentido da linguagem, veículo de significação e compreensão, que serão de
grande valia para se compreender a hermenêutica ontológica proposta pelo
pensamento levinasiano.
Na obra Humanismo do Outro Homem, Emmanuel Lévinas (1993)
apresenta o sentido de Significação e de Receptividade que permearão todo
o seu pensamento e que serão de importância máxima para que se possa
sinalizar o viés hermenêutico a ser conferido no desenvolvimento destas
simples elucubrações.
Para Lévinas (1993, p. 23) “nenhum dado estaria imediatamente
munido de identidade, nem poderia entrar no pensamento pelo efeito de
um simples choque contra a parede de uma receptividade”. O que se propõe
com essa afirmação é, justamente, que a compreensão hermenêutica não
resulta de um imediatismo binário, ou seja, não se apresenta como uma
resultante advinda de uma simples leitura pragmática, um mero ato
mecânico desenvolvido pelo intérprete.
Tem-se que “dar-se à consciência, cintilar para ela, pediria que o dado,
previamente, se colocasse num horizonte aclarado, à semelhança da palavra
que recebe o dom de ser entendida, a partir de um contexto ao qual se
refere.” (Lévinas, 1993, p. 23). Esses dizeres são essenciais para que a
interpretação dos fenômenos da vida, sejam eles políticos, sociais,
antropológicos, econômicos, naturais, deva ter por referencial o contexto
histórico-social no qual o intérprete se encontra em constante estado de
imersão.
Todo o referencial, cabedal de conhecimento, recebido pelo
hermeneuta se apresenta como resultante das interações histórico-culturais
presentes no processo de formação do indivíduo como pessoa,[1]
notadamente no desenvolvimento dos inúmeros relacionamentos sociais no
decorrer da vivência humana. Dessa forma, “a significação seria a própria
iluminação deste horizonte. Todavia, este horizonte não resulta de uma
adição de dados ausentes, pois cada dado já teria necessidade de um
horizonte para definir-se e dar-se” (Lévinas, 1993, p. 23).
É exatamente esse horizonte prévio que se presentifica no olhar do
indivíduo que possui todo um histórico de desenvolvimento valorativo, que
o permite tecer suas considerações interpretativas a partir da resultante,
ainda que não definitiva e estática, da sua formação social.
Não se pode pensar a consciência afastada da fenomenidade mesma,
pois a abordagem fenomênica do sujeito consciente é uma das mais
expressivas pontuações desenvolvidas pela abordagem ética dentro do
humanismo levinasiano. “A consciência não poderia ser considerada como
uma realidade pura e simples. Toda a sua espiritualidade reside no sentido
que ela pensa. A consciência visa e tende para qualquer coisa” (Lévinas,
1997, p. 20).
Ao humano se configura, no processo do existir, a ação que o impele,
impulsiona-o a reconhecer-se transformando o mundo que habita e fazendo desse mundo seu mundo. Esse
(re)conhecimento transformador é sempre uma dação de sentido para o mundo que vive. [...] Qualquer
sentido é uma perspectiva, uma forma de simbolizar a realidade, por isso podemos afirmar que o
ser humano é um ser naturalmente simbólico ou simbolicamente não natural. O simbolismo conecta a
pessoa ao mundo. (Bartolomé Ruiz, 2006, p.78, grifo nosso).
Não há de se compreender a ideia de consciência focada no ser
ensimesmado, fechado em si. O ser é mais do que um projeto idealista, é
uma constante busca do outro fora de si.
Outrem é, com efeito, incomparável, não intercambiável, ele não se dá senão a partir da
singularidade irredutível e única do eu, do eu que eu sou, eu e somente eu tanto quanto este
lugar e inalienável. É exatamente esta relação, que não é una, que Levinas chama de ética.
(Bensussan, 2009, p. 24).
Esta ética do outro se configura como um caminho sem retorno (Melo,
2003, p. 44).
É exatamente no “psiquismo humano como saber – que vai até à
consciência de si – que a filosofia que nos é transmitida situa o lugar do que
é significativo e a origem da filosofia; é no saber e na consciência que ela
procura o espírito” (Lévinas, 1984, p. 13). Assim, essa busca pelo espírito
perpassa, em Lévinas, pela compreensão dialogal que avança à condição de

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