Homicídio Simples

AutorFernando de Almeida Pedroso
Ocupação do AutorMembro do Ministério Público do Estado de São Paulo. Professor de Direito Penal. Membro da Academia Taubateana de Letras
Páginas49-89

Page 49

2.1. Conceito

A incriminação e a punição do homicídio vêm de priscas eras, datando das mais antigas civilizações.

O homicídio - salienta Hungria - é o tipo central dos crimes contra a vida e é o ponto culminante na orografia dos crimes. É o crime por excelência. É o padrão da delinquência violenta ou sanguinária e representa como que uma reversão atávica às eras primevas73.

O homicídio está consagrado como delito no tipo legal mais singelo da legislação penal pátria, definido somente com duas palavras: matar alguém (art. 121, CP).

Homicídio, de hominis excidium, consiste na eliminação ou destruição da vida humana por outra pessoa. Alguns penalistas acoimam de redundante e pleonástica a alusão, no conceito do homicídio, de constituir a morte de um ser humano por outrem, eis que, por se tratar de delito e porque somente a pessoa física ou natural possui capacidade delitiva, já que todo crime é obra humana, resulta insofismável que a destruição da vida, configuradora do exício, somente pode ser causada por outra pessoa. Todavia, não enxergamos exagero ou superfluidade na inclusão no conceito do homicídio de a eliminação da vida ser procedida por outra pessoa, o que diversifica o crime em comento, como delito que é, da destruição da vida em decorrência de suicídio ou de ataque de animal irracional, fatos, evidentemente, ao largo da abrangência conceitual do crime.

De outro turno, fazer menção, no propósito de conceituar o crime, à natureza violenta com que se produz a morte do ser humano implica incidir em imprecisão técnica, eis que é perfeitamente possível a perpetração do delito sem o recurso à violência, como sucede na utilização de meios sub-reptícios e insidiosos (n. 4.4) ou meios morais e psíquicos (n. 2.2).

Alguns doutrinadores incluem na definição do crime referências à antijuridicidade ou culpabilidade, enfatizando ser o homicídio a eliminação da vida humana, injusta e

Page 50

culpavelmente realizada por outrem. Aqui a redundância e o pleonasmo despontam. Sim, porque, como corretamente acentua José Frederico Marques, os demais elementos constitutivos do delito de homicídio, antijuridicidade e culpabilidade, não devem ser mencionados na definição legal do crime, porque se pressupõe, sempre, que o crime exista por ter havido morte de alguém ilícita e culpável74.

2.2. Ação e meios executivos

O elemento nuclear do crime apresenta índole comissiva, eis que erigido para a captação de ações ativas. Pressupõe, na sua realização, comportamento dotado de fisicidade, id est, que o agente aja com desprendimento de energia, desenvolvendo um movimento físico, corpóreo ou muscular para a concreção do crime, em suma, fazendo algo de positivo e dinâmico para a consecução do desígnio delituoso.

A ação de matar, portanto, elemento nuclear típico do art. 121 do CP, possui conteúdo comissivo, porque subentende a movimentação física e corpórea do agente, o desprendimento de sua energia no plano exterior como condição primária para efetivá-la. Somente será possível ao sujeito ativo matar a vítima se propinar veneno na sua alimentação, se contra ela desfechar tiros ou vibrar golpes de faca, se proceder à constrição de seu pescoço na esganadura etc. Em síntese: apenas se algo fizer no mundo físico e desenvolver comportamento positivo será viável ao agente a ocisão da vítima. Em todos os casos citados à guisa de ilustração verifica-se presente a fisicidade, constata-se o desprendimento da energia do agente para o summatum opus criminoso. Há, destarte, atividade. Daí a natureza comissiva do núcleo do tipo.

Questão que merece ser considerada neste tópico, porque revestida de vital importância, é a relativa à possibilidade de inserir o homicídio na estirpe e classe dos crimes comissivos por omissão ou de omissão imprópria, os delicta commissiva per omissionem.

Esses, no plano da definição legal, apresentam núcleo comissivo. Não obstante, por vezes, possível é ao sujeito ativo obter o acontecimento comissivamente incriminado por meio de um não-fazer, de uma abstenção ou omissão, concretizando, conscientemente, o delito.

Da mesma forma, na imagem de Massimo Punzo75, que se pode fazer secar ou matar uma flor arrancando-a do solo ou aguando-a com solução química tóxica (comissão), também é possível chegar a esse mesmo resultado fazendo-se fenecer e perecer a planta, porque se deixa de regá-la (omissão).

Sob esse prisma é que o problema adquire contornos em termos penais, sediado agora nos domínios do crime de homicídio.

Se certo acontecimento está contemplado na lei penal como criminoso e registra núcleo de índole comissiva, mas o sujeito ativo o comete em concreto por meio da

Page 51

omissão, como conciliar a ação abstrata e a concreta, na equação de confronto e cotejo entre o fato e a norma incriminadora para efeito de identificação típica, se ação e inação ostentam conteúdos opostos, extremados e antinômicos? Prima facie, as atividades abstrata e concreta discrepam e colidem, tornando aparentemente impraticável a tipicidade por falta de adequação fática ao modelo legal.

No entanto, existem casos em que a omissão exsurge com relevância para perfazer a tipicidade de crime que, em sua definição, é comissivo. Nesta hipótese, toma corpo o denominado delito comissivo (em abstrato, na sua definição) por omissão (pela ação verificada no plano concreto) ou, simplesmente, crime de omissão imprópria.

Cumpre, pois, examinar a relevância penal da omissão e perscrutar quando ela a oferece e, portanto, adquire silhueta típica e quando esta importância não se apresenta, de modo a sobejar carente de tipicidade a omissão.

Feuerbach fala na existência do delito com omissão sempre que alguém tenha direito à real exteriorização de uma atividade. Em todo caso, entretanto, deve existir um especial fundamento jurídico, sem o qual não haverá o crime76.

O fundamento jurídico que confere relevância penal à omissão deve ser buscado por meio dos subsídios da teoria da ação esperada, proposta por Waldemar Von Rohland, e da posição de garantidor do agente (Garantenstellung).

A ação que se omite é esperada quando há o dever de impedir o resultado, figurando o omitente, nesse caso, como garantidor da sua não ocorrência.

Nessa situação, constata-se a equivalência da passividade com a atividade e a ação típica se amplia - como afirmou Nagler - também para as omissões de defesa contra a produção de um resultado contrário ao direito77.

A posição de garantidor, contudo, pressupõe não uma necessária relação entre vítima e omitente, mas, sobretudo, como nota diferencial, entre este e o bem jurídico que devia proteger, dando-lhe a possibilidade física e a capacidade final de evitar o resultado78.

É a ausência da conduta devida, destarte, que fundamenta tipicamente o comportamento omissivo, que, tal como acontece com a ação propriamente dita, também é produto da vontade humana.

Como enfatizou Von Liszt, somente quando um dever jurídico obrigava o omitente a impedir o resultado é que se pode equiparar o fato de não impedi-lo ao de causá-lo79.

Impende então considerar quando é esperada (e, portanto, é juridicamente exigida) a intervenção do autor, por ele omitida.

Page 52

A relevância penal da omissão advém, sempre, do descumprimento do dever jurídico de atuar, fixado pelo art. 13, § 2º, do CP. Por conseguinte, sempre que houver um dever jurídico e este impuser a alguém a obrigação de ativar-se e atuar para a evitação de certo acontecimento, se o obrigado se abstiver no cumprimento desse dever, permitindo, conscientemente (obra de sua vontade), que o evento que deveria evitar - e consagrado na lei como delito comissivo - ocorra, a ele será tipicamente atribuível o fato criminoso. Sua omissão será imprópria e terá relevância penal, de modo a aperfeiçoar o crime comissivo por omissão.

Ao contrário, se não existir o dever jurídico de atuar, à omissão não se agregará qualquer relevância penal e, por carência de adequação e enquadramento, o fato terá ângulo sombrio à luz da tipificação, ocorrendo - se houver - mera censura ética ou moral, pelo descumprimento de dever somente desse jaez. O dever moral, pois, quando descumprido, não tem o condão de fundamentar a omissão e levar à sua tipicidade.

O dever jurídico de agir promana de uma norma de direito (art. 13, § 2º, a, CP), de precedente aceitação do dever (art. 13, § 2º, b, CP) ou, por derradeiro, de situação preexistente (art. 13, § 2º, c, CP).

Nesse andar, é convinhável salientar que não existe qualquer impedimento quanto à possibilidade da prática de homicídio por omissão, uma vez existente o dever jurídico de ativar-se não cumprido pelo agente.

Perfeitamente compossível com a estrutura do delito, destarte, é a sua configuração comissiva por omissão.

Calha exemplificar.

Digamos que certa mãe, por motivos de interesse hereditário ou outro qualquer, esteja animada do propósito de eliminar o próprio filho recém-nascido. Todavia, porque ainda conserva um resquício de sentimento de afeto, ternura, desvelo e carinho, falta coragem à genitora para o impulso homicida, para o ato de violência contra o corpo da criança. Delibera ela, então, matar o filho por inanição, deixando de dar-lhe o aleitamento e permitindo, por sua vontade, que o recém-nascido vá-se debilitando e definhando até a morte. Ora, matar é núcleo essencialmente comissivo e a mãe, no caso, chegou ao mesmo resultado desta ação mediante sua omissão. Seu comportamento, contudo, exibe foros de relevância penal e caracteriza um homicídio comissivo por omissão, porque sua inação implicou o descumprimento de...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT