A perspectiva democrática da criminalização da homofobia: o sentimento constitucional e a imperatividade da não discriminação

AutorThiago Luiz D'Agostin Machado
CargoMestre em Direitos e Garantias Fundamentais pela FDV - Faculdades de Direito de Vitória, com auxílio de bolsa concedida pela FAPES
Páginas330-357

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Introdução

Este ensaio visa discutir tema que, felizmente para a democracia brasileira, apresenta-se como debate crescente no cenário nacional, principalmente após o Supremo Tribunal Federal (STF) haver se manifestado favoravelmente ao reconhecimento das uniões homoafetivas com o status jurídico relativo às uniões estáveis entre heterossexuais.

A pretensão deste estudo, no entanto, não se refere propriamente aos aspectos jurídicos da união entre pessoas do mesmo sexo, mas à criminalização de conduta discriminatória, neste caso, em decorrência de orientação sexual.

No entanto, é inegável que o reconhecimento da união homoafetiva como união estável agudizou no âmbito jurídico o volume de postulações acerca de direitos outrora negados aos casais homossexuais, como o próprio casamento -cujo reconhecimento aos casais homossexuais permanece a gerar intensa celeuma. O fato de a Suprema Corte brasileira haver se manifestado pela equiparação das relações entre as pessoas do mesmo sexo demonstra, de forma bastante clara, a posição desse tribunal quanto à aplicação do princípio da igualdade, norteador da Constituição, e nela inserido de forma expressa no caput do artigo 5o, inclusive como direito fundamental e, assim, cláusula pétrea.

Vê-se conveniente, portanto, uma discussão acerca da criminalização da homofobia, tema tão relevante e conturbado na atualidade, que transcende a seara jurídica, tangendo aspectos das mais variadas ciências e valendo-se, assim, de forma inelutável, também da ciência política, da filosofia e da psicologia. É na consciência desta interdisciplinaridade que se realiza o presente estudo.

Neste sentido, objetivando-se uma compreensão da legitimidade democrática de lei que ponha ao abrigo os direitos fundamentais de um grupo discriminado - os homossexuais - há que se analisar, ainda que brevemente, o paradigma sobre o qual se assenta o Estado brasileiro: o Estado Democrático de Direito, em seus aspectos centrais e supostas incongruências.

Para isso, adota-se também uma concepção de democracia. Na perspectiva da democracia deliberativa, mostra-se relevante desenvolver uma análise acerca dos direitos fundamentais essenciais à cooperação democrática. A noção de democracia deliberativa cooperativa, adotada a partir de Souza Neto, contribui para

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o debate final, a partir do momento em que os requisitos para a cooperação, substrato desta teoria, permitem uma relação com o sentimento jurídico-constitucional daqueles que são discriminados.

Assim, passa-se da ideia de colaboração presente na deliberação democrática à visitação das noções de sensibilidade jurídico-constitucional, muito bem elaborada por Verdú. Faz-se possível, desta forma, realizar, ao fim, um debate em torno da perspectiva democrática da criminalização da homofobia que tenha amparo na vertente democrático-deliberativa e no sentimento constitucional, estando assentado todo o desenvolvimento deste sob as diretrizes do Estado Democrático de Direito.

1. Estado democrático de direito

A formalidade do texto constitucional, por óbvio, não implica, necessária ou automaticamente, a realização de seu conteúdo. Por conta disto, há muito que se discutir quanto à efetividade da constituição na sociedade brasileira, levando-se em consideração, primordialmente, a imperatividade do respeito aos princípios democráticos, bem como aos direitos fundamentais.

Em princípio, parte-se aqui do pressuposto, compartilhado por Bolzan de Morais (2000, p. 12), de que existe um "papel indispensável da Carta Magna para o desenvolvimento democrático da sociedade", que restariam representados pelos dois ideais centrais que compõem o Estado Democrático de Direito. O Direito Constitucional, portanto, deve ser visto sempre também como direito político, uma vez que não está limitado à normatividade e à intelecção linguística, mas funda-se também na teoria política, bem como na sociologia. O constitucionalismo atual encerra dois conceitos comumente vistos como antagónicos: O Estado de direito e a soberania popular.

Esta visão de incompatibilidade, embora não infundada, persiste como resultado de uma compreensão sectária do todo, que é o Estado. Nos moldes atuais, devem pulsar simultaneamente estes "dois corações políticos" (CANOTILHO, 2003, p. 98) no seio do Estado. Na falta de um, o outro não pode existir. Corroborando tal entendimento, Santiago Nino (1996, p. 7) afirma: "O

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constitucionalismo parece requerer claramente o reconhecimento da importância mútua das dimensões democrática e liberal".

A cisma entre os dois constitui dilema próprio da teoria do Estado Democrático Constitucional. No Reino Unido, se expressa com maior proeminência sob a forma do binómio rule of law e sovereignty of parliament (VERDÚ, 2007, p. 18). A batalha entre os dois é também aquela que na cultura americana se trava no ambiente político entre os republicanos (constitucionalistas) e os democratas. Enquanto os primeiros advogam uma maior rigidez para as leis do Estado constituído, os últimos defendem a dinamização pela maioria democrática. Canotilho (2003, p. 98) lembra que esta angústia diante da simbiose Estado de Direito e Estado Democrático para alguns representa apenas dois modos distintos de ver a liberdade. Nesta percepção, a liberdade negativa (direitos perante o Estado) deve se conciliar com a liberdade positiva de participação popular.

O Estado constitucional não é nem deve ser apenas um Estado de direito. [...] Ele tem de estruturar-se como Estado de direito democrático, isto é, como uma ordem de domínio legitimada pelo povo. A articulação do "direito" e do "poder" no Estado constitucional significa, assim, que o poder do Estado deve organizar-se e exercer-se em termos democráticos. O princípio da soberania popular é, pois, uma das traves mestras do Estado constitucional. O poder político deriva do "poder dos cidadãos".

Importa dizer, então, que o Estado Constitucional, advento do século XX, significa a coexistência da democracia e do Estado de Direito. Canotilho (2003, p. 100) expressa também com clareza esta ligação, muitas vezes ignorada por alguns juristas que parecem igualar Estado Constitucional a Estado de Direito, relegando a democracia a um segundo plano:

O Estado Constitucional é "mais" do que o Estado de Direito. O elemento democrático não foi apenas introduzido para "travar" o poder (to check the power); foi também reclamado pela necessidade de legitimação do mesmo poder (to legitimize State power). Se quisermos um Estado constitucional assente em fundamentos não metafísicos, temos de distinguir claramente duas coisas: (1) uma é a da legitimidade do direito, dos direitos fundamentais e do processo legislativo no sistema jurídico; (2) outra é a da legitimidade de uma ordem de domínio e da legitimação do exercício do poder político.

Como se vê, o Estado de Direito não figura isolado na legitimidade do constitucionalismo. Quando se discorre acerca de constitucionalismo, nos dias

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atuais, há que se levar em conta que o Estado de Direito encontra seu contrapeso na soberania popular, que só advém do exercício democrático. Os dois - e somente os dois - alcançam o respaldo necessário para a legitimidade de uma ordem constitucional. Trata-se da "cooriginariedade" (SOUZA NETO, 2007) do Estado de Direito e da soberania popular. Estes dois elementos, conquanto se apresentem de modo conflitante, devem ser harmonizados. Pela ótica de Verdú, é possível perceber o Direito exatamente como o princípio-meio capaz de permitir a convivência democrática.

O Direito é princípio realizador da convivência humana nos marcos da sociedade política. Ademais, essa convivência há de fundamentar-se em alguns valores determinados. Por isso, torna-se clara a dimensão cultural do Estado de Direito. Afinal, ela põe o Estado a serviço desses valores. (VERDÚ, 2007, p. 6)

Mas o que dizer de uma convivência que almeja se fundar em valores excludentes, que negaria o gozo pleno de direitos fundamentais a certos cidadãos? O reconhecimento de todos os cidadãos como iguais, pedra angular da democracia, implica o respeito irrestrito a todos os direitos dos indivíduos, indiscriminadamente, a menos que por razões justificadas, como é o caso das previsões criminais, que vem exatamente a garantir a preservação dos bens de todos contra condutas transgressoras alheias.

Neste sentido, comporta questionar, então, sob a égide do Estado Democrático de Direito, se a discriminação a homossexuais pode ser legitimamente proibida, tendo em vista que não há, no Brasil, até a presente data, maiorias legislativas que se disponham a votar e aprovar projetos de leis que criminalizem as condutas discriminatórias.

Válido ressaltar neste momento, a guisa de esclarecimento terminológico, que o termo discriminação será empregado aqui como largamente utilizado pela doutrina, em seu sentido pejorativo, resultante do preconceito, não se confundindo com a discriminação positiva, base das ações afirmativas. Isto porque, a rigor, mesmo dentro do quadro dos direitos fundamentais, discriminação pode de fato ser legítima ou não, como bem observou Rodrigo F. de Paula (2010, p. 37-38) em sua pesquisa:

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[...] pode-se concluir que igualdade e diferença devem ser compreendidas como a dupla face de um mesmo direito fundamental, significando tanto o direito à igualdade como o direito à diferença, justapostos na fórmula histórica do direito à igualdade, que assim se incorporou ao corpus das declarações de direitos na história do constitucionalismo. Isonomia e discriminação se referem ao tratamento que é dado a determinada situação: uma igualdade de tratamento entre pessoas sem que sejam levadas em consideração as suas diferenças (isonomia) ou uma desigualdade de tratamento entre as...

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