A homoparentalidade como um dos componentes das diferentes parentalidades de hoje em dia

AutorSilvane Maria Marchesini
Ocupação do AutorJurista. Psicóloga. Psicanalista. Pós-Graduada, Mestra em Psicologia Clínica
Páginas106-118

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A pós-modernidade abre outras parentalidades, inclusive, outras fraternidades. Tornar-se parente, pai ou mãe, com a chegada de uma criança em se apoiando sobre as identiicações a seus próprios parentes, coloca em causa tanto a distinção entre a necessidade e o desejo de ter uma criança, quanto as relações entre gerações e a questão da diferença de sexo.

Filósofos, antropólogos, sociólogos, psicanalistas e clínicos em geral cruzam olhares sobre as mudanças na parentalidade promovidas pelos avanços da ciência e a evolução da sociedade. Eles se questionam sobre estas novas "socialidades", sob as modalidades de famílias monoparentais ou recompostas, as novas crianças oriundas de procriações medicamente assistidas (PMA), se "elas iniciam a chegada de

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um companheirismo generalizado, feito de casais unissexuais, de comães e de copais, em que a relação ao outro se faz primeiramente sobre o mesmo, e não mais sobre a diferença?271"

Eles analisam estas novas parentalidades em função da civilização, das épocas e da história individual do sujeito. Os psicanalistas observam a importância do lugar e da função entre parente real, imaginário e simbólico, para a constituição subjetiva da criança, e eles emitiram a hipótese de um retorno do matriarcado e um afastamento do sexual nos novos discursos sobre as parentalidades.

Os clínicos questionam "O que é ser parente?", "O que é ser pai ou mãe?". Considerando que esta função da parentalidade no homem não se encontra regulada pelo instinto como nos animais, eles observam que não é somente a qualidade e a quantidade dos tratamentos parentais que estão em causa, mas que "a própria pessoa que os dá, pode ser determinante, em razão do seu laço simbólico e real à criança"272.

Eles analisam a inluência destas novas famílias sobre as crianças, suas diiculdades, e susce-tibilidade de serem marcadas pela "carência originária" quando criadas por um único parente, por parentes adotivos, ou vivem em instituição. Eles acompanham estas novas crianças para veriicar se eles apresentam mais frequentemente patologias mentais, ou peris psíquicos particulares em razão do deinhamento do patriarcado, ou ainda, da "desmaterialização do pai".

Nas evoluções do parentesco e da família no mundo contemporâneo constata-se a multiplicação das uniões livres marcadas pelo individualismo na escolha do cônjuge. Os indivíduos vivem durante anos em casal e fundam uma família sem se casar. A decisão em relação ao casamento é tomada mais tarde, na ocasião do nascimento de uma criança. O surgimento de famílias recompostas após os divórcios contribuiu na transformação da noção de "autoridade paterna" pela noção de "autoridade parental". Surge, portanto, um parentesco mais social que biológico, nas relações familiais em que o princípio de descendência se mantém, mas as alianças são cada vez mais frágeis e provisórias. Constatam-se outras modalidades de famílias monoparentais compostas de uma pessoa solteira e de uma criança, e famílias homoparentais que reivindicam sua legislação.

Constatam-se ainda, novos agentes familiais criados pelos avanços da ciência, as ditas mães portadoras (mães de aluguel), ou as mães de substituição:

O ovócito da mulher é fecundado pelo seu marido depois transferido no corpo de outra mulher, a qual se engaja por contrato a assumir a gravidez e a colocação da criança no mundo. Esta será então geneticamente unida ao seu pai e à sua mãe, mas terá sido colocada no mundo por uma mulher que em si a terá carregado, porém, sem ter nenhum laço genético com a criança273.

Ou ainda, os pais e as mães sociais, no caso de casais em que um dos membros é estéril. Tais crianças são vindas ao mundo por inseminação, e, conforme o caso, eles tornam-se pai ou mãe das mesmas, porém sem laço genético. A criança tem um laço genético somente com um genitor.

Em relação ao aparecimento das famílias homoparentais, Godelier274 explica que:

Para compreender esta evolução e responder a esta reivindicação, é preciso tomar uma distância histórica e uma perspectiva sociológica. Nas "As Metamorfoses do Parentesco" eu tentei mostrar que esta reivindicação aparece num momento determinado da história de nossas sociedades ocidentais, e mais precisamente, na interseção, no ponto de convergência de três movimentos sociais distintos.

O primeiro movimento se tece no século XIX, e não tem nada a ver com a homossexualidade. É aquele da valorização da criança e da infância. Atualmente o desejo de criança no plano cultural e social não tem mais nada a ver com o desejo que tinham outrora os camponeses de dispor da força de trabalho graças a uma família numerosa. Não é tamb?m o desejo da pequena burguesia de ter um ilho único para que este aceda ? Escola Polit?cnica. A valorização moderna da infância é, ao mesmo tempo, aquela dos adultos que as colocam no mundo, a valorização dos parentes e

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de uma certa forma de parentalidade . É isso que estrutura o desejo moderno de criança. Do ponto de vista cultural e social a criança adquiriu um valor novo que valoriza também seus parentes . É no contexto deste movimento que se compreende a aparição da "Declaração Universal dos Direitos da Criança".

O segundo movimento data da metade do século XX. Trata-se do movimento que levou à "despatologização" da homossexualidade, do ponto de vista da medicina e do ponto de vista da psicologia. Na medicina a homossexuali-dade não é mais uma doença. Na psicologia ela não é mais uma perversão. Ela ica para os Cristãos e para as ou-tras religiões como uma sexualidade contra a natureza no sentido oposto à vontade do Deus criador. Isto supõe que, para estas religiões, o objetivo único do ato sexual é a reprodução. Mas, para certos meios cristãos, a homossexualidade está já relativamente desdiabolizada. Pouco a pouco, a ideia difundiu-se então na opinião pública ocidental no sentido de que a homossexualidade é uma outra forma de sexualidade, outra, porém, normal. E, provavelmente, esta opinião está hoje em dia mais propagada entre os jovens que no meio de outras gerações.

Um exemplo, dentro da evolução das ciências, que faz reletir, nos vem da primatologia. Os homens são primatas e as duas espécies de primatas mais próximas dos humanos pelos seus cromossomos são os chimpanzés e os bonobos. Durante muito tempo, os primatólogos "não observavam" ou não queriam ver que os chimpanzés e os bonobos são ao mesmo tempo homossexuais e heterossexuais. Quando as fêmeas não estão no cio, fase de acoplamento que estimula evidentemente as relações heterossexuais, constata-se que os chimpanzés assim como os bonobos entregam-se a carinhos e toques homossexuais. O que quer dizer que a homossexualidade é "natural" e que existe em cada indivíduo duas sexualidades, uma, a heterossexualidade, ao serviço da procriação, mas fonte igualmente de prazer, a outra, a homossexualidade, ao serviço exclusivo do gozo nos primatas. A primatologia veio então fortalecer a tese de Freud segundo a qual nós somos normalmente bissexuais.

Ao mesmo tempo, compreende-se muito bem que, para continuarem a existir, as sociedades humanas tenham valorizado diferentemente as duas sexualidades, colocando no primeiro plano a heterossexualidade, mas frequentemente sem interditar a homossexualidade. Esta, como o sabemos, existia (Atenas, Roma) e existe com efeito em muitas sociedades, mas com valores e estatutos sociais muito diferentes daqueles que aparecem nas sociedades ocidentais modeladas pelo cristianismo. Este segundo movimento conduziu, portanto, no im do ?culo XX, ao reconhecimento, cada vez mais acentuado, da ideia que a homossexualidade é uma sexualidade normal. Trata-se de uma outra sexualidade, a qual os indivíduos podem vivê-la durante suas vidas, exclusivamente ou complementariamente à heterossexualidade.

O terceiro movimento, que se desenvolveu evidentemente nos países ocidentais de regime democrático, é o fato que numa democracia todas as minorias lutam para obter e exercer os mesmos direitos que as maiorias, ou para adquirir direitos particulares sem com isso subtrair alguns dos outros. Esta dinâmica das minorias-maiorias nunca cessará.

Encontrando-se e adicionando-se, estes três movimentos criaram desde duas décadas no Ocidente uma nova situação histórica no meio da qual se tornou concebível e possível que homossexuais queiram ao mesmo tempo viver sua homossexualidade e realizar seu "desejo de criança" (o desejo moderno de ter criança). Realizar sua homossexua-lidade e desejar ter ou criar crianças, signiica criar o que se denomina de família homossexual. Por que o termo "família"? Vimos o porquê.

Uma família é uma unidade de procriação e/ou de criação das crianças. Para os gays esta família é de fato uma unidade de vida comum e de educação de crianças. Mas não é uma unidade de procriação eis que os gays devem adotar crianças. Para as lésbicas, tendo em vista que uma delas ou as duas podem colocar no mundo crianças mediante inseminação ou relações sexuais com um doador que icará ou não anônimo, a família pode ser verdadeiramente uma unidade de procriação e de educação das crianças. Mas as lésbicas podem também não procriar, mas adotar crianças.

É nesta perspectiva, ao mesmo tempo histórica e antropológica, que podemos compreender que não é possível reter mediante meios de coerção, e de repressão política e policial, a multiplicação e a legalização de famílias homoparentais. O que é necessário, é reconhecer esta evolução enquadrando-a juridicamente ao termo de um debate político e social que ixará os direitos e os deveres dos homossexuais em relação ?s suas crianças. Direitos e deveres que não podem ser diferentes dos direitos e deveres dos heterossexuais para com suas crianças. Todavia, o que é o direito? É a união sob forma normativa do político e do social. Sucede então que no contexto das sociedades europeias e euro-americanas a reivindicação dos homossexuais de poder criar famílias encontra-se fundada historicamente e deve ser...

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