Human rights and the justice system in land conflicts in western Amazonia/Direitos humanos e o sistema de justica nos conflitos de terra na Amazonia ocidental.

AutorJacaranda, Rodolfo

Introducao: terra de muitos "ninguens"

Fronteiras de desenvolvimento sao muito atraentes quando ricas em recursos naturais e oferecem poucos riscos (ALSTON; HARRIS; MUELLER, 2012). Parte essencial da estadistica, a avaliacao geografica e demografica do territorio implica se apropriar da riqueza necessaria para impor o poder perante pares internacionais e, evidentemente, sedimentar o controle interno.

Seguindo esse raciocinio, a Amazonia brasileira possui um papel particular no imaginario brasileiro. Desde as primeiras expedicoes portuguesas adentro do territorio do Guapore e do Madeira, para a protecao das minas do Mato Grosso, ainda na primeira metade do seculo XVIII, ate os grandes ciclos economicos da borracha, que duraram ate o fim da segunda guerra mundial, a Amazonia sempre foi tratada pelo poder soberano como fonte inesgotavel de recursos a espera do melhor aproveitamento, em nome do interesse "nacional" (TEIXEIRA, FONSECA, 1998). As grandes usinas hidreletricas do Rio Madeira, construidas a forceps sob forte propaganda politica do Programa de Aceleracao do Crescimento, entre 2007 e 2014, foram apenas mais dois passos desse grande movimento de colonizacao exploratoria que vem ocorrendo ha tres seculos.

Ocorre que nenhuma parte do territorio amazonico era desabitada antes ou durante os intervalos desses ciclos. Milhares de comunidades e centenas de povos indigenas, povos tradicionais e quilombolas sempre viveram de forma sustentavel nos imensos territorios amazonicos. De exterminio em exterminio, tais ciclos desenvolvimentistas interferiram gravemente nos arranjos sociais, deslocando populacoes, alterando a socializacao, destruindo culturas e gerando conflitualidade (FERNANDES, 2005). E diferentemente de outras fronteiras, a Amazonia ocidental, especialmente a regiao ao sul do Amazonas e ao Norte do Mato Grosso, foi colonizada em ondas financiadas e gerenciadas pelo governo central do pais--desde a chamada de trabalhadores para a construcao da Estrada de Ferro Madeira Mamore, aos nordestinos trazidos para os seringais, os colonos sulistas e capixabas que reivindicavam a reforma agraria em suas origens e dai em diante (1).

Essa historia de intervencoes coloniais gerou um enorme passivo historicocultural que e motivo de grandes conflitos atualmente. Nosso interesse neste trabalho e abordar outra faceta dessa historia: a cada ciclo, uma nova estrutura normativa foi colocada em movimento, criando e destruindo direitos, redefinindo competencias e instituicoes, alterando a natureza juridica de bens publicos, transferindo a titularidade desses bens e dando origem a uma sobreposicao de direitos quase incompreensivel (2). O objetivo e analisar a forma como esse emaranhado normativo impacta os conflitos agrarios na Amazonia ocidental, especialmente no caso de Rondonia, estado com o maior numero de mortes no campo do pais, e um dos lugares onde mais se mata no campo no mundo (CPT, 2016; BBC, 2016). Nosso argumento principal defende que falhas graves no sistema de justica aprofundam e chegam mesmo a dar causa a muitos desses conflitos, embora, na origem, nao se deva retirar o peso devido as causas politico-economicas do problema.

Para compreender melhor a natureza juridica desses conflitos vamos analisar a seguir a ocupacao territorial da Amazonia sob uma perspectiva legal e historica (2). Na sequencia, iremos descrever o cenario dos conflitos agrarios em Rondonia (3) para, entao, analisar a precariedade com que o sistema de justica vem atuando nesses casos (4)--usaremos um exemplo recente em Rondonia cujos erros causaram impactos nos episodios de violencia na chacina de Colniza, Mato Grosso, em 2017. Faremos um resumo do conjunto de acoes e omissoes do Estado que configuram o quadro de violacoes sistemicas de direitos humanos de trabalhadores, camponeses, comunidades tradicionais, povos indigenas, quilombolas e afetam, evidentemente, a vida de todos os demais cidadaos do estado, em razao do acirramento da violencia e da instabilidade juridica (5). Nossas conclusoes apontam a urgencia na tomada de decisoes e medidas graves para a diminuicao do potencial desses conflitos, sob risco de enfrentarmos perdas ainda maiores (6). A primeira dessas medidas exige respeito incondicional ao direito das pessoas comuns que dependem da terra para viver de forma sustentavel no ambiente de floresta tropical que ainda resta no estado. Sem que esse primeiro passo seja, finalmente, dado, nenhuma outra solucao pode pacificar o campo e salvar o patrimonio historico, cultural e biologico que pertence a todas as nacoes brasileiras.

Ocupacao territorial da Amazonia e sobreposicao normativa

A preocupacao com o desenvolvimento economico da Amazonia apos o fim da Segunda Guerra Mundial manteve o padrao dos ciclos economicos anteriores: vastos territorios que deveriam ser desbravados, a disposicao das forcas politicas dos centros decisorios do pais, desconsiderando as populacoes nativas e as preocupacoes com as particularidades de suas reservas naturais e tradicoes culturais (BECKER, 1982; BECKER, 1998).

O primeiro estagio desse processo se deu com algumas concessoes aos poderes politicos locais, por meio de uma estrategia que destinava percentual fixo dos recursos tributarios da Uniao para os estados entao existentes. Esses recursos deveriam ser aplicados em estudos tecnicos e decisoes politicas cujo planejamento deveria levar em conta em problemas ambientais e definicoes sobre a ocupacao territorial da regiao. O artigo 199 da Constituicao Federal de 1946 determinava que, anualmente, seria reservada uma quantia nao inferior a 3% da receita tributaria da Uniao para que durante ao menos 20 anos consecutivos fosse empreendido um programa de investimentos na Amazonia, por meio de um conjunto de iniciativas chamadas entao de "Plano de Valorizacao Economica da Amazonia" (SANTOS, 2014). Em 1947, foi criada a Comissao Parlamentar de Valorizacao da Amazonia, com a funcao de executar o dispositivo constitucional e de propor a forma da distribuicao dos recursos para a regiao. Tal Comissao foi responsavel pela elaboracao do texto da lei federal 1.806, de 6 de janeiro de 1953, que em seu artigo 2[degrees] definia a regiao amazonica a partir dos limites geograficos dos estados do Para e do Amazonas, pelos territorios federais do Acre, Amapa, Guapore e Rio Branco e ainda, a parte do Estado de Mato Grosso a norte do paralelo de 16[degrees], a do Estado de Goias a norte do paralelo de 13[degrees] e a do Maranhao a oeste do meridiano de 44[degrees].

Em 1966, ja sob o governo ditatorial militar, o artigo 199 foi alterado, suprimindo o limite de tempo para a execucao do respectivo plano (Redacao dada pela Emenda Constitucional no 21, de 1966). Em 1[degrees] de fevereiro de 1966, em Macapa, o primeiro presidente durante a ditadura militar, Marechal Castelo Branco, anunciou o inicio da chamada "Operacao da Amazonia", a qual teria como proposito transformar a economia da Amazonia, fortalecer suas areas de fronteiras e promover a integracao do espaco amazonico no todo nacional (3.)

Entre 1966 e o fim dos anos 1970, o desenvolvimento da Amazonia nao conseguiu cumprir a expectativa lancada com o artigo 7[degrees] da lei 1.806 de 1953, especialmente no que dizia respeito a distribuicao geografica de terras produtivas. O zoneamento ecologico da Amazonia ja estava previsto na lei de 1953, mas somente com o Estatuto da Terra, de 1964, essa categoria juridica ganhou definicao mais nitida (4). A finalidade era a de elaborar estudos para planejamento da ocupacao de areas rurais para fins de colonizacao e reforma agraria sob a responsabilidade do entao Instituto Brasileiro de Reforma Agraria.

O principal desdobramento desse interesse federal na ocupacao das terras em Rondonia comecaria a ganhar forma com o Plano de Integracao Nacional (PIN), Decretolei n. 1.106 de junho de 1970, o qual objetivava financiar a infraestrutura nas regioes de atuacao da Superintendencia do Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE) e da Superintendencia do Desenvolvimento da Amazonia (SUDAM). Por meio desse mecanismo, e para viabilizar a exploracao e colonizacao das areas proximas das rodovias federais, o governo federal criou, pelo Decreto-lei n.1.110 de 9 de julho de 1970, o Instituto Nacional de Colonizacao e Reforma Agraria (INCRA).

Assim, colocando em andamento a estrategia de integracao anunciada por Castelo Branco, e para expandir a fronteira agricola, sobretudo do cafe e do cacau, saturadas em estados como o Parana e no Espirito Santo, o INCRA criou, entre 1970 e 1976, cinco Projetos Integrados de Colonizacao (PIC) e 2 Projeto de Assentamento Dirigido (PAD) em Rondonia (SANTOS, 2001, p. 131)--as sedes desses projetos se transformaram naquelas que hoje sao as maiores cidades do interior do estado, ao longo da BR-364 (PRIETO, 2017, p. 11). Os Projetos Integrados de Colonizacao (PIC's), os Projetos de Assentamento Dirigidos (PAD's), os Projetos Fundiarios (PF's) e os Projetos de Assentamento Rapido (PAR's) elaborados e implantados pelo INCRA cobriram quase que integralmente os 24.294.400.0000ha pertencentes a extensao geografica de Rondonia (MOSER, CUNHA, 2010, p. 144). Os lotes entregues pelo INCRA nao podiam ser vendidos e, na grande maioria dos casos, os contratos possuiam clausulas resolutivas que jamais foram cumpridas, de forma a legalizar a propriedade, em definitivo. Alem disso, o INCRA desrespeitou territorios indigenas e de comunidades tradicionais, afetando drasticamente os modos de vida de pequenos camponeses e garimpeiros artesanais, sobrepondo as propriedades e comunidades de imigrantes nordestinos antigos, e de varias outras partes do pais, que haviam se deslocado para a Amazonia durante os dois ciclos da borracha, gerando conflitos que levaram a extincao de comunidades e populacoes inteiras (LE TOURNEAU, BURSZTYN, 2010, p. 114).

Apesar do esforco institucional divulgando como inovador esse modelo de colonizacao graves problemas impediram o exito da iniciativa. A...

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