A história das mulheres no Brasil colonial
Autor | Débora Antoniazi Del Guerra - Jorge Luiz Souto Maior - Leila Giovana Izidoro - Mariana Benevides da Costa - Paulo Fernando Nogueira Cunha - Sarah R. Vieira |
Páginas | 13-28 |
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"Ô, mãe, me explica, me ensina, me diz
O que é feminina?
Não está no cabelo, ou no dengo, ou no olhar.
É ser menina por todo lugar.
Ô, mãe, então me ilumina, me diz como é que termina? Termina na hora de recomeçar,
Dobra uma esquina no mesmo lugar.
Costura o fio da vida só pra poder cortar;
Depois, se larga no mundo pra nunca mais voltar ..."
(Feminina - Joyce)
O presente relatório é parte do resultado final de todas as pesquisas elaboradas pelo Grupo de Pesquisa Trabalho e Capital no segundo semestre de 2015. Neste período, o grupo debruçou-se sobre as questões de gênero e trabalho, com a perspectiva metodológica do materialismo histórico e as variantes dentro do movimento feminista.
Como forma de entender o papel desempenhado pelas mulheres na construção político-econômica do Brasil, nosso objetivo principal é apresentar suas histórias de resistência, especificamente no Período Colonial. Isso porque o Brasil Colônia dá início, não só às bases do sistema produtivo capitalista atual, como também às primeiras formas de luta contra a exploração do trabalho e contra as opressões, sobretudo de raça e de gênero.
Segundo considerável historiografia brasileira, o Brasil Colônia não foi um período uniforme, sem modulações de aspectos políticos, sociais ou econômicos. A propósito, Caio Prado Júnior7 reparte este período em quatro seções distintas: a) de 1530 a 1640, o tempo da ocupação efetiva; b) de 1640 a 1770, o da expansão da Colônia; c) de 1770 a 1808, o do apogeu desta, e, por fim, d) de 1808 a 1822, a chamada "era liberal".
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Sob uma ou outra condição, no entanto, o Brasil foi posto em posição sócio-político-econômica periférica do mercantilismo/pré-capitalismo e modelado conforme os padrões falocratas reinantes nos territórios ultramarinos. Entrementes, a assertiva de que as conformações sociais e políticas - da Colônia, primeiro, e do Império, depois - foram desenhadas para atender, sobretudo, às necessidades econômicas da Europa metropolitana, provindo daí categorias como o colonialismo, o senhorialismo, o racismo e o patriarcado.
E, como não poderia deixar de ser, ao longo das referidas etapas, e, inclusive, como decorrência do mesmo modelo econômico implantado, o atuar feminino não se mostrou compassado, variando de acordo com a etnia e com o estrato social da mulher. Às brancas, ver-se-á adiante, cabia, de regra, uma vida impoluta, fora dos espaços sociais, sob as referências marianas preconizadas pela Igreja Católica. Negras e índias, reificadas, prestavam-se à satisfação dos anseios econômicos e sensuais do dominador.
Registram-se, todavia, em um e em outro grupo de mulheres, diversificadas narrativas de emancipação, seja no âmbito doméstico e individual, com a expressa recusa à ignorância e ao analfabetismo que lhes eram impingidos, seja no âmbito coletivo, com a luta e a participação em causas libertárias. De forma abreviada, portanto, eis o trato do discurso a seguir, cuja problemática imediata, insista-se, é a de desvendar como viviam e por que lutavam essas mulheres egressas da sociedade brasileira, nos séculos XVI ao XIX, primeira metade.
Para entender a importância da organização e resistência das mulheres na construção da história do Brasil, é preciso situar como o processo de acumulação primitiva do capital se utilizou do controle do corpo e dos conhecimentos das mulheres na Europa e na América, durante os séculos XVI e XVII, bem como dos povos originários e africanos, por meio da colonização e da escravidão. Conforme evidencia Silvia Federici em seu livro "Calibã e a Bruxa: Mulher, Corpo e Acumulação Primitiva"8, a caça às bruxas foi, na Europa, uma aliança entre as estruturas religiosas, econômicas e políticas em resposta à luta popular que se opunha às massivas expropriações de terras e cercamentos pelo capitalismo em formação.
Segundo a autora, o objetivo da caça às bruxas não era apenas de apropriação de terras, mas também de destruição de valores sociais estruturados em torno da posse coletiva e de saberes populares relativos à saúde, sexualidade e reprodução, que garantiam poder às mulheres. Nesse sentido, a perseguição das mulheres detentoras de poder empírico foi o precedente necessário para a institucionalização do conhecimento "científico", misógino e classista, propagado pelas universidades ligadas à Igreja, bem como para o controle do corpo e da capacidade de reprodução das mulheres.
Nesse contexto, a acumulação primitiva do capital se instaurou também sob a forma de genocídio fora da Europa e por meio do saque em massa de recursos naturais e conhecimentos ancestrais de outros continentes, sobretudo da América, por meio do Colonialismo. A escravidão de povos nativos e trazidos da África foi decisiva para o desenvolvimento capitalista, fundindo racismo e patriarcado nessa grande engrenagem que é o sistema capitalista e que se manifestou por meio da ideologia, se legitimando em leis, na ciência e em bulas papais.
O sucesso dessa política dependia principal-mente de sua aplicação a um sistema de comércio colonial, no qual se podia usar a influência política para garantir ao país metropolitano certo elemento de monopólio. É essencialmente na aplicação à exploração de um sistema colonial dependente que as teorias comerciais mercantilistas adquirem sentido.9
Dessa forma, a lógica do Colonialismo serviu, inicialmente, com o objetivo de puro comércio; depois como fonte de matéria-prima para a indústria em expansão; e, em seguida, como preservação de um mercado consumidor. O efeito desses processos foi, inegavelmente, o empobrecimento da Colônia, por meio do saque de riquezas naturais, da implementação de um sistema de produção de bens de consumo à custa de trabalho escravo e do controle da produção da Colônia10,
voltando-a, sobretudo, à agricultura.
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É importante lembrar que a acumulação primitiva do capital, com esse teor de violência sobre as mulheres e sobre os povos das colônias, abriu caminho para a instalação do capitalismo industrial, mas a caça das bruxas não diz respeito exclusivamente ao passado, como afirma Federici, ela "revela aspectos constantes das relações capitalistas". Nesse sentido, é preciso repensar o desenvolvimento do capitalismo a partir de uma perspectiva feminista, reconstruindo a história das mulheres, o que implica uma redefinição das categorias históricas pré-concebidas que evidencie as estruturas ocultas de dominação e exploração.
Daí a necessidade de resgatar a história das mulheres no Período Colonial Brasileiro, que estavam no alicerce da construção do que hoje é o Brasil. Tal movimento é possível pela influência que os movimentos feministas trouxeram ao final do século XX, em questões metodológicas e de visibilidade das mulheres nos campos formais de conhecimento, e que nos permite hoje olhar a História a partir de outros pressupostos. Nesse sentido, ressalta Mary del Priore:
É a partir de lutas íntimas, portanto, que as mulheres iniciam um questionamento quanto à realidade social, criando os primeiros movimentos feministas, marcados por uma grande diversidade de reivindicações. Antes das historiadoras foram as feministas que fizeram a história das mulheres. O feminismo evidenciou a ausência da figura feminina no território historiográfico, criando as bases para uma história das mulheres feita por historiadoras.11
Tal pensamento também diz respeito a necessidade de análise da História a partir de uma visão anticolonial, que esteja engajada em desconstruir o discurso dos vencedores, evidenciando a expropriação de conhecimentos milenares de povos nativos, o genocídio de populações inteiras e a exploração do trabalho escravo. A partir dessa perspectiva, é possível enxergar como a perseguição de mulheres, indígenas e negros (as) se reflete ainda, na apropriação de seus saberes, na demonização de suas crenças e na criminalização de suas práticas e de sua própria existência.
A colonização portuguesa trouxe o modelo da família patriarcal para o Brasil, isto é, estabeleceu um sistema de dominação política, ideológica e econômica sobre as mulheres, e também sobre outras minorias12.
Por essa razão, desde os tempos do Brasil Colonial, mulheres negras vivenciaram experiências diferentes das mulheres brancas. Conforme a escritora Helena Theodoro:
Desde os tempos da escravidão, as mucamas e criadas dos sobrados eram negras e mestiças, pois tais funções eram consideradas vis e inaceitáveis para a mulher branca. Escravizada, a mulher negra foi o grande esteio da mulher branca, pois, além de levar os recados amorosos da sinhá, ela criou nas casas-grandes condições de vida amena, fácil, e até mesmo ociosa para as mulheres brancas. Cozinhava, lavava, passava a ferro, esfregava de joelhos o chão das salas e quartos, cuidava dos filhos e satisfazia as exigências do senhor. (...). Assim, contribuía de forma eficaz para o desenvolvimento das famílias brancas e da economia do país.13
Nesse sentido, enquanto parte do movimento feminista reivindicava, no final do século XX, mais espaço para as mulheres na esfera pública, no mercado de trabalho e nos espaços decisórios da política, as mulheres negras já ocupavam a esfera pública e o mercado de trabalho informal desde o início de nossa história. Por essa razão...
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