A raiva humana e a proteção jurídica dos animais

AutorHaydée Fernanda
CargoConcluinte do Curso de Direito ? UFPA (Universidade Federal do Pará)
Páginas139-170

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1. Introdução

Desde o ano de 2004 a imprensa paraense tem noticiado ocorrências de morte por contaminação do vírus rábico dentre populações de três municípios do estado. Primeiro foram verificados casos no Município de Portel, no arquipélago do Marajó, e mais recentemente nos municípios de Viseu e Augusto Corrêa, no Nordeste do Estado, em áreas de Reserva Extrativista Marinha, e próximas ao estado do maranhão, por onde a doença também vem se espalhando.

Este trabalho parte de um estudo de caso sem se limitar a ele. Analisamos as situações nos três Municípios paraenses, sendo que a epidemia em Portel aconteceu no primeiro semestre de 2004 e foi superada ainda naquele ano, e a epidemia em Viseu e Augusto Corrêa - que são municípios vizinhos, aconteceu este ano e está sendo superada, conforme narraremos.

Por ser um estudo de caso, necessitamos fazer um trabalho investigativo. Por falta de recursos não podemos ir até o lugar da epidemia atual, no entanto, nos baseamos em relatórios técnicos fornecidos pelo Instituto Brasileiro de Meio Ambiente GEREX I/Belém, que é responsável pelas três áreas onde houve mortes, e ainda, da Secretaria de Saúde do Estado do Pará - SESPA, que têm sido responsável pelas ações de vacinação e controle de quirópteros; e também por entrevistas fornecidas pelo Presidente do Sindicato da Reserva marinha de Viseu, que é um pescador, homem do povo, e pelo Coordenador Estadual do GT Raiva, da SESPA (faremos agradecimentos a estas e outras pessoas ao final do trabalho).

Não há ainda resultados conclusivos quanto às causas, no entanto muitos indícios e uma epidemia de uma zoonose letal que é fato, situação que envolve tanto direitos de homens quanto de animais, cujos limites são muito tênues e muito delicada a aplicação ética, pois direitos à vida e à alimentação a natureza deu a todos, deixando, porém, que cada um lutasse pelo seu, não permitindo o abuso, comumente praticado pelo homem contra os demais seres.

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2. A realidade local e os laudos

A população narra, em todas as áreas, que os ataques de quirópteros ocorrem há muito tempo, mas somente agora é que começaram a resultar em mortes, o que passou a preocupar órgãos de proteção ambiental e de saúde.

Tanto o IBAMA quanto a Secretaria de Saúde do Estado enviaram técnicos para as áreas no intuito de serem realizadas ações e estudos das causas, sendo que Viseu e Augusto Corrêa contam com atuação mais intensa do IBAMA, por ser área de reserva1, e que, por isto, além dos trabalhos de fiscalização rotineiros, têm realizado intensivo trabalho de educação ambiental com a população.

Na região de Portel, no Marajó, não temse tido notícias recentes de mortes decorrentes de ataques por quirópteros, enquanto que as áreas de reserva registraram casos sintomáticos da doença em pessoas atacadas por tais animais ainda no início do mês de outubro/2005, quando a secretaria de saúde do estado do Pará - SESPA - deslocou uma equipe técnicos para a área para a realização de coleta de material, vacinação intensiva de pessoas e animais e controle da população de morcegos hematófagos.

A população nestas regiões vive em condições precárias, em residências de barro cobertas com palha, não raramente sem portas e janelas e sanitários expostos, sendo que também é comum serem encontradas residências sem parede, deixando as pessoas totalmente à mercê de qualquer animal ou intempérie, visto ainda que as áreas habitadas são próximas a florestas e mangues, muito comuns na região, até porque estas famílias sobrevivem do extrativismo, além de praticarem agricultura de subsistência, em alguns casos. As famílias,

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Pode parecer inacreditável, mas estas fotos são de residências de famílias na região de Viseu, sendo que a realidade se repete em todos os municípios onde houve ataques por morcegos contra humanos. Note na foto ao lado, uma pia e um fogão na mesma área em que as redes são atadas à noite. Na foto acima, a casa está junto a área de mata.

Fotos: Begot, 2005.

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normalmente são compostas por, no mínimo, dez membros, dos quais a maioria ainda se encontra na infância, na maioria dos casos.

Nas áreas de Viseu e Augusto Corrêa, as comunidades onde ocorreram os ataques encontram-se próximas ao mangue, onde os técnicos da SESPA que têm feito a investigação dos casos acreditam que encontram-se as colônias de quirópteros hematófagos que estão atacando as pessoas, pois através de estudos traçaram um mapa das mortes e nota-se que ocorreram em direção que sai do mangue e avança em para as áreas de aglomeração humana.

A maioria das vítimas são crianças, tanto no Marajó quanto nas RESEX, por ser alta a quantidade de crianças na região em função da composição comum das famílias, e por ser a criança uma vítima passiva e dócil, pois, em fase de crescimento, dorme profundamente depois de intensa atividade durante o dia.

Nas áreas das RESEX, a vulnerabilidade da população adulta também é maior, pois, em função da atividade econômica, durante vários meses do ano, quando a produção do mar e do mangue são boas, as pessoas que trabalham nesta atividade, de qualquer sexo ou idade, passam a dormir nos chamados ranchos, que são verdadeiras cabanas de palha construídas sobre a água, usadas apenas para dormir durante este período, mas que, são totalmente abertas, possuindo apenas o telhado, que também é uma parede lateral, mas sem nenhuma proteção na frente, lembrando uma barraca de campping.

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Rancho Pesqueiro. Nestes lugares, as pessoas que trabalham no extrativismo de recursos pesqueiros dormem por toda a temporada de produção, que dura vários meses. Como se vê, não há nenhuma proteção, salvo contra o sol e a chuva, e relativamente.

Foto: Vergara Filho, 2005.

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Na área de Portel, em relatório apresentado pelo IBAMA em 2004 na época do surto, foram registrados grandes desmatamentos na região, que tinha poucas áreas verdes nativas, onde a população, que sobrevive do extrativismo desordenado, constrói suas casas, que são semelhantes às de Viseu mostradas nas fotos, sendo que na área de Portel estão presentes muitas madeireiras em franca atuação, muitas ilegais, que, na ocasião, foram multadas.

Dado intenso desmatamento na região, o relatório do IBAMA relaciona com o desequilíbrio ecológico decorrente de desmatamento, que tornou rarefeitas as fontes de alimento do morcego hematófago na mata, passando a procurar os humanos, também porque, decorrente da pobreza, a numerosa população do lugar pratica largamente a caça de subsistência, sendo mais um fator de quebra da cadeia alimentar do morcego, pois que, sendo poucas as áreas de mata, tanto pelo desmatamento quanto pela própria natureza do lugar, que é predominantemente composta por campos naturais, não há grandes ofertas de alimento para o morcego vampiro.

Já na região de Viseu e Augusto Corrêa, onde a SESPA está realizando os estudos que prosseguem, os técnicos não vêem relação com desequilíbrio ecológico, pois os mapas do desmatamento na área não apontam avanço significativo do desmatamento entre os anos de 2000 e 2004. Para os técnicos da SESPA, o que está ocorrendo é uma adaptação do morcego a um tipo de alimento mais fácil, pois em maior quantidade, mais vulnerável e mais passivo.

3. O morcego vampiro

O morcego conhecido como morcego vampiro é o morcego hematófago desmodus rotundus, que ocorre somente na América Latina. Existem mais duas espécies de morcegos hematófagos (Diaemus Youngi e Diphilla Ecaudata), no entanto, não são muito conhecidos pela ciência por não oferecerem riscos ao homem, tendo como suas presas aves, principalmente, mas nunca o homem.

Apenas o desmodus rotundos tem o homem dentre suas presas, e, ao contrário do que contam as lendas, não prefere o pescoço, mas ataca comumente pés, orelhas, testa, nariz e lábios, que são áreas de fácil acesso, sensíveis e vascularizadas.

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O Desmodus Rotundus..

Fonte: Palestra ministrada pelos técnicos da SESPA.

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Suas presas favoritas são mamíferos, sendo comuns ataques a animais domésticos de pequeno e grande porte, como bovinos, muares, cães, gatos e outros, mas também aceita o sangue de aves, sendo que nunca ataca presas em movimento, seus ataques são feitos na surdina.

Por esta razão, o morcego hematófago desmodus rotundus tem apenas 20 dentes, sendo que os molares são reduzidos, e desenvolvidos apenas os incisivos superiores internos, que são os usados no ataque, provocando apenas um ferimento superficial, de modo que a presa aparentemente não sinta dor2e ele possa se alimentar com tranqüilidade. O ferimento deixado pela mordida do morcego é pequeno e tem um formato elíptico.

O mais interessante, é que a saliva do morcego contém substâncias anticoagulantes que possibilitam uma saída de sangue em maior quantidade.

Sua envergadura é de apenas 35cm, com comprimento corporal variando entre 7cm e 9cm, e peso entre 25 e 40g.

Apesar do tamanho, o morcego vampiro é um animal guloso, podendo atacar várias vezes numa mesma noite ou em noites variadas uma mesma presa, só a abandonando quando se sente satisfeito, podendo chegar a ingerir uma quantidade de sangue maior ou igual ao seu peso corporal, o que em medidas líquidas, varia entre 15 e 20ml, em condições normais, mas em cativeiro chegou a 50ml.

Nas comunidades, que são formadas em modelo de harém (um macho para várias fêmeas), variando entre 10 e 50 indivíduos, sendo raros agrupamentos com 100 indivíduos, as fêmeas comportam-se em regime de solidariedade: se dentre elas algumas não conseguiram se alimentar na...

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