Os heróis que detestavam quem eles deviam salvar: o paradoxo identitário das crianças-soldados na guerra de Serra Leoa

AutorBreno Fernandes
CargoGraduado em Comunicação Social/Jornalismo (UFBA), Mestre em Relações Internacionais (UFBA) e Doutorando em Literatura & Cultura (UFBA). http://www.brenofernandes.info ORCID: http://orcid.org/0000-0002-2674-2817 E-mail: brenofernandes@gmail.com
Páginas223-242
https://cadernosdoceas.ucsal.br/
Cadernos do CEAS, Salvador/Recife, n. 241, p. 477-496, mai./ago., 2017 | ISSN 2447-861X
OS HERÓIS QUE DETESTAVAM QUEM ELES DEVIAM SALVAR:
O PARADOXO IDENTITÁRIO DAS CRIANÇAS-SOLDADOS NA
GUERRA DE SERRA LEOA
The heroes who hated those whom they were supposed to save: child
soldiers’ identity paradox in Sierra Leone’s war
Breno Fernandes
Graduado em Comunicação Social/Jornalismo
(UFBA), Mestre em Relações Internacionais (UFBA)
e Doutorando em Literatura & Cultura (UFBA).
http://www.brenofernandes.info
ORCID: http://orcid.org/0000-0002-2674-2817
E-mail: brenofernandes@gmail.com
Informações do artigo
Recebido em 17/04/2017
Aceito em 30/04/2017
Resumo
Este artigo parte da leitura de Muito longe de casa:
memórias de um menino-soldado, romance
autobiográfico do serra-leonense Ishmael Beah,
narrando sua experiência como criança-soldado do
exército de Serra Leoa durante a guerra civil do país
(1991-2002), para refletir sobre as identidades que
são construídas nessa vivência traumatizante.
Partindo do pressuposto de que a guerra civil trinca o
discurso nacionalista, interessa verificar como essas
identidades conformadas no cotidiano da guerra se
articulam com a identidade nacional e a
ressignificam. N esse movimento, chama atenção o
fato de o exército de Serra Leoa ter mobilizado
garotos apelando a diversas identidades, inclusive à
de heróis nacionais, mas obtendo como resultado
final sujeitos que, n a prática, detestavam os civis
tanto ou quase tanto quanto desprezavam os
rebeldes da Frente Revolucionária Unida (RUF).
Sugere-se que o desatamento desse emaranhado
identitário engendrado pela guerra seja um dos
fatores que determinariam o êxito das políticas de
DDR desarmamento, desmobilização e
reintegração social voltadas para as crianças-
soldados, realizadas entre 1996 e 2002. Um êxito
que, para alguns analistas, não se verificou.
Palavras-chave: Crianças-soldados. Guerra civil.
Identidade. Ishmael Beah. Serra Leoa.
Para onde o senhor e a sua família estão indo?”. Ele ignorou minha pergunta
fingindo não ter ouvido. Em seguida perguntei se ele conhecia o caminho
mais curto para Bonthe, uma ilha no sul de Serra Leoa que, de acordo com o
boca a boca, era um dos lugares mais seguros naquela época. Ele me disse
que, se eu continuasse andando em direção ao mar, acabaria encontrando
quem soubesse informar melhor o caminho. Estava claro pelo seu tom de
voz que ele não me queria por perto e não confiava em mim. Olhei para os
rostos curiosos e céticos das crianças e da mulher. Eu estava feliz em ver
outros rostos e ao mesmo tempo triste porque a guerra tinha destruído a
alegria da experiência de conhecer gente. Não se podia mais confiar nem
mesmo em um menino de doze anos (BEAH, 2015, p. 55)
A guerra civil de Serra Leoa durou 11 anos e, como toda guerra, causou perdas
humanas atr ozes. Foram cerca de 70 mil mortos, 10 mil amputados e 2 milhões de
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Os heróis que detestavam quem eles deviam salvar: o paradoxo identitário das crianças... | Breno Fernandes
deslocados.
1
Mas aquilo que talvez mais tenha ficado na memória de quem acompanhou o
conflito de 1991-2002, e que continua a impressionar quem toma conhecimento sobre ele
hoje em dia, foi a presença massiva de crianças -soldados lutando tanto ao lado do grupo
rebelde quanto ao lado do exército de Serra Leoa. Meninos e meninas magricelas, agarrados
a rifles de cano mais grosso do que os braços que os sustentavam.
2
Ishmael Beah, autor do
livro que fundamenta essa reflexão, foi uma dessas crianças. Sua experiência está contada no
romance autobiográfico Muito longe de casa, lançado em 2007 e imediatamente alçado ao
status de best-seller.
Se a literatura brasileira fosse uma referência mundial, talvez Ishmael tivesse
começado assim sua narrativa: No meio do caminho tinha uma guerra... Porque foi justo o que
aconteceu. Em 1993, junto com o irmão mais velho e alguns amigos, ele deixou a cidadezinha
em que vivia, no sul de Serra Leoa, rumo a uma cidade vinte quilômetros distante, onde os
garotos fariam uma apresentação amadora de rap, e então, no meio do caminho, a guerra os
achou. Os meninos, é claro, sabiam que estava havendo uma luta armada. Para eles, no
entanto, “ela parecia estar acontecendo numa terra distante e desconhecida. Só quando os
refugiados passaram a cruzar nossa cidade começamos a perceber que a guerra estava
mesmo ocorrendo em nosso país”.
3
Daí a descontração que marcou aquela azarada viagem
do grupo. Os garotos não mais conseguiriam voltar para casa nem encontrar seus pais.
Com o tempo, por muito que se esforçassem para permanecer juntos, os rapazes
acabaram-se perdendo uns dos outros. Ishmael chegou a ficar mais de um mês escondido nas
entranhas de uma floresta, sozinho, com medo tanto de ficar ali quanto de buscar abrigo em
outro canto. Melhor dizendo, abrigo com outro grupo, uma vez que não havia local onde fosse
seguro permanecer por muito tempo; o melhor a se fazer era pôr-se em movimento
constante e contar com companheiros para tornar mais toleráveis os longos deslocamentos
e as privações gerais enfrentadas no caminho. Mesmo quando Ishmael e seus novos amigos
chegaram a uma aldeia servindo temporariamente de base a uma guarnição do exército, sua
1
DENOV, 2010, p. 49-50.
2
Não se sabe o número exato de crianças-soldados envolvidas no conflito de Serra Leoa. As discrepâncias
estatísticas podem alcançar a casa dos milhares. Denov (2010), por exemplo, cita relatórios que falam em 6
mil e estudos que falam em 48 mil (cf. Id ., loc. cit.). Inza (2015) aponta como causa para essas diferentes
contagens a falta de consenso em relação tanto à faixa etária do fim da infância quanto à atividade que
caracteriza uma criança-soldado, se o termo designa somente aquele que vai ao front de batalha ou se
também seriam crianças-soldados aqueles que realizam trabalhos como o de mensageiro, de cozinheiro e de
carregador do grupo armado.
3
BEAH, op. cit., p. 9.

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