Dignidade Humana e Interdisciplinaridade do Direito ao Desenvolvimento Sustentável

AutorSaulo de Oliveira Pinto Coelho
Páginas22-28

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Ouso relativamente generalizado da expressão "sustentável" revela, no mínimo, uma espécie de tomada de consciência a respeito da problemática ambiental com que o mundo se depara na atualidade. Sabe-se, contudo, que ela tem sido utilizada por diversos locutores para caracterizar práticas também diversas. Ademais, é corriqueiro o uso de tal adjetivo como recurso publicitário que visa denotar uma "responsabilidade social", quando se sabe que, muitas vezes, condutas "esverdeadas" são propagadas na tentativa de se encobrir práticas escancaradamente insustentáveis.

O presente trabalho pretende demonstrar que a sustentabilidade, noção engendrada no âmbito das ciências sociais e naturais, não representa uma construção unidimensional. Tendo seu nascedouro em discussões onde se digladia-vam ambientalistas e desenvolvi-mentistas, ela promoveu a superação da ideia da economia como um fim em si mesmo, substituindo-a pelo reconhecimento de ser o ser humano um fim em si mesmo, e, portanto, ser por ele (e para ele) que existe o desenvolvimento.

Tal reconhecimento possui implicações para além da bipolaridade ambiente-economia, envolvendo questões sociais, culturais, políticas e territoriais.

Feito isso, passa-se a detectar os ecos que referida construção encontra na Constituição da República Federativa do Brasil, com o princípio da dignidade da pessoa humana desempenhando um papel protagonista nessa tarefa ante a sua estreita ligação com a ética proposta pela sustentabilidade. De tal ligação se propõe seja a sustentabilidade um princípio jurídico revelador de um direito fundamental.

Alerta-se, por fim, sobre a necessidade da manutenção da unidade de sentido intrínseca do paradigma da sustentabilidade quando de sua irradiação para o ordenamento jurídico, sendo imperativo, para tanto, a superação de uma visão segmentada dos ramos do direito com a construção de uma orientação que preze por sua inter-disciplinaridade.

O reconhecimento da sustentabilidade como um direito tem o condão de promover a superação da sua utilização como uma mera prática discursiva, já que se estará num campo onde ser sustentável não será mais uma prática facultativa, mas obrigatória, e cujo conteúdo não mais será dado por um determinado ator social que esteja na defesa de seus interesses pessoais, mas pelo Estado, através de sua Lei Fundamental, com vistas à realização de seu valor maior: a dignidade da pessoa humana.

2. Sustentabilidade: genealogia e dimensões

As elevadas taxas de crescimento econômico experimentadas após a segunda guerra mundial vieram a desmentir a ideia de que com o crescimento rápido das forças de produção seria provocado

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um processo completo de desenvolvimento que se estenderia mais ou menos a todos os domínios da atividade humana1. O que se viu na prática foi o esgotamento de um estilo de desenvolvimento ecologicamente depredador, socialmente perverso e politicamente injusto, pois, como se sabe, não é a riqueza (crescimento econômico) em si o fator decisivo ao bem-estar coleti-vo, mas sim o uso que uma coleti-vidade faz dela2.

Pretende-se superar esse estado de crise através de um novo estilo de desenvolvimento, no qual a economia deixe de ser um fim em si mesmo e uma ciência em que tudo aquilo para o qual não se pode estabelecer um preço carece de valor, e o ser humano passe a ser o centro do processo de desenvolvimento3. Afirma Roberto Pereira Guimarães que o novo estilo de desenvolvimento requer uma nova ética4.

Essa nova realidade sócio-po-lítica que se anunciou necessita de um novo modelo de estruturação da relação entre indivíduos, sociedade, economia e poder político. O Estado Democrático de Direito aparecerá como resposta superadora dos modelos reducio-nistas e unilaterais dos modelos liberal e social anteriores5. E a dualidade entre ambientalismo e desenvolvimentismo econômico, estruturada no contexto do Estado Social, também deve ser superada no âmbito do Estado Democrático contemporâneo. Um dos aspectos de estruturação do Estado Democrático de Direito consiste, por isso, na elaboração constitucional de um modelo de efetivação jurídica do desenvolvimento sócio-ambientalmente sustentável, que, nascido do discurso econômico, gerencial, administrativo e ecológico, deve assumir o status de linguagem normativa constitucional6.

A reunião de Founex é o marco inicial desta virada conceitual e do surgimento de um novo paradigma. Convocada como parte do processo preparatório para a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente de 1972 e proje-tada para explorar a relação entre meio ambiente e desenvolvimento, seu Relatório Founex (1972) transmitiu uma mensagem de esperança sobre a necessidade e a possibilidade de se implementar estratégias ambientalmente adequadas para promover um desenvolvimento sócio-econômico equitativo - estilo de desenvolvimento batizado pelos pesquisadores an-glo-saxões como desenvolvimento sustentável7

Seu conceito, já clássico, foi dado pela Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento em informe publicado em 1987. Neste documento, também conhecido como Relatório Brundtland, assentou-se o primeiro aspecto genealógico deste conceito: desenvolvimento sustentável é aquele que atende às necessidades do presente sem comprometer a possibilidade de as gerações futuras atenderem as suas próprias necessidades8. Apesar do seu alto grau de generalização, de tal conceito se infere que a satisfação das necessidades e das aspirações humanas é o principal objetivo do desenvolvimento9

Ademais, o Relatório Brundtland10 sublinhou que as possibilidades de materialização de um estilo de desenvolvimento sustentável se encontram diretamente relacionadas com a superação da pobreza, com a satisfação das ne-cessidades básicas de alimentação, saúde e habitação, com uma nova matriz energética que privilegie fontes renováveis de energia e com um processo de inovação tecnológica cujos benefícios sejam democraticamente compartilhados por países ricos e pobres11, bem como entre as pessoas ricas e pobres no âmbito interno dessas sociedades.

Nota-se que, mesmo tendo sua origem vinculada ao manejo durável dos ecossistemas, a ideia de sustentabilidade é suficientemente rica para poder ser integrada numa visão multidimensio-nal de desenvolvimento12. Redução da desigualdade e fomento do diálogo (desenvolvimento democrático), garantia de patamares mínimos e progressivos de qualidade de vida (desenvolvimento social), e racionalização das relações do homem com os recursos naturais e ecossistemas (desenvolvimento ambiental) somam-se à sustentabilidade intergeracional e formam, assim, o tripé conceitual complementar do desenvolvimento sustentável como complexo conceitual.

Afirmar que os seres humanos constituem o centro e a razão de ser do processo de desenvolvimento significa advogar um novo estilo de desenvolvimento, que seja ambientalmente sustentável no acesso e no uso dos recursos naturais e na preservação da biodiversidade; socialmente sustentável na redução da pobreza e das desigualdades sociais e promotor da justiça e da equidade; culturalmente sustentável na conservação do sistema de valores, práticas e símbolos de identidade que, apesar de sua evo-

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lução e reatualização permanentes, determinam a integração nacional através dos tempos; politicamente sustentável ao aprofundar a democracia e garantir o acesso e a participação de todos nas decisões de ordem pública. Este novo estilo de desenvolvimento tem por norte uma nova ética do desenvolvimento, ética na qual os objetivos econômicos do progresso estão subordinados às leis de funcionamento dos sistemas naturais e aos critérios de respeito à dignidade humana e de melhoria da qualidade de vida das pessoas13.

Resta saber se tais conceitos, critérios e dimensões podem ser considerados como normas jurídicas contempladas no ordenamento jurídico brasileiro, pois, nascida no plano do discurso14, a sustentabi-lidade precisa se fazer como efeti-vidade posta e garantida juridicamente, o que implica sair do plano de seu conhecimento para o plano de seu reconhecimento no campo jurídico-político e na prática social efetiva15.

3. O princípio da dignidade da pessoa humana na ordem constitucional brasileira

Ante a notável interligação existente entre a ética que sub-jaz à ideia da sustentabilidade e o princípio da dignidade da pessoa humana, faz-se necessário expor, neste passo, alguns aspectos deste princípio que é considerado a matriz axiológica do ordenamento jurídico brasileiro.

A matriz filosófica moderna da concepção de dignidade humana tem sido reconduzida essencialmente e na maior parte das vezes ao pensamento do filósofo alemão Immanuel Kant. Especialmente no campo do direito, até hoje, a fórmula elaborada por Kant informa a grande maioria das conceitu-ações jurídico-constitucionais da dignidade da pessoa humana. A formulação kantiana coloca a ideia de que o ser humano não pode ser empregado como simples meio (ou seja, objeto) para a satisfação de qualquer vontade alheia, mas sempre deve ser tomado como fim em si mesmo (ou seja, sujeito) em qualquer relação, seja em face do Estado seja em face de particulares. Isso se deve, em grande medida, ao reconhecimento de um valor intrínseco a cada existência humana, já que a fórmula de se tomar sempre o ser humano como um fim em si mesmo está diretamente vinculada às ideias de autonomia, de liberdade, de racionalidade e de autodeterminação inerentes à condição humana. A proteção ética e jurídica do ser...

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