Humanidade e direito cosmopolita

AutorManoel Pedro Ribas de Lima
CargoMestrando em Direitos Fundamentais e Democracia na Faculdades do Brasil
1 Introdução

O presente trabalho analisará as possibilidades de um direito cosmopolita a partir do pensamento de Immanuel Kant e de seus interpretes (Bobbio, Kelsen, Held, Habermas, Arendt e Jaspers). Esta pesquisa torna-se relevante numa época em que as categorias dadas pela tradição não são mais capazes de responder satisfatória e pragmaticamente os problemas enfrentados tanto pelo Estado quanto pelo Direito.

A época em que Kant pensava as questões que serão analisadas foi a mesma das Revoluções burguesas, época em que a Reforma se consolidava, e a filosofia superava uma tradição, e iniciava outra – a Modernidade. Por estar nesta época, foi dada a Kant a oportunidade de afirmar a maturidade do homem, libertando-se de toda uma metafísica teológica. O ônus que restou à humanidade, desprovida de um Pai (Deus), foi a de proteger a si mesma. Daí surge as primeiras declarações de direitos do homem.

Hoje, como professara Kant, a violação de um direito num lugar da Terra reflete sobre toda a humanidade, não sendo uma fantasia extravagante alimentar esperanças em um direito cosmopolita, que venha a garantir a efetividade dos direitos humanos e uma paz duradoura2. Todavia, esta terceira dimensão do direito público foi imaginada por Kant já no final de sua vida, o que leva à suspeitas. Com as ponderações contidas nas suas análises sobre a sociedade e suas instituições criaram uma contradição eminente nos fundamentos de sua filosofia. O homem, em sua curta estada sobre a Terra, não poderia ser levado em conta quando toda a humanidade, constituída pela seqüência de gerações, está em jogo.

Este trabalho então se subdivide em cinco momentos. No primeiro será analisada a importância do conceito de humanidade para o pensamento político e jurídico de Kant. O segundo momento, sendo um parênteses, traz à luz os principais pressupostos e categorias dadas por Kant para a construção de sua teoria. No terceiro, enfrentaremos as primeiras interpretações do direito cosmopolita kantiano. Advertese que estes pensamentos falseiam o que foi dito por Kant. No quarto momento serão vistos releituras, que são sem dúvidas mais apropriadas, do direito cosmopolita. O que se percebe é que a idéia de direito cosmopolita só pode ser admitida dentro do pensamento de Kant. Toda adaptação gera problemas conceituais ou conflitos fáticos. Desta forma, finaliza-se o trabalho como uma reflexão sobre a contradição entre homem e humanidade dentro do Direito.

2 O conceito de humanidade em kant

Na coexistência entre os homens Kant identificava o que pareceria um paradoxo, a sociabilidade insociável. Cada um dos indivíduos possui a necessidade de viver em sociedade para assim ser entendido como homem. De outro lado, nas relações humanas Kant identificava um antagonismo, antagonismo correspondente ao choque entre os homens explicável pelo egoísmo e pela resistência ao posicionamento dos outros. Destes conflitos resulta o que Kant chamou, na quarta proposição de “Idéia de uma história universal segundo um propósito cosmopolita”, de cultura, que seria o valor social do homem. Os conflitos impulsionam os homens para novas formas de pensamento, retirando dos homens suas disposições naturais, alcançando um todo moral. “O homem quer concórdia; mas a natureza sabe melhor o que é bom para a sua espécie, e quer discórdia3. A moral, enquanto princípio residente em todo homem, realiza-se pragmaticamente na realização do Direito, aberto ao incessante desenvolvimento da cultura e ao reconhecimento da culpa pelas transgressões cometidas na história. A moral alimenta em Kant a idéia de progresso para o melhor (eudemonismo)4.

As ações dos homens são reguladas por leis gerais da natureza narradas, quando vistas em seu conjunto, pela História. História representa “o jogo da liberdade da vontade humana”, que em primeiro parece ser contingente e sem lógica, no entanto se revela coerente, “como um desenvolvimento contínuo”, de uma disposição metafísica. A este propósito racional, desvelada espacial e temporalmente em escala global, Kant deu o nome de intenção da natureza. Esta intenção existe a priori e é alcançada pela razão; em outras palavras ela não é um dado empírico na realidade (não é explicativa), mas vem justificar os acontecimentos da história humana. “A razão numa criatura é uma faculdade deampliar as regras e intenções do uso de todas as suas forças muito além doinstinto natural5.

Esta pressuposição de uma inteligência aparece, para Kant, no encontro de uma finalidade nos conceitos das coisas, coisas que existem independentemente de um sujeito. O encontro das finalidades, resposta encontrada na pergunta “para que” (quem in finem), ao filósofo, enquanto espectador dos acontecimentos mundanos, aparece como demonstração da validade de um Ser que assiste tudo de fora e é inteligente6. Assim foi com a Revolução Francesa. Ainda que este espetáculo fosse horrendo dado, como pensa Kant, a inversão da ordem pela revolta do povo, quando colocada na História, a revolução justifica-se no alcance da maioridade pelo homem e na possibilidade da realização de ideais antes tidos como meramente especulativos (liberté, fraternité e egualité). A suposição de uma inteligência a priori, que com uma intenção conduz os eventos, faz com que o homem coloque a si próprio em questão, perguntando o “porquê” de sua existência. Contudo, é contraditório ao homem, apesar de ser racional porém limitado pela sua finitude, encontrar uma inteligência universalmente validade alheia à própria humanidade7.

Arendt relata que Kant via a humanidade como o fim da história. Kant, e não Hegel, foi o primeiro a vislumbrar uma força misteriosa da “melancólica causalidade” para encontrar um sentido para as ações humanas. “A humanidade, para Kant, era aquele estado ideal num ‘futuro muito distante’, onde a dignidade do homem coincidiria com a condição humana na Terra”. Arendt ainda fala que foi frustrante para a filosofia kantiana, pautada na dignidade e na autonomia do homem, o encontro de Kant, já em sua velhice, com a humanidade enquanto entidade metafísica8.

Continuando no pensamento político de Kant, vemos que, neste jogo de palavras, a proteção do homem só pode acontecer na e pela própria humanidade. A idéia de humanidade serve a Kant como fio condutor para a construção de um sistema das ações humanas9, apresentando um sentido, não necessariamente no fim, como pensava Hegel, mas na abertura de novas possibilidades para o futuro10. A história seria “uma aventura desconhecida” que precisava ser determinada11. No progresso, em seus aspectos práticos, vê na realização da constituição civil, internamente, e na integração entre os Estados, em resumo, no Direito o instrumento de proteção do homem.

...podemos responder brevemente que o fim para o qual tende a história humana é a constituição de uma sociedade jurídica que possa abranger a humanidade, numa só palavra é a paz com liberdade, ou seja, a liberdade na paz. [...] somente uma constituição jurídica [e aqui está a chave], entendendo por direito o conjunto das condições para a coexistência das liberdades externas, pode permitir o desenvolvimento livre dos antagonismos sem que esses se rebaixem numa luta destruidora e anulante. E, portanto, uma constituição jurídica que possa abrangernão somente os indivíduos nos Estados, mas também os Estados entre si, pode assegurar o desenvolvimento pacífico de todos os antagonismos, e, portanto, colocar as condições para que a humanidade possa progredir sem voltar mais ao estado de barbárie primitiva. Motivo pelo qual é possível ver a importância do direito no sistema geral do pensamento de Kant..12.

Há uma identidade entre moral e humanidade, e também, como veremos entre moral e Direito. Logo, a ofensa ao que é certo, como se vê no exemplo da mentira, é uma ofensa à humanidade, dado que sendo uma injustiça ao Direito, significa que “ela prejudica sempre outrem, mesmo se não é um homem determinado, mas sim a humanidade em geral, ao inutilizar a fonte do direito13. É preciso dizer também que liberdade, conforme o pensamento liberal presente nos trabalhos políticos de Kant, significa a não intervenção, que de outro lado, representa uma liberdade interna, baseada no livre arbítrio da vontade. Ela afasta uma pretensão política, no sentido originário em que estariam a interação entre pessoas através das palavras e ações, para defender um compromisso de limitação de soberanias.

A humanidade, como um todo, precisa, então, sair do estado de natureza (status naturalis) através do Direito cosmopolita, que há de se realizar, segundo Kant, por uma federação de nações (Foedus Amphictyonum), obtendo aí um Direito derivado de uma vontade geral universal. Esse Direito tem de ser permanente, significando o fim das hostilidades, logo, a paz14, a ser fundada na liberdade dos membros (os Estados) desta sociedade – enquanto cidadãos –, não na dependência de todos os membros à legislação comum – enquanto súditos –, e no respeito mútuo (direito de hospitalidade), que possibilitem a coexistência de todos no mundo, um mundo que é finito15. O fim do Direito – da obrigação moral, cujo princípio a priori é dado pela razão pura – é conservar-se supremo para fomentar a paz16. Paz é muito mais do que o fato da inexistência de violência, ela é um valor, expressando o bem do mundo.

Há inúmeros problemas decorrentes da idéia de humanidade. Devido a finitude do espírito humano, por exemplo, como poderia ele ser capaz de encontrar tal entidade? A humanidade, enquanto reinos dos fins e detentora de uma dignidade própria17, pode conviver com a dignidade e a autonomia do homem? Como pode o Direito cosmopolita não formar uma república mundial?

3 Pressupostos para a idéia de...

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