Human rights in Brazil: contributions to understanding the persistent ambiguities and pitfalls/Direitos humanos no Brasil: aportes para compreensao das ambiguidades e armadilhas persistentes.

AutorFreire, Silene de Moraes
CargoLutas, Cidadania e Direitos Humanos

Introducao

No Brasil, os tempos atuais tem demonstrado que a defesa e o exercicio dos direitos humanos ganharam o proscenio da agenda contemporanea. Parece nao haver duvidas de que o debate, a defesa e a ativa intervencao no campo dos direitos humanos assinalam avancos civilizatorios extremamente importantes, mesmo sendo muito desiguais, que precisam de lutas diarias para se manter e serem conquistados. Hoje ativado especialmente na luta pela garantia dos diretos de grupos sociais especificos, o tema dos direitos humanos ainda e pouco aprofundado em termos de significados historicos e possibilidades reais.

Conforme ja mencionamos em estudos anteriores, esse tema constitui hoje relevante e disseminada materia de pesquisa. Inumeros estudiosos das mais variadas correntes de pensamento e filiacoes politicas tem se debrucado sobre o assunto. No Brasil, por exemplo, a agenda das lutas e defesas dos direitos humanos ja conta com um sequito de intelectuais, de diferentes areas e com distintas tematicas, que abrange desde a luta contra a permanencia do trabalho escravo no seculo XXI, ate a defesa das causas indigenas, homossexuais, das mulheres, dos negros, das questoes urbanas e rurais etc. Tal movimento tem dificultado ao leitor leigo distinguir, no debate acerca dos direitos humanos, argumentos analiticos de abordagens distintas e ate antagonicas, bem como as possibilidades reais que eles engendram em nosso pais.

Apesar de a Declaracao Universal dos Direitos Humanos, o mais importante marco "universalizador" que coroou a militancia dos direitos humanos no pos-Segunda Guerra Mundial, ja ter passado dos 60 anos de existencia, a disputa politica do tema parece longe de ser encerrada. Jose Damiao Trindade (2006), ao resgatar a Historia social dos direitos humanos, indagou o motivo da expressao direitos humanos ter se tornado tao maleavel, complacente e moldavel pelos mais inesperados personagens. Para o autor, essa indagacao deve ser constante na atualidade.

Segundo Trindade (2006), o uso diferente por "canalhas" e "anjos" estaria exatamente indicando a complexidade deste tema. Para ele, o fato de que diferentes figuras politicas se apropriaram da linguagem dos direitos humanos para respaldar esquemas de ordem social, ate mesmo com um carater ditatorial, colabora para aumentar a complexidade que envolve o debate. Um exemplo veridico foi a trajetoria do nazismo na sociedade germanica, tendo como icone Hitler.

Slavoj Zizek (2010, p. 11), ao escrever o artigo intitulado Contra os Direitos Humanos, tambem resgatou a necessidade de se pensar rigorosamente o tema, que, para ele, deve ser visto sob forte suspeita na atualidade.

Alibi para intervencoes militares, sacralizacao para a tirania do mercado, base ideologica para o fundamentalismo do politicamente correto: pode a 'ficcao simbolica' dos direitos universais ser recuperada com vistas a uma politizacao progressiva das relacoes socioeconomicas vigentes? (grifos nossos). Cabe ressaltar que a critica a concepcao abstrata de igualdade e aos direitos humanos ja havia sido formulada por Marx (1975) na Questao Judaica. Marx (1975, p. 62) nos advertiu com muito rigor, ao analisar os direitos do homem na Franca e nos Estados Unidos, para o fato de que a distincao entre os direitos do homem e os direitos do cidadao, em realidade, revelava a separacao existente entre o homem real e o cidadao abstrato. Ou seja,

O homem como membro da sociedade civil e identificado como o homem autentico, o homem como distinto do cidadao, porque e o homem na sua existencia sensivel, individual e imediata, ao passo que o homem politico e unicamente o homem abstrato, artificial, o homem como pessoa alegorica, moral. Para Marx (1993, p. 58),

nenhum dos supostos direitos do homem vai alem do homem egoista, do homem enquanto membro da sociedade civil; quer dizer, enquanto individuo separado da comunidade, confinado em si proprio, ao seu interesse privado e ao seu capricho pessoal. O direito burgues se refere a um homem que nao pode ser concebido enquanto ser generico. Nao se trata de mera imperfeicao de uma elaboracao juridica precaria, mas acontece porque a propria sociedade, expressao da vida generica, aparece como algo externo ao individuo, como limitacao de sua independencia e liberdades originais. "E a preservacao da propriedade e das suas pessoas egoistas" que vai manter unida a diversidade de interesses particulares (MARX, 1993, p. 58).

Marx (1991) foi um ferrenho critico dos limites dos direitos humanos na sociedade burguesa. A questao dos direitos no capitalismo sempre preocupou o autor. Em seus escritos iniciais, Marx (1991) tem como tematica a questao do direito, da filosofia e da historia. Como registrou Weffort (1996, p. 229), e precisamente esse conjunto de reflexoes, datadas entre 1841-1843, que fornece "o roteiro que vai do direito e da filosofia a economia". O mesmo, diz ele, pode ser entendido "tambem como uma chave do metodo de Marx e como um criterio para localizarmos o sentido que ele atribui a politica."

Os direitos humanos de "liberdade", "fraternidade" e "igualdade" sao, para Marx, como observa Meszaros (1993, p. 207), problematicos nao por si proprios, mas em funcao do contexto em que se originam, "enquanto postulados ideais abstratos e irrealizaveis, contrapostos a realidade desconcertante da sociedade de individuos egoistas." Melhor dizendo, para Marx, como lembra Meszaros (1993, p. 207), e extremamente complicado acreditar que "uma sociedade regida pelas formas desumanas da competicao antagonica e do ganho implacavel, aliados a concentracao de riquezas e poder em um numero cada vez menor de maos", possa defender os direitos humanos. Nao por acaso, Marx (1975, p. 29--grifos no original) menciona que

os chamados direitos humanos em sua forma autentica, sob a forma que lhes deram seus descobridores norte-americanos e franceses, [nada mais sao que] direitos politicos, direitos que so podem ser exercidos em comunidade com outros homens. Seu conteudo e a participacao na comunidade e, concretamente, na comunidade politica, no Estado. Estes direitos se inserem na categoria de liberdade politica, na categoria de direito civis, [...]. Marx rejeita enfaticamente a concepcao liberal de que "o direito a propriedade privada (posse exclusiva) constitui a base de todos os direitos humanos." (MESZAROS, 1993, p. 208). A emancipacao politica, para Marx (1991, p. 121), representa uma "revolucao parcial", uma "revolucao que deixa de pe os pilares do edificio." Isso significa que a sociedade em geral (tanto a classe burguesa, quanto a classe trabalhadora), na busca pela legitimacao e regulamentacao dos direitos, acaba brindando com entusiasmo as conquistas politicas, que se confundem como interesses de todos. Assim sendo, na ordem capitalista, "somente em nome dos direitos gerais da sociedade pode uma classe especial reivindicar para si a dominacao geral." (MARX,1991, p. 122).

Entendemos que nao se trata simplesmente de negar ou aceitar acriticamente a questao dos direitos humanos como uma possibilidade de conquistas historicas das classes subalternas, mas de problematiza-la para entender o seu significado real em cada contexto historico. Nesta direcao, concordamos com Netto (2009, p. 9) quando observa que "a defesa dos direitos humanos se fragiliza se nao tiver claro que, no mundo contemporaneo, e na America Latina contemporanea, os direitos humanos, ainda que na sua especificidade e irredutibilidade, inscrevem-se no campo dos direitos sociais."

Desse modo, objetivamos suscitar algumas questoes que "particularizam" o debate dos direitos humanos no Brasil, com objetivo de ampliarmos o campo de reflexao sobre as verdadeiras possibilidades engendradas pelo tema.

Subsidios para o entendimento dos direitos humanos no Brasil

A agenda de defesa e garantia dos direitos humanos na America Latina foi tardiamente ativada, podendo ser percebida mais especialmente na luta contra as ditaduras que infernizaram a vida latino-americana. Vale lembrar que o tema da violacao dos direitos humanos foi um dos pontos mais importantes da pauta politica no periodo de transicao para democracia em diferentes paises da regiao, embora nao seja, assim como o tratamento dos conflitos posteriores a liberalizacao e democratizacao dos regimes autoritarios, tema especifico da America Latina. A mesma situacao se apresentou em paises como Espanha, Portugal e Grecia, quando do final de periodos de autoritarismo que, no caso portugues e espanhol, duraram mais de tres decadas. Entretanto, esta importancia foi diferenciada de pais para pais. O Brasil tambem fez parte desta luta tardia.

Assim, a defesa dos diretos humanos, em nossa latitude, remete diretamente ao terrorismo de Estado do final do seculo XX, relacionado a questao da Ditadura Militar que dizimou e encarcerou centenas de vidas (dos sujeitos de distintos projetos societarios que lutavam por um pais demo cratico) nos duros e longos 21 anos em que vigorou. No entanto, a questao das violacoes e a descoberta de uma nova postura na valorizacao dos direitos humanos nao encontrou a mesma forca como em outros paises. Tambem evidenciam essa questao diversos paises do leste europeu, anteriormente sob a esfera de influencia da Uniao Sovietica, nos quais novos governos colocam em discussao os atos dos governantes dos regimes preexistentes, inclusive levando a julgamento antigas autoridades. Sobre isso, tratam autores como O'Donnell, Schimitter e Whitehead (1988).

A caracteristica principal do retorno a democracia em nosso pais foi a transicao "pelo alto". Em se tratando de um pais cujos momentos decisivos da sua historia foram sempre manobras "pelo alto", o conceito de "revolucao passiva" (ou revolucao "pelo alto") e extremamente significativo para a compreensao desse processo. (FREIRE, 2011).

Ou seja, o fim do regime autoritario foi viabilizado atraves de uma "transicao negociada para a democracia" (FREIRE, 2011, p.32). Desde metade dos anos 1970, era preparado o processo...

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