Hierarquia católica e religiões mediúnicas no Brasil da primeira metade do século XX

AutorArtur César Isaia
Páginas240-252

Page 240

Em* 1957, o Papa Pio XII dirigia-se aos militantes brasileiros da Ação Católica enumerando os principais perigos enfrentados pelo catolicismo na América Latina. Os quatro elementos deletérios para a religião católica eram detectados no comunismo, protestantismo, maçonaria e espiritismo1 . O posicionamento de Pio XII, ao lado de ratificar a postura tradicionalmente defensiva da hierarquia frente ao mundo moderno e a “perigos” que somente poderiam ser enfrentados com o reforço da autoridade, do magistério eclesiástico, evidenciava o lugar destacado que o espiritismo lograra como “heresia” condenável pelo catolicismo. Se bem que a condenação do magistério eclesiástico seja bem anterior à mensagem de Pio XII, será em meados do século XX que as chamadas religiões mediúnicas2 ganhariam visibilidade no Brasil, aumentando, consideravelmente, a freqüência com que são atacadas pelo discurso da hierarquia.

As fontes católicas referentes às religiões mediúnicas no Brasil apresentaram diferenças muito importantes. Nessas diferenças, não apenas a questão temporal é definidora, mas também as características individuais dos produtores das mesmas. Assim, em linhas gerais, podemos analisar essas fontes tendo como critério:

1 - As conjunturas em que são produzidas (vale dizer a inserção dessas fontes em momentos mais próximos ou mais distantes de situação de “mercado” religioso).

Page 241

2 - As peculiaridades de quem as produz (em relação a fontes pertinentes à Igreja Católica, enfoca-se, sobretudo, diferentes formações e enfoques pastorais, vale dizer: propostas diversas de atuação, de estratégias e de inserção do catolicismo na sociedade).

No final do século XIX e inícios do XX, em geral, as fontes que trabalhamos revelam uma hierarquia extremamente voltada para o magistério católico, para o reforço da autoridade eclesiástica, como meio de coibir a proliferação, não só das religiões mediúnicas, mas também do protestantismo. O discurso tem uma perspectiva catequética, apologética, com referência, sobretudo, nas Sagradas Escrituras, nos documentos papais, nas cartas pastorais, etc. Evidencia-se nesse discurso a dificuldade com que o catolicismo dialogava com outros saberes, isto é, com outras agências produtoras de significados sociais. Nessa linha argumentativa situa-se a Pastoral de 1916 de D. Sebastião Leme, ao assumir a arquidiocese de Olinda e Recife. Nesse documento, o arcebispo faz um diagnóstico da formação espiritual do povo brasileiro, constatando a “ignorância religiosa”, sobretudo, nas “camadas populares”. Embora constate uma propensão “inata” do brasileiro para o sagrado, pensa que o povo canaliza mal a sua sede do sobrenatural. Sintoma da “estólida crendice” que grassava entre o povo brasileiro era, para D. Leme, toda uma familiaridade popular com o mundo dos espíritos:

“Superstições! (...) Embora condenadas pelo bom senso e pela igreja, por tal forma se enraizaram na imaginação do povo, que só a instrução religiosa, ministrada com método, conseguirá extirpálas. Infelizmente, para mais firmá-las, vieram as abomináveis práticas do Espiritismo. Sessões espiríticas, recados de além-túmulo, médiuns, passes, mesas rodantes, tenebrosas farmácias, duvidosas receitas e toda uma série infinda de escamoteações ou artimanhas...” 3

Se a invocação aos mortos nutria-se para D. Leme de um caldo de cultura marcado pela ignorância religiosa, a profilaxia básica era vista no ensino da catequese, com a disseminação das “verdades” católicas.

A constatação por parte de hierarquia, da disseminação das práti-Page 242cas de invocação aos mortos na cotidianidade brasileira é visível desde o final do século XIX, armando-se o clero para um combate que reputava renhido, dramático, fiel a concepção de Pio IX, para quem o Espiritismo aparecia como o mais terrível inimigo que jamais enfrentou a Igreja4 . Esse inimigo mostrava-se particularmente perigoso em um contexto como o nosso, onde as manifestações mediúnicas pareciam ter encontrado o cenário ideal. Em todas essas fontes o Espiritismo é representado como integrante de construção do outro, o lugar da demonização é recorrente, aparecendo a invocação aos mortos como verdadeira forma de dar voz às hostes satânicas. Contudo, é mister nuançar essa presença do demônio no discurso da hierarquia católica em relação ao Espiritismo. Se ela aparece de forma saliente em inúmeras fontes em todo o período estudado, é, sobretudo, no material empírico mais distante dos meados do século XX, que a demonização direta é recorrente. No período mais recente, recorre-se à intervenção demoníaca direta como explicação para os fenômenos do Espiritismo e do Umbanda de maneira bem mais parcimoniosa. Nas fontes desse período mantém-se a demonização do Espiritismo e Umbanda, mas o demônio passa a aparecer mais como “autor moral” dos fenômenos mediúnicos do que presença direta nos mesmos.

As manifestações mediúnicas como artes demoníacas são vistas intrinsicamente unidas ao mal ancestral. Nesse sentido é interessante a recorrência do Padre Vicente Zioni ao “Traité des Démons”, do Padre Dehaut. Na narração bíblica do pecado original, a serpente, que empresta seu corpo ao demônio para levar o primeiro casal a desagradar a Deus, é vista como o “primeiro médium”. Ou seja, o diálogo entre a serpente e Eva é visto como a primeira manifestação mediúnica, onde a intervenção demoníaca foi direta e tal como, segundo essa ótica, é passível de acontecer no Espiritismo e no Umbanda:

“Servindo-se da serpente apareceu visivelmente aos nossos primeiros pais, mudando assim com o pecado o curso da história da humanidade. A serpente...foi o primeiro médium que existiu no mundo (...) Não se pode negar, pois, a interven- Page 243 ção real e mesmo visível dos maus espíritos neste mundo e sobretudo nas sessões espíritas que por seus processos, ritos e resultados evidenciam bastante o dedo de Satanás.” 5

Já em 1889, D. Silvério Gomes Pimenta, da diocese de Mariana, advertia com notável riqueza imagética contra :

“...duas calamidades piores mil vezes que a seca e a fome. Falo do protestantismo e do espiritismo, ambos filhos de Satanás, o qual se esforça a todo poder por inoculá-los nesta diocese.” 6

A disseminação das práticas de invocação aos espíritos no Brasil leva os bispos a dispensarem uma atenção especial ao assunto na Pastoral Coletiva de 1915. Nesse documento o Espiritismo é visto como a síntese de todos os erros humanos, como prova maior da presença do mal na história:

“O espiritismo é o conjunto de todas as superstições e astúcias da incredulidade moderna, que, negando a eternidade das penas do inferno, o sacerdócio católico e os direitos da Igreja Católica, destrói todo o cristianismo”

Esse documento, traz a marca de um tempo em que ainda os ensinamentos católicos tinham condições de serem impostos como normas sociais, em que os inimigos da Igreja podiam ser tratados como inimigos de uma sociedade ainda dócil ao seu magistério e distante de uma situação pluralista. Sendo assim, a Pastoral Coletiva recomendava que os adeptos da invocação dos espíritos fossem tratados com o rigor dos cânones eclesiásticos, explicitando-se...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT