O homoparentesco

AutorSilvane Maria Marchesini
Ocupação do AutorJurista. Psicóloga. Psicanalista. Pós-Graduada, Mestra em Psicologia Clínica
Páginas137-157

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Nesta mesma linha de pensamento, o psicanalista Jean-Pierre Winter430 escreveu o livro "Homoparentesco", colocando em causa, não as escolhas sexuais das pessoas, mas as eventuais consequências do projeto de apagar da filiação a diferença dos sexos, com a legalização da "homoparentalidade", para o conjunto dos homens, mulheres e crianças.

Inicialmente, ele relete sobre o conceito contemporâneo de "parentalidade", substituindo-se, regularmente, àquele de "parentesco", o qual remete à estrutura dos laços entre as gerações. Ele questiona o motivo de substituir uma palavra por outra. Assim, ele afirma que a confrontação entre ambos os termos revela um deslocamento do sentido, uma decalagem entre as formas convencionais do parentesco e a inle-xão a que atualmente se submetem. "A introdução do termo ‘parentalidade’ anuncia uma transformação, ou até uma deformação da noção de parentesco". Este termo signiica uma negação dos desaios des-ta "novlangue" familiar, que parece vem impondo-se nos meios de certos sociólogos e nas mídias, e sendo retomada pelos políticos.

O parentesco é um sistema de lugares centrado sobre a diferença de gerações , ou seja, sobre o reconhecimento do fato da procriação : houve relação sexual entre dois seres, um masculino, e outro feminino, houve desejo e reprodução dos corpos; se deste ato dos corpos resulta uma procriação, estes dois seres tornar-se-ão parentes, o que signiica que eles terão o dever de cuidar da criança e de criá-la. " Parentalidade " afasta-se em relação a este primeiro signiicado e acentua, quase exclusivamente, sobre o papel educativo dos parentes. Enquanto o vocábulo parentesco, como o veremos, recobre outra coisa431.

As mudanças de nome escondem um desvio de signiicado, ingindo reforçar o seu valor de uso. Este desvio pode constituir um verdadeiro oximoro, projetando-nos em uma confusão, quando consideramos as perturbações psicológicas e sociais induzidas pelos avanços das biociências.

O termo "homoparentalidade", adotado pelas mídias ocidentais, foi utilizado para designar novas realidades. Todavia, os problemas suscitados com seu emprego mostram-se muito numerosos e complexos, tornando estranha a leviandade com a qual ele foi inapropriadamente utilizado, como sinônimo de "pa-rentesco". Esta fácil substituição das palavras, em circunstâncias desnecessárias, acarreta consequências políticas, legais e educativas, para todos, independentemente da conduta sexual.

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Veremos que a primeira, porém não a mínima, destas consequências consistirá logicamente em despojar-se dos termos de "pai" e de "mãe" ao custo de uma noção indiferenciada de "parente", reduzida à indeterminação sexual e à função educacional. A função parentesca é dita então " intencional ", o que seria muito reduzi-la, como já é o caso com a nova legislação canadense. Uma segunda consequência, mais sutil, porém não menos problemática, constará na mudança do próprio signiicado de estado civil . De fato, o estado civil era, pelo menos no estado atual das nossas democracias, como seu nome indica, um estado: a identidade jurídica de um sujeito não depende dele, mas de algumas inscrições legais - seu nome, seu prenome, seu sexo, seu lugar e data de nascimento, sua nacionalidade e eventualmente as mesmas informações concernentes às pessoas que o sustentaram na vida, pais biológicos ou pessoas titulares. E eis que com a noção de "parentesco", particularmente, se é homo -, a conduta sexual dos pais tornar-se-á legível na certidão de registro civil. Apesar do apagamento dos nomes de "pai" e de "mãe", aparecerá necessariamente que os pais são homossexuais ou heterossexuais. "Parente A" e "Parente B" não impedirão de saber que Paulo ? dito ser ilho de Pedro e Jacques e não aquele de Pedro e Solange. É fácil apagar, mas é impossível apagar os traços do apagamento. 432

Winter433 questiona o fato de um elemento da personalidade, por exemplo, um comportamento homossexual, se transformar em estado civil. Ou seja, o fato de tal comportamento se inscrever na sociedade da mesma maneira que as coordenadas da existência legal. Uma vez que o estado da pessoa, no nível legal, deine-se mediante fatores de ordem natural (sexo, idade, saúde...) e mediante fatores de ordem social (nome, sobrenome, casamento, filiação...), esse tipo de inscrição de um elemento da personalidade, sob o manto do "liberalismo" ou do reconhecimento do "direito à diferença" abre caminho para a possibili-dade de promover os dados pessoais para o nível de estado permanente.

Ele434 afirma que o que uma minoria ganha em nome da "igualdade" importaria na perda de liberdade para todos, uma vez que a ideologia genética, com suas marcas, encontraria nisso também a sua vantagem. Ademais, este modo de inscrição sociolegal - a partir de um elemento da personalidade, de uma conduta, de um comportamento sexual... -, levaria a trancar, deinitivamente, qualquer questionamento etiológico, tanto da homossexualidade quanto da heterossexualidade. Assim, "o que Freud denomina a ‘escolha de objeto’, especiicando que a mesma pode variar segundo as circunstâncias, tornar-se-ia um dado permanente".435

O uso deste tipo de inscrição de um elemento transformador da personalidade, para descrever o estado civil, é preocupante, tanto de ponto de vista político, no sentido de vida na cidade, quanto psicológico, eis que reduz a identidade de cada um a alguns de seus atos.

Trata-se, segundo ele, para um psicanalista de se interrogar e de reletir acerca dos efeitos even-tuais dos temas de sociedade nas gerações futuras. Trata-se de pensar as perturbações que surgem na cena onde acontece a transmissão da vida, tanto psíquicas como físicas: a cena das iliações reais e simbólicas. Mas, também, não se apressar em promulgar leis, cujos efeitos poderão ser lamentados.

Winter436 questiona outro aspecto do problema:

[...] É a homofobia que impede os casais homossexuais de se tornarem parentes "de pleno direito"? Não haveria, no entanto, nas nossas sociedades uma espécie de heterofobia, no sentido do ódio à diferença? Alega-se que não deveríamos nos alertar, pois a diferença de sexos seria inapagável. Certamente. Mas, a sua signiicação e seu papel na estruturação social e psíquica seriam apagados, caso ela fosse reduzida, de um lado, a um dado da natureza, em menosprezo da dimensão subjetiva implicada na vida sexual, e de outro lado, no plano da singularidade, a um "ingimento" cortado das realidades isiológicas e psíquicas437.

Ele438 critica os argumentos utilizados pelos políticos para justiicar "a homoparentalidade". Eles não deixam nenhum espaço para a relexão sobre o emprego de estatísticas de crianças concernidas pela situação, e em que estes dados deveriam justiicar a modiicação dos direitos da filiação para todos. Nin-guém contesta que todas as crianças tenham os mesmos direitos, como o de ter parentes. Porém, trata-se realmente de um direito, o autor se pergunta? Mas, também, ele se questiona se o álibi do direito das crianças não seria posto para, na realidade, ocultar um "direito" dos homossexuais, reivindicando o reconhecimento como casal parental? Ele lembra que, na França, a proteção das crianças é assegurada desde a lei de 1972, abolindo o privilégio da filiação legítima: todas as crianças, independentemente das circunstâncias dos seus nascimentos, possuem os mesmos direitos.

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Desde que não podem ser previstas, a longo prazo, as consequências do fenômeno da homoparenta-lidade, o autor439 busca estabelecer critérios mais concretos, evocando diversas questões importantes.

Trata-se de uma simples extensão do direito, ou de um modo de pensamento que leva a questionar os laços de filiação , e então de um certo estado do simbólico , renunciando até o tipo de procriação em uso até o momento? Tal desconstrução é anunciadora de um novo mundo? Trata-se de uma simples passagem pela negação, ou, ao contrário, do estabelecimento de uma nova continuidade voltada a transformar o mundo? Se for o caso, a lógica desta nova cons- trução é mais construtiva que destrutiva? 440

Winter441 coloca a questão do "desejo de criança". Ele questiona se o seu surgimento nas pessoas que não podem ter crianças é tão autêntico e enigmático, quanto num ou numa homossexual. Ele afirma que uns e outros são capazes de desenvolver qualquer tipo de estratégias, mais ou menos complexas, "para ter crianças que não seriam deles"442. Portanto, é importante saber se é desejável legalizar estas estratégias sinuosas.

É necessário legalizar a implementação de um fantasma que poderia provar-se nefasto, mesmo parecendo adequa-do com as mudanças cientíicas e políticas de nossa sociedade? Sejamos claros: não se trata nesta obra de tentar impedir os homossexuais de criar crianças! Eles mesmos provam não serem piores que outros na função de parentes443)

O principal problema que o autor444 evoca diz respeito à reivindicação de certos homossexuais para conseguir um título legal de parentes, mediante da inscrição, na lei jurídica, da homoparentalidade.

A questão do "homoparentesco" não se confunde com a questão da homossexualidade , nem com a questão do seu lugar na sociedade. Estas duas questões não são contínuas, elas não são da mesma natureza. Pois a demanda dos "homoparentes" transborda sobre outra questão, a qual a concerne todo mundo : aquela da filiação , na sua dimensão ao mesmo tempo simbólica e biológica, aquela das repercussões da perturbação desses laços, particular-mente se ela é voluntária ou legal. Não há evidentemente nenhuma certeza sobre o que poderia disso resultar no futuro, mas a presente obra é destinada a refutar a ideia segundo a qual bastaria emitir uma proposição nova para que esta seja considerada ao mesmo tempo como progressista e democrática 445.

Ele446 assinala que, se no debate atual as questões da filiação continuam a concentrar-se acerca da homoparentalidade, esta poderia, também, ser...

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