Juiz e historiador, direito e história: uma análise crítico-hermenêutica da interpretação do stf sobre a lei de anistia

AutorFernando José Gonçalves Acunha - Juliano Zaiden Benvindo
CargoFernando José Gonçalves Acunha. Professor substituto de Teoria do Direito da Universidade de Brasília. Mestre em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília. Especialista em Direito Administrativo e Gestão Pública pelo UniCEUB. Membro do Grupo de Pesquisa 'Observatório do Supremo Tribunal Federal' (UnB). Advogado - 2 Professor...
Páginas185-205

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Disponível em : www.univali.br/ periodicos

JUIZ E HISTORIADOR, DIREITO E HISTÓRIA: UMA ANÁLISE CRÍTICOHERMENÊUTICA DA INTERPRETAÇÃO DO STF SOBRE A LEI DE ANISTIA

JUDGE AND HI STORI AN, LAW AND HI STORY: A CRI TI CAL- HERMENEUTI CAL ANALYSI S OF THE I NTERPRETATI ON OF THE SFC ON THE LAW OF AMNESTY

JUEZ E HI STORI ADOR, DERECHO E HI STORI A: UN ANÁLI SI S CRÍ TI CO HERMENÉUTI CO DE LA I NTERPRETACI ÓN DEL STF ACERCA DE LA LEY DE AMNI STÍ A

Fernando José Gonçalves Acunha 1Juliano Zaiden Benvindo2RESUMO

O j uiz t em um a relação especial com o passado e com o sent ido hist órico do direit o, que são part e dos argum ent os a serem considerados para se ident if‌icar a respost a corret a para o caso. É a part ir dessa prem issa que se faz o exam e do vot o do Minist ro Eros Grau, proferido no j ulgam ent o da ADPF n. 153/ DF pelo Suprem o Tribunal Federal. Em um prim eiro m om ent o, busca- se dem onst rar que a reconst rução da hist ória, para o Judiciário, é um a t arefa desem penhada sem pre em função do caso que se est á a analisar e que nenhum a leit ura dos fat os pode ser assum ida com o nat ural ou unívoca. O passado, assim com o o present e e o fut uro, é abert o à herm enêut ica e est á em perm anent e processo de reint erpret ação. Nessa linha, os sent idos que foram at ribuídos ao direit o no Brasil ant es da at ual Const it uição Federal devem ser t odos revist os diant e da profunda alt eração principiológica do nosso direit o pós 1988, o que conduziu o t rabalho a af‌i rm ar o erro dos argum ent os em favor da const it ucionalidade da int erpret ação que ent ende est arem cobert os pela anist ia polít ica da Lei n. 6.683/ 79 os crim es com uns prat icados pelos agent es do regim e m ilit ar.

PALAV RAS- CH AV ES: Anist ia. Cont r ole de Const it ucionalidade. Hist ór ia. Her m enêut ica. Dir eit os Fundam ent ais.

ABSTRACT

Judges have a special link wit h t he past and wit h t he hist orical m eanings of t he law, which are part of t he argum ent s t o be considered when ident ifying t he best resolut ion for t he case. Based on t his prem ise, t his art icle exam ines t he opinion of t he Eros Grau Minist er ( offered in j udgm ent of ADPF no. 153/ DF by t he Suprem e Federal Court. Firstly, the article dem onstrates that the reconstruction of history, for the Judiciary, is a t ask t hat m ust always be carried out based on t he case being assessed, and t hat no reading of t he fact s should be assum ed t o be nat ural or univocal. Just like t he present and t he fut ure, t he past is open t o herm eneut ics and frequent reint erpret at ion. Therefore, all m eanings assigned t o t he Brazilian law prior

1 Fernando José Gonçalves Acunha. Professor subst it ut o de Teoria do Direit o da Universidade de Brasília.

Mest re em Direit o, Est ado e Const it uição pela Universidade de Brasília. Especialist a em Direit o Adm inist rat ivo e Gest ão Pública pelo UniCEUB. Mem bro do Grupo de Pesquisa “ Observat ório do Suprem o Tribunal Federal” ( UnB) . Advogado. E- m ail: fernandoj gacunha@gm ail.com .
2 Professor de Direit o Público da Universidade de Brasília. Dout or em Direit o pela Universidade Hum boldt de Berlim e pela Universidade de Brasília. Coordenador dos Grupos de Pesquisa “ Sociedade, Tem po e Direit o” ( UnB) e “ Observat ório do Suprem o Tribunal Federal” ( UnB) . E- m ail: j uliano@unb.br.

Revist a NEJ - Elet rônica, Vol. 17 - n. 2 - p. 185- 205 / m ai-ago 2012

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ISSN Eletrônico 2175-0491

t o t he current Const it ut ion m ust be reassessed in light of t he sweeping principiological changes t hat have been m ade t o our legal syst em since 1988, leading t o t he aff‌irm at ion t hat t he argum ent s in defense of t he const it ut ionalit y of t he int erpret at ion t hat holds t hat t he polit ical am nest y st at ed by Law no. 6.683/ 79 applies t o com m on crim es com m it t ed by governm ent agent s during t he m ilit ary regim e are erroneous.

KEYW ORDS: Am nest y. Const it ut ional Review. Hist ory. Herm eneut ics. Basic Right s.

RESUMEN

El j uez t iene una relación especial con el pasado y con el sent ido hist órico del derecho, que form an part e de los argum ent os que deben ser considerados para ident if‌icar la respuest a correct a para cada caso. Es a part ir de est a prem isa que se realiza el exam en del vot o del Minist ro Eros Grau, proferido en el j uicio de la ADPF n. 153/ DF por el Suprem o Tribunal Federal. En prim er lugar se busca dem ost rar que la reconstrucción de la historia, para el Poder Judicial, es una tarea desem peñada siem pre en función del caso que se est á analizando y que ninguna lect ura de los hechos puede ser asum ida com o nat ural o unívoca. El pasado, así com o el present e y el fut uro, est á abiert o a la herm enéut ica y est á en perm anent e proceso de reint erpret ación. En est a línea, los sent idos que se le at ribuyeron al derecho en Brasil ant es de la act ual Const it ución Federal deben ser t odos revist os ant e la profunda alt eración principiológica de nuest ro derecho pos 1988, lo que conduj o a af‌irm ar el error de los argum ent os a favor de la const it ucionalidad de la int erpret ación que ent iende que est án cubiert os por la am nist ía polít ica de la Ley n. 6.683/ 79 los crím enes com unes pract icados por los agent es del régim en m ilit ar.

PALABRAS CLAV E: Am nist ía. Cont r ol de Const it ucionalidad. Hist or ia. Her m enéut ica. Der echos Fundam ent ales.

INTRODUÇÃO

Já há m uito a herm enêutica trouxe à história o seu lugar de dignidade no processo com preensivo, ao pont o de Hans- Georg Gadam er enfat izar que “ a herm enêut ica pode fazer j ust iça à hist oricidade da com preensão”3. E não m enos digna ela o é para o processo com preensivo que se desenvolve no direit o, que, assim , se m ost ra ínt im o da hist ória. Jurist a e hist oriador, af‌i nal, são prof‌i ssionais que olham para o passado e buscam int erpret á- lo. Suas at ividades, por conseguint e, são perm eadas de hist ória. Mas a hist ória que lhes é t ão int rínseca t am bém os faz dist int os. Com o anot a Cost a4, o

hist oriador t em no passado o seu foco principal, buscando com preendê- lo em suas especif‌i cidades e diferenças quant o ao present e. Ainda que, a part ir de caract eres do present e ( cult ura, linguagem , etc.) , o historiador procure com preender o passado com a racionalidade que lhe é própria. Com portase, nesse sentido, com o o antropólogo5, que lança seu olhar sobre sociedades espacialm ente distintas, ao passo que a dist ância do hist oriador é dada pelo t em po.

Por sua vez, o j urist a ( e especif‌icam ent e para o int eresse dest e t rabalho, o j uiz) volt a- se ao passado com o present e em m ent e, com a at ualidade com o preocupação cent ral6. Seu olhar, direcionado para norm as, prát icas sociais, j urisprudência, elem ent os fát icos dos casos concret os, tradições e assim por diante, tem o propósito de perm itir a construção de argum entos e interpretações que lhe deem a oport unidade de cum prir a função prim ordial da j urisdição, que é a de resolver conf‌l it os de int eresses, decidir casos concret os por m eio da aplicação do direit o. É, port ant o, a part ir do caso e para sua solução que o j urist a volt a- se ao passado.

3 GADAMER, Hans. Verdad y M ét odo. Tradução Livre. Salam anca: Ediciones Síguem e, 2011, p. 331.

4 Vide COSTA, Piet ro. Soberania, Represent ação e Dem ocracia : Ensaios de Hist ória do Pensam ent o

Jurídico. Tradução: Curit iba: Juruá, 2010, p. 71.
5 COSTA, Piet ro. Soberania, Represent ação e Dem ocracia , p. 83. 6 COSTA, Piet ro. Soberania, Represent ação e Dem ocracia , p. 81.

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Fernando José Gonçalves Acunha e Juliano Zaiden Benvindo - Juiz e hist oriador, direit o e …

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As diferenças funcionais entre juiz e historiador e a relação entre direito e história, particularm ente quant o à abordagem de episódios hist óricos na decisão de casos const it ucionais relevant es e controversos, serão im portantes para o presente trabalho, que busca realizar um a abordagem crítica do voto do relator do acórdão proferido pelo Suprem o Tribunal Federal (STF) no julgam ento da Arguição de Descum prim ento de Preceito Fundam ental n. 153 (ADPF 153), cujo objeto era a arguição de inconstitucionalidade de dispositivos da Lei n. 6.683, de 28 de agosto de 1979 (Lei de Anistia).

Na ação, o arguent e, Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, pediu que o STF conferisse int erpret ação conform e a Const it uição à Lei n. 6.683/ 79 para declarar que a anist ia por ela concedida aos crim es polít icos ou conexos não se est endia aos crim es com uns prat icados por agent es da repressão cont ra oposit ores polít icos durant e o regim e m ilit ar. A ADPF foi j ulgada im procedent e por m aioria de vot os, vencidos os Minist ros Ricardo Lewandowski e Carlos Brit t o, que a j ulgavam parcialm ent e procedent e nos t erm os dos seus respect ivos vot os.

O acórdão, por sua ext ensão e pela relevância do t em a, possui m uit os pont os passíveis de exam e crít ico. Já a part ir de sua em ent a encont ram - se t eses apt as a suscit ar am plos os debat es. List arem os, sum ariam ent e, algum as delas, principiando pela af‌i rm ação do relat or, Min. Eros Grau, cont ida no t ópico 6 da em ent a do acórdão, de que a Const it uição de 1988 não “ afet aria” cert as leis, ou sej a, não seria parâm et ro de cont role de “ leis- m edida”7ant eriores à sua prom ulgação8. Nessa alt ura, o relat or art icula a exist ência de um a cat egoria de at os norm at ivos infensos à avaliação de const it ucionalidade, que poderiam coexist ir com a Const it uição Federal m esm o que com ela fossem incom pat íveis, j á que o exam e de t al ( in) com pat ibilidade j am ais poderia ser feit o.

No m esm o cont ext o, não se pode deixar de anot ar a alegação, t am bém do relat or, ext...

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