Homicídio Privilegiado

AutorFernando de Almeida Pedroso
Ocupação do AutorMembro do Ministério Público do Estado de São Paulo. Professor de Direito Penal. Membro da Academia Taubateana de Letras
Páginas91-102

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3.1. Introdução

Tão comum e frequente, o homicídio ganhou conceito que conseguiu extrapolar o setor jurídico e ganhar o domínio popular. Mesmo o leigo ou jejuno nas letras jurídicas sabe que o homicídio, conhecido no Brasil na forma popular de assassinato (o homicídio qualificado francês), se caracteriza pela eliminação ou destruição proposital da vida humana.

"Matar alguém" é o tipo básico e fundamental do crime, previsto no art. 121, caput, do CP. O delito, entretanto, pode apresentar, no ato do cometimento, variações, nuanças, facetas e motivos diversos. Tais circunstâncias, uma vez consideradas pela lei, quando se acrescem ao exício praticado, adornam o crime, vestindo-o com peculiaridades que alteram sua fisionomia. Essas circunstâncias, consideradas explicitamente pelo diploma penal, podem ou não ocorrer, sem que o crime de homicídio perca sua configuração ou se transmude em outra figura delituosa. Portanto, a presença dessas circunstâncias somente tem o efeito de medir a temperatura do delito e seu campo de influência fica restrito à mera quantificação da sanctio juris. Por isso, são accidentalia delicti, em contraposição às essentialia (v. n. 2.7).

Homicídio privilegiado é o homicídio a que se agregam circunstâncias acidentais que, previstas especificamente para a espécie criminosa, fazem decrescer a reprovabilidade do delito, ostentando o efeito de mitigar e abrandar a pena cominada ao tipo básico e fundamental.

Para este fito, o Código Penal contemplou, com natureza de circunstâncias privilegiadas, o cometimento do homicídio por motivo de relevante valor moral ou social, ou sob o domínio de violenta emoção, logo após injusta provocação da vítima (art. 121, § 1º).

Constata-se, nesse passo, que a lei penal considerou essencialmente a motivação do sujeito ativo como fator para a suavização da pena.

Motivo, adverte Maggiore, é o antecedente psíquico da ação, a força que põe em movimento o querer e o transforma em ato: uma representação que impele à ação159.

É, em suma, a razão de agir. No escólio de Nélson Hungria, os motivos determinantes

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constituem, no Direito Penal moderno, a pedra de toque do crime. É através do porquê do delito que se pode rastrear a personalidade do criminoso e identificar a sua maior ou menor antissociabilidade160.

3.2. Motivo de relevante valor moral ou social

Os motivos de relevante valor moral ou social mereceram as benesses da lei para uma mitigação no rigor sancionador porque denotam razões ou impulsos anímicos que, inspirando o agente a agir, concentram uma menor dose de individualismo e egocentrismo no querer. São, destarte, motivos mais altruístas e nobres ou motivos que, não obstante censuráveis, têm sua reprovabilidade lenida e abonançada por um certo aceno de simpatia e indulgência conferido pela moralidade média ou pelos anseios sociais e coletivos.

Exemplo clássico de homicídio privilegiado cometido por motivo de relevante valor moral, nunca olvidado pelos doutrinadores, concerne à prática da eutanásia, que é o homicídio compassivo, misericordioso ou piedoso.

Na eutanásia, o agente elimina a vida de sua vítima com o intuito de poupá-la de intenso sofrimento e acentuada agonia, no sentido de abreviar-lhe a existência e o padecimento. Anima o sujeito ativo o sentimento de comiseração e piedade. Digamos, exemplificativamente, que pessoa cara e estimada pelo agente padecesse de enfermidade incurável, de prognóstico letal, que trouxesse, ao longo de seu lento processo de evolução, grande sofrimento ao enfermo, dores atrozes. Que o sujeito ativo, condoído, aflito e desesperado com a situação, testemunha forçada deste drama, não mais suportando assistir a agonia e o suplício do ente querido, deliberasse, sponte propria ou atendendo uma solicitação do doente, matá-lo, consumando o crime para poupar a vítima do sofrimento. É fato curial que essa conduta não poderia ser imune à seara repressiva. Isso porque o Direito Penal tutela a vida desde a concepção até os últimos lampejos vitais da pessoa, da fecundação até o último suspiro e derradeiro estertor do moribundo. Dessa forma, a vitalidade ou a expectativa de vida que ainda possa restar à vítima tem na lei o pálio legal de proteção, de sorte que sua eliminação é criminosa. Uma vida, diz Impallomeni, não deixa de ser uma vida só por que esteja próxima a extinguir-se, pelo que é criminosa a supressão do minuto de vida que reste ao moribundo161. A vida constitui bem jurídico indisponível e inalienável, uma vez que o interesse público prevalece sobre o interesse pessoal relativo à sua conservação. Por conseguinte, a legislação penal pátria não aceita e nem descrimina a eutanásia, mas não vai ao rigor - ressalta Magalhães Noronha - de não lhe conceder o privilégio do relevante valor moral162.

Frequentemente, as pessoas, ao ouvirem falar em eutanásia, exemplo que é do homicídio privilegiado por motivo de relevante valor moral, logo a associam a doença e a enfermidade de desfecho fatal. No entanto, para os efeitos penais concernentes à

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concessão do privilégio, cumpre realçar que nem sempre a eutanásia há de estar indissoluvelmente vinculada a uma doença de desate letal. Supera o fato objetivamente considerado a compulsão psíquica que leva o agente a agir, a sua motivação, punctum pruriens e cerne do privilégio. Nem é por outra razão que a lei penal não se contenta com a simples ocorrência do relevante valor moral no episódio, pois exige, para a concessão da mercê lenitiva da sanctio juris, que o crime seja cometido por motivo de relevante valor social ou moral.

Avulta, sobretudo, o motivo que tenha feito o agente agir, e não o mero episódio no seu aspecto objetivo, no seu quadro exterior. Assim, se o sujeito ativo, assistindo o sofrimento de ente querido, decorrente de moléstia que o acomete, supuser que a doença trará um desate fatal, quando, na realidade, havia a possibilidade de cura, é inconteste que a eliminação da vida do enfermo em tais circunstâncias, ante o desespero, aflição e sentimento de comiseração do agente, tonalizará o homicídio privilegiado eutanásico.

Outrossim, não apenas enfermidades, mas igualmente graves acidentes ou desastres podem justificar a concessão do privilégio. Há algumas décadas (20.11.1971) viveu o Rio de Janeiro tragédia que trouxe grande comoção ao País, quando desabou sobre uma avenida, em cima de automóveis e transeuntes que ali circulavam, o Viaduto Paulo de Frontin. Naquela ocasião, assistia-se, pelas imagens constantes transmitidas pela televisão, à agonia de um homem que teve suas pernas esmagadas e presas pelos escombros. Suplicava aos circunstantes que o poupassem daquele padecimento. O episódio, contudo, se não teve para ele desfecho totalmente feliz (perdeu as pernas), pelo menos terminou para si de forma satisfatória, eis que, decorrido o período de longas e penosas horas, culminou por ser retirado e salvo. Imagine-se, porém, que um transeunte, diante daquela situação ou em outra assemelhada, numa compulsão de desespero, piedade e aflição ante a agonia do semelhante, acatasse as suas súplicas e, ali, pusesse termo à sua vida. Pela motivação que teria impulsionado o agente (compaixão e piedade), seria inarredável a proclamação do homicídio privilegiado misericordioso.

Caso de eutanásia oriundo de acidente, acontecido no Chile, é relatado por Luiz Consiño Mac-Iver, relativo à catástrofe de Alpercatal. Em virtude da colisão de trem, um cadete ficou aprisionado entre os destroços, vendo as chamas que consumiam a composição avançarem em sua direção e sem esperança nenhuma de ser libertado. Quando começava a sofrer as primeiras queimaduras, foi morto com um disparo por um de seus chefes, ante os seus pedidos insistentes e pungente sofrimento163.

Sob esse prisma, observa Aníbal Bruno, pode acontecer, excepcionalmente, fora do caso do doente que se finda em torturas, que tamanho seja o horror das circunstâncias, que venha a determinar no sujeito, testemunha forçada do drama, uma angústia intolerável, a constituir uma compulsão à realização do crime164.

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Uma vez que o motivo prepondera sobre o quadro externo da situação, é insofismável que a eutanásia prescinde de pedido, aquiescência ou súplicas alucinantes da vítima no tocante à própria morte, sendo azado que, sponte sua e motu proprio, o sujeito ativo venha a agir, movido pela angústia, desespero, pela piedade e compaixão, para a eliminação da vida que o Direito, não obstante, ainda tutelava.

É importante, todavia, não confundir a eutanásia com a ortotanásia. Esta é a eutanásia por omissão. Se a primeira é punível, com abrandamento e mitigação, porque a conduta homicida é praticada com fisicidade e desprendimento de energia (natureza comissiva da ação), é bem de ver que a ortotanásia não tem a mesma ótica legal, porque a inação e a inércia que a caracterizam (natureza omissiva da conduta) não descumprem, pelo omitente, um dever jurídico de ativar-se165.

Mister é ainda não confundir a eutanásia com a chamada morte eugênica (que configura homicídio qualificado pela torpeza do motivo) e que consiste na eliminação de vidas reputadas inúteis, como a de débeis mentais, cegos, paralíticos etc.

Homicídio privilegiado pelo relevante valor moral igualmente se perfaz na morte dada pelo pai ao estuprador de sua filha.

A Justiça italiana considerou motivo de relevante valor moral, em crime de parricídio (filho que mata o genitor), manter o pai a amante na casa, na qual vivia com a mulher e os filhos166.

No motivo de relevante valor social, entretanto, sua abrangência é maior que a do motivo de relevante valor moral. Este conta com o apoio ou certa indulgência pela moralidade média, formulado o juízo pelo senso ético comum. O motivo de relevante valor social apresenta expansão mais dilatada, pois corresponde a certos anseios ou expectativas da coletividade. Aquele -...

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