Heterossexismo e Homofobias em Tempos de Trabalho Flexível

AutorRodrigo Leonardo de Melo Santos
Ocupação do AutorAdvogado
Páginas48-88

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2.1. O discurso neoliberal e o modelo toyotista de produção

N os anos subsequentes ao desfecho da Segunda Guerra Mundial, em 1945, o modelo de Estado de Bem-Estar Social (Welfare State) foi encampado como solução ideal para viabilizar a sobrevivência de boa parte dos fragilizados países da Europa Ocidental. A premissa era a de que um Estado fortalecido seria capaz de resguardar os direitos da população e, intervindo para corrigir desequilíbrios, poderia recuperar a atividade econômica155.

Sob essa ótica, o Estado arrogou para si as funções de planejamento, assistência social, prestação de serviços públicos e organização da economia. No período, implementou-se a política de pleno emprego, expandiu-se o rol de direitos de segunda dimensão e, aos de primeira, conferiu-se uma releitura de enfoque social. No mesmo passo, o Direito do Trabalho incou raízes, consolidando a sua assimilação pelos ordenamentos jurídicos como um ramo autônomo e consistente156.

A indústria adotou o modelo fordista de produção como paradigma, atrelado às anteriores proposições advindas do taylorismo. Concebido por Henry Ford originalmente para o setor automobilístico, o fordismo tem como um de seus pilares a estrutura empresarial verticalizada, para fazer frente à produção em massa, ocupando-se do ciclo produtivo em sua integralidade — da obtenção de insumos à inalização do produto. Esse modelo prima pela racionalização da produção, reduzindo tempos ociosos e ampliando o ritmo de trabalho, principalmente por meio da especialização do obreiro, que, inserto na linha de montagem, se ocupa repetida e mecanicamente de uma etapa especíica do processo produtivo, distanciando pensar e agir157.

Nesse quadro, a existência de um aparato normativo assistencialista, em grande medida apoiado pelos sindicatos, e o estabelecimento de relações de trabalho dotadas de estabili-dade desestimulavam contestações obreiras signiicativas ao próprio modelo produtivo em vigor. Assim, a grande e pesada empresa fordista sustentou uma produção em massa de bens homogêneos, com progressiva expansão da acumulação capitalista, até o início da década de 1970, quando, em meio a uma de suas crises estruturais, o esgotamento desse modelo foi se tornando evidente158.

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O rompimento com a fase áurea do capitalismo, no século XX, foi catalisado por uma justaposição de fatores, como o progressivo inchaço da esfera inanceira em detrimento do capital produtivo; a formação de monopólios, por meio da fusão e da incorporação de organizações empresariais; o encarecimento da força de trabalho e um consequente decréscimo nas taxas de lucro das empresas; o aparecimento de excessos de produção incompatíveis com a contração do consumo e o quadro de desemprego estrutural que se esboçava; e o colapso do modelo de Welfare State, que, num contexto de desequilíbrio iscal e estagnação, tornou premente o enxugamento dos gastos públicos, com a transferência de atividades e custos para o setor privado159.

Em outra frente, a renovação tecnológica que despontava, encabeçada pela robótica, pela microeletrônica e pela microinformática, propiciou transformações em vários setores econômicos. Em alguns casos, deu ensejo à redução de postos de trabalho, ocasionada pela substituição do trabalho humano pelo maquinário; e, em outros, à modiicação das formas de prestação de serviço, com o surgimento de novas modalidades laborativas, estranhas à relação empregatícia clássica160.

Diante desse quadro, o capitalismo precisava se reinventar. Iniciou-se, então, um processo de reorganização do sistema político e ideológico hegemônico, voltado ao resgate dos valores da livre negociação e do absenteísmo estatal. No âmago do neoliberalismo, iguram agora, como prioridades, “a privatização do Estado, a desregulamentação dos direitos do trabalho e a desmontagem do setor produtivo estatal”161, com vistas à otimização da produção, à retomada do crescimento econômico e à expansão das taxas de lucro.

Esse movimento foi acentuado por vitórias políticas estratégicas, em países de capitalismo avançado, notadamente a ascensão de Margaret hatcher como primeira-ministra do Reino Unido, em 1979, e a eleição do presidente dos Estados Unidos Ronald Reagan, em 1980162.

Da reestruturação de um combalido Estado Social, o neoliberalismo expandiu-se como ideário condutor de um Estado Poiético,163 em que o político e o jurídico se subordinam ao imperativo econômico. Nas palavras de Joaquim Salgado:

No Estado poiético, o produto do fazer é o econômico, que nenhum compromisso tem com o ético, e procura, com a aparência de cientiicidade, subjugar o político, o jurídico e o social. Não é ético, porque o seu fazer não se dirige a realizar os direitos sociais. Evidentemente, se o Estado realiza os direitos sociais, esse fazer é ético164.

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Desregulamentação e lexibilização exsurgem como as propostas neoliberais para uma nova abordagem das relações de trabalho e de emprego: a primeira (desregulamentação), ancorada na ideia de mínima intervenção, “exige que o Estado deixe de regular questões sociais inclusive as de cunho trabalhista, em prol da regulação autônoma privada, individual ou coletiva”; e a segunda (lexibilização) designa o movimento de “atenuação do suposto rigor e imperatividade das normas jurídicas, mediante negociações coletivas”165.

No projeto político do Estado Poiético, de progressivo desmonte do sistema protetivo, o trabalho se encontra sob “fogo cruzado”166 e a lógica do mercado se inscreve nas relações laborais, sobretudo na categoria do emprego, desalojando-as do seu potencial como mecanismo de integração social e de construção da identidade. O trabalho é desconigurado enquanto espaço de realização e promoção da dignidade humana, quando o próprio trabalhador, sob a óptica econômica, é objetiicado, passando a ser visto como instrumento do sistema produtivo167.

As mudanças no âmbito estatal seriam acompanhadas por uma correlata transformação do sistema produtivo. Ainal, como sustenta Delgado, “Para cada tipo de necessidade do capital, estabelecia-se um modelo de produção especíico, sob a conjuntura de determinado paradigma de Estado”168.

Com efeito, a reestruturação do capitalismo, no intuito de contornar o esgotamento do taylorismo-fordismo e de recuperar os níveis de acumulação anteriores à delagração da crise dos anos 1970, sem abalar ou modiicar substancialmente o próprio sistema capitalista, conferiu especial destaque à implementação de mudanças nos modelos de produção e nas formas de gestão do trabalho.

Assim como o Estado, as empresas também passaram a privilegiar estruturas menores, mais eicientes, com vistas à maximização de lucros. Com essa proposta, surge e se dissemina o modelo toyotista de produção, cujas proposições iam de encontro às grandes estruturas que caracterizaram o fordismo/taylorismo.

O toyotismo, enquanto “ideologia orgânica do novo complexo de reestruturação produtiva do capital”169, com alcance global, se espelha no modelo de gestão concebido por Taiichi Ohno, no Japão, entre o inal dos anos 1970 e início dos anos 1980. Ancora-se, em síntese, no tripé da produção enxuta (lean production), com um achatamento da estrutura organizacional (downsizing), eliminando excessos, a im de permitir o pronto atendimento (just-in-time),

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com qualidade total170. Objetiva-se, desse modo, alcançar um diferencial competitivo para a empresa, ampliando as margens de lucro do empreendimento e reduzindo os seus custos.

Entre as técnicas e medidas introduzidas por esse novo modelo, sobressai, de um lado, a substituição da produção em massa por um processo produtivo restrito, de poucas unidades, voltadas ao atendimento de demandas localizadas e especializadas — o que permite a eliminação dos grandes estoques. De outro lado, destaca-se o abandono da estrutura vertical, na qual a empresa se ocupava de todas as etapas da cadeia produtiva, em prol de uma produção horizontalizada171, focada no núcleo de sua atividade e externalizando as demais etapas e áreas consideradas periféricas para pequenas e médias empresas172.

No tocante ao trabalho, a empresa toyotista torna premente a adoção de formas de prestação de serviços mais lexíveis do que a clássica relação de emprego. A luidez da demanda e da produção, ainal, exigiria uma correspondente maleabilidade das condições de contratação e de dispensa, bem como de remuneração dos obreiros e de prestação de serviços.

Nesse contexto, Harvey vislumbra dois grandes grupos de trabalhadores inseridos no contexto organizacional: um grupo pequeno e central de obreiros, com alto grau de qualiicação, os quais, trabalhando em tempo integral, gozam de maior estabilidade e perspectivas de crescimento; e um grupo periférico, constituído pela grande massa de trabalhadores, de baixa qualiicação, sujeitos a regimes mais precários de contratação (como o contrato por tempo parcial ou o trabalho temporário), à menor segurança no emprego e à alta rotatividade173.

De outro ângulo, a partir da introdução do conceito de ilha de produção, a tradicional linha de montagem, com obreiros especializados e incumbidos de etapas segmentadas do processo produtivo, cede lugar a um necessário trabalho em equipes integradas por trabalhadores polivalentes. Sujeitos à constante ameaça da perda do emprego e à demanda por...

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