História e política renascentista: Maquiavel entre a República e o Principado

AutorAntônio Alves Mendonça Junior, Raul Salvador Blasi Veyl
Páginas30-61
CAPÍTULO 2
História e política renascentista:
Maquiavel entre a República e o Principado
Antônio Alves Mendonça Junior1
Raul Salvador Blasi Veyl2
Introdução
O objetivo do presente trabalho é analisar o pensamento político
de Maquiavel, especialmente no que tange à diferenciação, contrapo-
sição e possível predileção de duas formas de governo de central im-
portância para o Renascimento e para a Modernidade, a república e o
principado. Para isso, será construído um sólido panorama histórico da
época e da Florença renascentista, assim como das principais formas de
pensar e de se fazer losoa que estiveram presentes no caminho tri-
lhado por Maquiavel. Tentar-se-á, dessa maneira, evidenciar as aproxi-
mações e distanciamentos da nova ordem pós-Medievo com aquela for-
malmente deixada para trás – ainda que materialmente se faça presente
até a contemporaneidade. Explorar-se-á, também, os principais legados
deixados pelo pensamento político anteriormente desenvolvido, anali-
sando em que medida conseguem ou não disciplinar o efervescer de
novos horizontes na realidade jurídico-política renascentista.
Assim, através de uma abordagem dialética e dialógica, edicar-
-se-á não apenas um Maquiavel lósofo, mas também, cidadão e, pos-
teriormente, Secretário da Segunda Chancelaria de Florença, atributos
que não só dizem muito sobre as condições que o zeram escrever, mas
também do teor e das interpretações que decorreram de seus escritos.
Vê-se, então, um lósofo intrinsecamente relacionado com os problemas
1 Graduado em Letras pela Universidade Federal de Minas Gerais em 2009. Pós-Graduado em Di-
reito e Processo do Trabalho pela Universidade Uniderp /RJ em 2012. Graduando em Direito pela
Universidade Federal de Minas Gerais.
² Graduando em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Bolsista de iniciação cientíca
PIBIC/CNPq sob orientação da Prof. Dra. Karine Salgado.
Antônio Alves Mendonça Junior & Raul Salvador Blasi Veyl • 31
apresentados por uma Florença pioneira, ainda que absolutamente ins-
tável, o que, como veremos, é fator determinante nos rumos que o autor
e que a história trilham.
Faz-se mister, ainda, destacar a pertinência do trabalho, que,
mesmo com as inúmeras e aclamadas contribuições já existentes acerca
da temática, apresenta-se como uma síntese crítica da comunhão dos
mais diversos inuxos que recebe Maquiavel – e tantos outros autores
do Renascimento – com sua obra e com os estudos já consagrados de
Hans Baron, John Pocok, Paul Kriesteller, John Najemy, Helton Adverse,
Newton Bignoo e tantos outros.
O presente trabalho não possui a pretensão, vale ressaltar, de en-
contrar uma resposta denitiva para os impasses no que concerne às tra-
dições republicanas ou principescas de leitura de Maquiavel, mas reto-
mar e ampliar esse debate, abarcando uma perspectiva histórica sensível
às nuances da época e, consequentemente, às oscilações do pensamento
do lósofo orentino que serão mais tarde trabalhadas.
Para endossar o tratamento que damos ao desenvolvimento do
presente trabalho e da pertinência do mesmo, trazemos os ensinamentos
de Brian O’Kelly, que arma que “Dentre as parcialidades que podem
nos cegar quanto a verdade sobre o passado, a mais perversa e, talvez a
mais insidiosa é precisamente o desejo pela a absoluta clareza da visão,
pela simplicidade, pela denição completa” (tradução nossa).3
1. Contexto histórico
1.1 Baixa Idade Média, secularização do Estado, e a formação do “novo
homem”
Aliado ao complexo pensamento político de Maquiavel está o
contexto histórico do Renascimento, que, a despeito de parecer negar,
em grande parte, as heranças medievais, encontra suas raízes e deve
grande parte do amadurecimento necessário às reexões desenvolvidas,
a esse período.
Pode-se armar que a Idade Média é o momento de reexão para
a interioridade, a qual, por mais que ainda estivesse ligada a Deus, era
³ “Among the partialities that can blind us to truth about the past, the most perverse and perhaps
the most insidious is precisely the desire for absolute clarity of vision, for simplicity, for complete
denition”. O’KELLY, Brian. Introduction In BISH, Douglas et al. The Renaissance Image of Man and
the World. Columbus: Ohio State University Press, 1966. p. 7.
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uma construção do homem enquanto tal, o que tornou possível o surgi-
mento de uma losoa que também considerava a subjetividade indivi-
dual, a introspecção e o modo com o qual o homem percebia a realidade
a sua volta4. Cria-se um arcabouço acerca do individualismo que será
reaproveitado ao longo de toda a losoa renascentista e, posteriormen-
te, moderna. Dessa forma, o retorno ao indivíduo, à interioridade e à
subjetividade, não é anulado com o m da Idade Média ou com o prota-
gonismo que ganha a vida terrena, mas o mesmo se adéqua aos ensejos
históricos e a essa mudança de perspectiva que tem seu início no m da
Idade Média.
Pode-se armar, ainda, que o retorno à interioridade da Idade
Média muito deve à escolástica, desenvolvida, principalmente, com
Santo Tomás de Aquino. Apadrinhado pelo desenvolvimento das uni-
versidades e com o avanço dos inuxos da Igreja nas mais diversas for-
mas de atuação do ser humano, esse movimento é um reexo da visão
da sociedade através das lentes escolásticas. Acerca da difícil e plural
denição da escolástica, assevera Rui Afonso da Costa Nunes
Quando se considera o conjunto de doutrinas que o termo es-
colástica abrange e quando se observa que é a losoa, a dis-
ciplina que exprime os seus aspectos mais salientes, pode ar-
mar-se com Grabmann que a escolástica é um modo de pensar
e um sistema de concepções em que se valoriza a vida terrena
como dom admirável de que usufruímos para o nosso bem e
para o nosso desenvolvimento pessoal e em que se admite que
o ser do homem não se esgota no breve tempo da sua existên-
cia terrena, uma vez que o homem tem um m supraterreno
e eterno e o destino de uma vida interminável, sobre poder
crescer ainda neste mundo na vida sobrenatural que ele obtém
através do batismo. Portanto, num primeiro momento, casam-
-se na escolástica a concepção losóca da vida terrena, da sua
transcendência às limitações deste mundo e a mundivivência
cristã em que a revelação de Cristo assegura que a vida con-
tinua além da morte, que um destino feliz ou infeliz aguarda
o homem conforme o seu modo de viver na terra, e que neste
mundo já se é possível ao homem nascer para a vida sobrenatu-
ral e nela crescer até que possa, após a morte, xar num estado
denitivo de completa beatitude ou de felicidade eterna5
⁴ Notas de aula de Temas de Filosoa do Estado - (Re)leituras do Político, da pólis à despolitização
(II), oferecida pelos Professores Doutores José Luiz Borges Horta e Karine Salgado no Programa de
Pós-Graduação da FDCEUFMG no segundo semestre de 2015.
⁵ NUNES, Rui Afonso da Costa. História da Educação na Idade Média. São Paulo: Edusp, 1979. p. 244
e 245.

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