História e direito: a interlocução com o jurisconsulto Teixeira de Freitas

AutorMárcia Motta
Páginas174-190
174 • TEIXEIRA DE FREITAS E O DIREITO CIVIL
HISTÓRIA E DIREITO
A INTERLOCUÇÃO COM O JURISCONSULTO
TEIXEIRA DE FREITAS
Márcia M otta
1. INTRODUÇÃO
Queiramos ou não, a relação entre História e Direito está as-
sentada numa relação desigual. Em geral, o Direito se utiliza da his-
tória como “argumento de autoridade” para fundamentar o encami-
nhamento de um processo e uma interpretação da lei que dê conta do
que se pretende defender ou acusar. Para a História, há várias janelas
de investigação que se abrem quando operamos com a legislação. Em
geral, no entanto, são três as possibilidades de parcerias.
A primeira e a mais conhecida é aquela que assegura que a
legislação nada mais é do que o instrumento jurídico de dominação.
Por este viés, muitos historiadores de diversas temáticas construíram
suas reexões a partir daquela assertiva. Para os estudos da escravi-
dão, por exemplo, o mais importante dentre tantos foi Jacob Goren-
der, autor do célebre “O escravismo colonial”, escrito em 1978. Na-
quele livro, o autor procurou apresentar o que ele denominou “as leis
especícas do Modo de Produção Colonial”, em sua tentativa de com-
preender a dinâmica da relação entre escravo e senhor, bem como
as leis que explicariam a especicidade do cativo, a um só tempo,
mercadoria e pessoa.
Uma segunda possibilidade é a que, ao destrinchar os limi-
tes da primeira, considera que aquela visão está fundamentada numa
concepção estreita do signicado da legislação. Como desdobramen-
to, tal crítica - ao longo dos anos 90 e 2000 - possibilitou a consti-
tuição de uma nova geração de historiadores e antropólogos, preo-
cupados em alargar a visão sobre a legislação e os processos legais,
focalizando-os como espaço de disputas e conitos. Inspirados majo-
MÁRCIA MOTTA • 175
ritariamente por E. P. ompson, esses autores estiveram agrupados,
em sua grande maioria, na chamada história social da escravidão, em
Campinas. Entre tantos, destacam-se Silvia Lara, Sidney Chalhoub,
Eduardo Penna e Joceli Mendonça. A primeira, por exemplo, em li-
vro inaugural e publicado em 1988, Campos da Violência, procurou
reinterpretar a atuação do escravo como sujeito, no intuito de apro-
fundar a dimensão do castigo e das práticas de controle social sobre
a propriedade escrava.
Uma última procura entender a dinâmica social do espaço
da lei, aproximando as reexões de ompson com a de Bourdieu.
Assim sendo, se como nos ensina ompson as leis expressam a luta
entre as várias concepções e valores diferentes, e é importante apre-
endê-la no próprio jogo de sua constituição, deslindar sua história,
seu parentesco - se houver - com tentativas anteriores de legislar so-
bre o tema e associá-las aos debates que zeram delas o que elas se
tornaram. Será possível dar a conhecer como uma lei pode abraçar
diversas interpretações, reconhecendo assim que sua aplicabilidade
é quase sempre direcionada à defesa do grupo dominante, ainda que
no corpo legislativo ela possa incorporar os direitos dos mais pobres.
O presente texto deslinda as tentativas de Teixeira de Freitas
para produzir o Primeiro Código Civil Brasileiro em relação à dis-
cussão sobre a questão da propriedade no país. Recuperam-se aqui as
diretrizes inauguradas pelos autores antes citados para discutir - no
âmbito da construção do código jamais terminado - as tensões entre
posse e propriedade e os esforços de constituir uma norma legal.
2. TEIXEIRA DE FREITAS
Não são poucas as referências sobre Teixeira de Freitas na
literatura jurídica do Brasil. Muitos ressaltam ter sido ele o maior ju-
risconsulto do Brasil do oitocentos. Outros destacam sua tentativa
em redigir aquele que seria o primeiro Código Civil do país. O es-
tudo aqui delineado busca inserir as discussões sobre a elaboração
do código - e seu fracasso - nas questões relativas à necessidade de
discriminar posse e propriedade; público e privado.
A Constituição do Império do Brasil de 25 de março de 1824,
estabelecia em seu artigo 179 que se deveria organizar o quanto antes
um Código Civil e Criminal, fundado nas sólidas bases da Justiça e

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